24 janeiro 2024

Scorsese, ‘Lua das Flores’ e a representatividade indígena nas telas

Indicado a dez Oscars, filme provoca questionamento sobre as narrativas sobre os povos ameríndios que diz respeito não apenas à representatividade, mas a que tipo de histórias são contadas

Indicado a dez Oscars, filme provoca questionamento sobre as narrativas sobre os povos ameríndios que diz respeito não apenas à representatividade, mas a que tipo de histórias são contadas

Cena da série ‘Reservation Dogs’ (Foto: Divulgação)

Por Fhoutine Marie*

Foi divulgada na última terça (23) a lista de candidatos ao Oscar 2024. Conforme o esperado, Os Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese está entre os filmes com mais indicações, entre elas Melhor Filme e Melhor Diretor. O filme é baseado no livro-reportagem homônimo de David Grann e conta a história de uma série de assassinatos envolvendo os indígenas Osage e a exploração de petróleo no estado de Oklahoma na década de 1920. 

De saída, o filme de Scorsese chama a atenção por contar uma história em que os vilões são homens brancos que queriam usurpar dos Osage os direitos sobre a exploração do petróleo e por ter entre os papéis principais a atriz indígena, Lily Gladstone, que se tornou a primeira nativa norte-americana a receber o Globo de Ouro como Melhor Atriz em Filme Dramático, feito que pode se repetir na premiação mais famosa do cinema. 

Contudo, Os Assassinos da Lua das Flores provoca questionamento sobre as narrativas sobre os povos ameríndios que diz respeito não apenas à representatividade, mas a que tipo de histórias são contadas na grande mídia sobre essas pessoas, quem as contas e que tipo de agência esses personagens possuem nesses enredos. 

‘O filme apresenta o ponto de vista de um homem branco. Isso não seria um problema, se a narrativa mostrasse os Osage com um pouco mais de protagonismo e não apenas como vítimas’

Em que pese a importância de um diretor renomado como Scorsese contar esse tipo de história pela visibilidade automática que recebe, trata-se de um ponto de vista de um homem branco ítalo-americano que se consagrou contando histórias sobre sua comunidade e de outros imigrantes brancos. Em si, isso não seria um problema, se a narrativa a que somos apresentados mostrasse os Osage com um pouco mais de protagonismo e não apenas como vítimas. 

Mas o que vemos ao longo de mais de três horas de filme são pessoas completamente acuadas, com poucos diálogos entre si sobre as mortes misteriosas que atingem sua comunidade, como se estivessem esperando a sua vez. Esse lamento silencioso e resignado é particularmente notado na personagem de Gladstone, que vê a família sendo dizimada e em nenhum momento esboça para o marido o desejo de fuga ou alguma revolta. 

Há muita dor resignada e um único momento de conversa entre indígenas para enfrentar a situação – momento que tem a presença de um homem branco que se diz amigo dos Osage e que desde o começo da trama sabemos estar por trás dos crimes. No fim, a situação é resolvida por outros homens brancos, representantes do governo dos Estados Unidos. 

‘O mal causado pela colonização acaba sendo “resolvido” pelos colonizadores e, tal como no início da trama, os indígenas permanecem sob tutela’

O mal causado pela colonização acaba sendo “resolvido” pelos colonizadores e, tal como no início da trama, os indígenas permanecem sob tutela, quase como crianças que precisam ser cuidadas por aqueles que geraram tudo aquilo.

Tradição, modernidade e pertencimento

Na contramão dessa visão um tanto problemática, a série Reservation Dogs (Starplus) apresenta uma história protagonizada, dirigida e produzida majoritariamente por indígenas, numa trama que discute adolescência, pertencimento e o choque entre tradição e modernidade, cheia de drama, lirismo e humor.  

Ao longo de três temporadas (a última foi ao ar no ano passado) acompanhamos a vida de  quatro adolescentes que vivem em uma reserva, mas sonham em partir para a Califórnia. De cara, causa estranhamento ao público brasileiro as condições materiais da reserva, bem semelhantes aos subúrbios que vemos em outros seriados americanos: casas de alvenaria, ruas asfaltadas, celulares, televisão, carros e vestimentas de jovens urbanos (como jeans e camisetas de bandas de rock) e até um carro de patrulha policial conduzido por um guarda também indígena.

‘A identidade indígena não é sobre ficar parado no tempo, ter de viver de modo rudimentar, em isolamento e sem acesso à tecnologia, mas a pertencimento a uma comunidade’

Contudo, esse visual e o que vemos no decorrer da série respondem àquela velha afirmação contrária aos direitos dos povos nativos de que “esses índios (sic) não são mais índios”. Aos poucos, compreendemos que a identidade indígena não é sobre ficar parado no tempo, ter de viver de modo rudimentar, em isolamento e sem acesso à tecnologia, mas a pertencimento a uma comunidade.

Temos então episódios que falam de espiritualidade, rituais ancestrais, saúde, alimentação, estética, família, abandono parental, vida e morte. A discussão sobre indígenas urbanos, empoderamento, bolsas universitárias, representatividade e apropriação cultural também estão lá, muitas vezes na forma de piadas e sem derivar para um discurso que poderia ser chamado de lacrador porque o objetivo não parece ser esse. 

O conflito está presente já que se trata de uma existência conflituosa, mas a impressão é que o mais importante é o registro de coisas que atravessam uma forma de viver que é marcada pela etnicidade, mas que não se resume a isso.   

Enquanto isso no Brasil

Enquanto o audiovisual estadunidense esboça novos modos de representar os povos indígenas, no Brasil (que possui uma história bem distinta dos Estados Unidos nesse campo) a questão ensaia uma nova abordagem. Se no passado predominavam obras de ficção com atores não-indígenas representando todos os estereótipos do “bom selvagem” infantilizado (como na novela Alma Gêmea, de 2006), a última novela das 21h trouxe o escritor e ativista Daniel Munduruku interpretando um pajé, que no final da trama recebe de volta as terras de seu povo que haviam sido usurpadas.

‘Além da ficção, documentários contam com a participação de lideranças indígenas históricas e ajudam a corrigir essa lacuna da falta de protagonismo indígena em contar a história do Brasil’

Além da ficção, documentários como Falas da Terra (Globoplay) e Guerras do Brasil (Netflix), que contam com a participação de lideranças indígenas históricas, como Ailton Krenak e Mário Juruna, ajudam a corrigir essa lacuna da falta de protagonismo indígena em contar a história do Brasil. Além disso, a presença de Isabelle Nogueira, cunhã poranga do Boi Garantido, no BBB 24, ajuda a difundir a mudança de perspectiva, ao explicar em rede nacional porque o termo “índio” foi substituído por indígena.

Voltando ao filme de Scorsese, não se trata de “jogar fora a criança com a água do banho”, mas de pensarmos sobre o tipo de narrativa que pode ser produzida e que já existe para uma nova visão sobre os povos indígenas. Retratar tragédias é importante, mas é bom lembrar que a história não se resume a isso. 


Fhoutine Marie é jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil (Zouk/2017) e Neoliberalismo, feminismo e contracondutas (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  

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Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Amazônia 🞌 Desigualdade 🞌 Direitos Humanos 🞌

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