Mercado Voluntário de Carbono
A lei do mercado de carbono abriu um leque de oportunidades, e o Brasil, como um dos líderes mundiais da “produção” de carbono, tem a incrível oportunidade de liderar esse mercado

Como dito no último artigo, a somatória de transações do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) jamais dará resultado de soma zero, pelo que a Lei n. 15.042/24 permite que seus participantes recorram ao mercado voluntário.
Por essa razão o legislador teve de estabelecer também normas para o mercado voluntário.
‘Um mercado necessita de mecanismos claros de formação de preços, ambiente equitativo de negociações e certeza de liquidação financeira de suas operações’
Um mercado necessita de mecanismos claros de formação de preços, ambiente equitativo de negociações e certeza de liquidação financeira de suas operações. No nascedouro dos mercados, desde tempos imemoriais, essas três características advêm de um consenso entre seus primeiros participantes.
O meio de introduzir essas regras consensuais nesses novos mercados é o da autorregulação, que seus participantes cumprem sob pena de serem excluídos. Constituem-se mercados “voluntários”, mas que nem por isso deixam de ter regras.
Quando esses mercados atingem certo porte, normalmente aparece sua regulação, em nome do controle, da supervisão, da garantia de cumprimento das regras sob pena de sanção coercitiva pelo aparelho estatal. Opera-se o consagrado brocardo latino “ex facto oritur ius” (do fato nasce o direito).
‘Quando os países reconheceram a necessidade de criar uma teia de regulamentações em nome da proteção do meio ambiente, emergiu o carbono como um bem passível de negociação’
Com o mercado voluntário de carbono não foi diferente. Quando os países reconheceram a necessidade de criar uma teia de regulamentações em nome da proteção do meio ambiente, com ênfase na redução de emissão dos gases de efeito estufa (GEE), emergiu o carbono como um bem passível de negociação, não importando nesse momento as motivações de quem iniciou esses negócios. Assim surgiu um “mercado voluntário”, mas autorregulado.
A história demonstra, de outra parte, que o mercado não decorre do sistema capitalista, mas da necessidade inerente ao ser humano de praticar o escambo, isto é, trocar os bens que produz por outros que não faz, mas que necessita ou deseja. Ao contrário da percepção errônea de que o capitalismo pressupõe um mercado, o que ele tem provocado ao longo de seus três séculos e meio de existência tem sido “intervenções” nos mercados voluntários tornando-os “regulados”.
Existe, inclusive, toda uma literatura discutindo vantagens e desvantagens da regulação vis-a-vis a autorregulação, havendo quem defenda que esta é preferível àquela ao manter a constante liberdade e criatividade do mercado. A favor da regulação militam outros argumentos, como os de proteção do capital dos participantes, de coibição de práticas abusivas, de limitação à participação de certas entidades, dentre alguns dos mais mencionados.
‘Surgiu um mercado parcialmente regulado onde seus participantes ainda que possam livremente negociar seus ativos ambientais devem fazê-lo sob certas condicionantes’
No caso da Lei n. 15.042/24, o legislador sentiu a necessidade — justificável, tratando-se de bem novo e intangível — de conceituar com precisão os bens passíveis de negociação e instituir uma autoridade que fosse a “longa manus” do Estado para certificar os bens e as próprias emissões. Com isso surgiu ao lado e convivendo com o SBCE um mercado parcialmente regulado onde seus participantes ainda que possam livremente negociar seus ativos ambientais devem fazê-lo sob certas condicionantes se quiserem aliená-los no âmbito do SBCE.
Ou, em outras palavras, quem quiser participar do mercado regulado (SBCE) advindo do mercado voluntário deve dar a seus bens certas características sob pena de não serem admitidos à negociação e, nesse sentido, não serem passíveis de uso para fins de compensação ambiental.
Mas a Lei n. 15.042/24 não impede que continue a haver um mercado voluntário e que negociações sejam feitas no Brasil ou no exterior. E quando feitas tais negociações serão dotadas de maior segurança jurídica pois muitos conceitos foram previstos para o mercado como um todo.
‘Seguindo a mesma lógica de qualquer mercado, o voluntário surge como uma resposta espontânea dos agentes produtivos que vislumbraram uma oportunidade’
Seguindo a mesma lógica de qualquer mercado, o voluntário surge como uma resposta espontânea dos agentes produtivos que vislumbraram uma oportunidade de intermediar operações entre os que produzem carbono e os que o necessitam, ou desejam.
Esse mercado só poderia surgir como decorrência de um contexto mundial de busca por uma atividade econômica “descarbonizada”, fruto de uma preocupação com o aquecimento planetário que provém do uso indiscriminado de fontes fósseis para a produção de energia.
Enquanto essa transição para energias menos ou não poluentes ocorre, produtores de carbono manteriam os emissores de dióxido de carbono “compensados” por suas emissões.
‘Imaginando-se uma figura didática, quem “emite” paga a quem “conserva”’
Imaginando-se uma figura didática, quem “emite” paga a quem “conserva”. Quando a transição terminar, em tese esse mercado tenderia a terminar.
Em outras palavras, o mercado voluntário serviria como estímulo a quem conserva e como ônus a quem emite. Os que conservam seriam estimulados a manter essa conservação e os emitentes desestimulados a continuar pagando os custos daí decorrentes.
Mas esses vasos comunicantes só funcionam se esse mercado tiver liquidez, como de resto todo mercado. Quem conserva encontra compradores e quem emite, encontra carbono para compensar.
Essa realidade subjacente explica e delimita o mercado voluntário de carbono que já negocia somas substanciais e que tem crescido vigorosamente.
O que a Lei 15.042 permitiu é que participantes do mercado regulado, o SBCE, possam subsidiariamente atuar no mercado voluntário quando os títulos do SBCE que representam mitigação de emissão (os certificados de descarbonização) sejam insuficientes para atender a demanda dos que dele necessitam, os que emitem.
‘O mercado voluntário nesse contexto serve ao propósito de suprir de títulos o mercado regulado toda vez que o estoque deste for insuficiente para a demanda’
Assim, o mercado voluntário nesse contexto serve ao propósito de suprir de títulos o mercado regulado toda vez que o estoque deste for insuficiente para a demanda, especificamente de certificados de descarbonização.
Ao introduzir nessa equação o mercado voluntário, entretanto, o legislador se sentiu impelido a tratar das suas linhas básicas e conceitos estruturantes para que no SBCE não fossem admitidos títulos não dotados de consistência, integridade, veracidade e transparência.
E em assim agindo o legislador acabou também regulando o mercado voluntário para fins de sua admissão como coadjuvante do mercado regulado, o que representou inequívoca vantagem.
Teremos, então, três mercados, o mercado regulado (SBCE), o mercado voluntário qualificado para subsidiariamente atender a demanda não suprida do SBCE e o mercado voluntário não qualificado, ou seja, de livre pactuação pelos seus participantes.
Como se vê, a lei abriu um leque de oportunidades, e o Brasil, como um dos líderes mundiais da “produção” de carbono, tem a incrível oportunidade de liderar esse mercado.
Nos próximos textos iremos explorar esses três mercados e procurar sistematizar os ativos que nele podem ser negociados.
Fernando Antônio Albino de Oliveira, advogado pela USP, mestre pela NYU e doutor pela USP. Foi diretor da CVM. Atua em direito empresarial, com ênfase em projetos de infraestrutura e mercado de carbono.
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