Maurício Santoro: Os legados – positivo e negativo – de Kissinger
Diplomata mais influente dos últimos 50 anos deixou como marca sua ênfase na necessidade de entendimentos pragmáticos entre os líderes globais, para além das ideologias. Por outro lado, sua ação deixou claro é que isso não pode ocorrer à revelia de valores como democracia e direitos humanos
Henry Kissinger foi o diplomata mais influente dos últimos 50 anos. Como assessor de segurança nacional e secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, esteve à frente da política externa dos Estados Unidos ao longo de 1969-1977, e foi o principal arquiteto da aproximação dos EUA com a China de Mao Tsé-Tung, pressionando a União Soviética e criando condições para negociar o fim da guerra do Vietnã, realização que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz. Kissinger também teve papel de destaque na mediação de crises no Oriente Médio, em particular na guerra do Yom Kippur.
Contudo, seu legado político é questionado, marcado por acusações de crimes de guerra e de apoio a golpes e ditaduras, com demandas para que fosse julgado por tribunais internacionais. Morreu aos cem anos como uma personalidade polarizadora e divisiva.
Essas controvérsias chegaram à cultura pop. De modo inusitado para um diplomata, Kissinger foi personagem de filmes de ficção, histórias em quadrinhos, desenhos animados e canções de rock, em produções tão diferentes como Golda, Watchmen e Os Simpsons. Às vezes como o vilão, ocasionalmente com uma perspectiva irônica ou positiva, mas sempre como um símbolo da política externa americana e do poder global dos EUA.
Uma vida no século XX
A trajetória pessoal e profissional de Kissinger atravessou alguns dos principais fatos históricos do século XX. Nascido em uma família judaica da classe média da Alemanha, deixou o país como refugiado, fugindo dos nazistas. Vários de seus parentes foram assassinados no Holocausto.
Emigrou para os Estados Unidos e voltou à terra natal como soldado do Exército americano na Segunda Guerra Mundial, encarregado de operações de inteligência voltadas para a identificação e prisão de seus antigos algozes nazifascistas. No retorno aos EUA, recebeu os benefícios dados aos veteranos, estudando em Harvard, onde completou seu doutorado e se tornou professor de relações internacionais.
A guinada de Kissinger para um intelectual com influência política em assuntos de segurança nacional ocorreu em 1957, com a publicação de seu livro Nuclear Weapons and Foreign Policy, que discutia a possibilidade da guerra nuclear limitada como um instrumento diplomático. Era um tópico relevante na época e abriu as portas para que Kissinger começasse a assessorar políticos americanos. Inicialmente, no Partido Democrata, mas logo também para os republicanos, como os presidentes Nixon e Ford.
A atuação diplomática de Kissinger aconteceu no auge da Guerra Fria, quando a relação entre EUA e União Soviética era marcada por confrontações recentes como a crise dos mísseis cubanos e a construção do muro de Berlim. Ele inaugurou um período de relaxamento de tensões, sintetizado pela expressão francesa détente e viabilizado por seu gesto mais ousado: a quebra de tabus ideológicos para a negociação de uma aliança entre Estados Unidos e China, para pressionar o adversário comum de ambos, a URSS. Kissinger levou os soviéticos a aceitar acordos de controle de armas e a conter crises regionais no Oriente Médio, que poderiam ter sido ainda piores sem algum nível de entendimento entre as superpotências.
As acusações contra Kissinger
A Guerra Fria foi com frequência desastrosa para a preservação da democracia e dos direitos humanos e é exatamente por sua atuação na área que muitos ativistas e pesquisadores, como Cristopher Hitchens, Gary Bass e Greg Grandin, acusam Kissinger de crimes de guerra.
Sob sua gestão, o Departamento de Estado foi um dos apoiadores do golpe de Estado contra Salvador Allende no Chile, e parte da preparação dos bombardeios clandestinos ao Camboja (onde guerrilhas vietnamitas operavam contra tropas americanas no vizinho Vietnã). Esses ataques geraram uma crise humanitária tão grave que acabaram abrindo caminho para a derrubada do moderado príncipe Norodom Sihanouk e a ascensão do Khmer Vermelho ao poder, com a instalação de um regime genocida.
No sul e sudeste da Ásia, ações de Kissinger também contribuíram para tragédias históricas, como seu apoio para que a ditadura da Indonésia invadisse a ex-colônia portuguesa de Timor Leste e seu suporte ao Paquistão na guerra civil que culminou na independência da porção oriental, do país (Bangladesh). Em ambos os casos, crises que resultaram em violências maciças, como massacres, estupros e torturas.
Acusações contra Kissinger se tornaram mais fortes após a Guerra Fria, parte de tendência global por responsabilização de líderes políticos e militares por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, como ocorreu em diversos julgamentos no Tribunal Penal Internacional ou países como África do Sul, Argentina e Ruanda. Contudo, isso nunca ocorreu com Kissinger ou outros dirigentes americanos. Nenhum tribunal julgou as denúncias contra eles.
A vida após o poder
Após deixar o governo, Kissinger continuou influente politicamente como consultor de empresas, analista e escritor. Foi autor de cerca de 20 livros, entre memórias, tratados de história e de relações internacionais. Suas obras de maior relevância são Diplomacia, um panorama das interações entre grandes potências desde o século XVII e Sobre a China, que mescla suas lembranças com estudos acerca do país.
Ele continuou a defender a aproximação entre China e EUA, para além das divergências ideológicas entre os dois governos. Nos últimos anos, com aumento das tensões sino-americanas, a elite chinesa com frequência elogiava Kissinger, respeitando-o como interlocutor. Poucos meses antes de morrer, já com a saúde muito debilitada, viajou a Pequim a convite do presidente Xi Jinping, com quem se reuniu.
O momento atual é marcado pela crescente divergência ente as grandes potências, com graves crises regionais na Ucrânia, Oriente Médio e Cáucaso. O legado positivo de Kissinger é sua ênfase na necessidade de entendimentos pragmáticos entre os líderes globais, para além das ideologias. Algo que faz falta ao mundo contemporâneo. Sua lição sombria, é que isso não pode ocorrer à revelia de valores como democracia e direitos humanos.
*Maurício Santoro é doutor em ciência política pelo Iuperj, professor de relações internacionais e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha. Autor dos livros ‘Brazil-China Relations in the 21st Century: the making of a strategic partnership’ (Palgrave MacMillan) e ‘Ditaduras Contemporâneas’ (Editora da FGV).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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