Nos Jogos Paralímpicos, Brasil já se firmou como potência esportiva global
Em menos de uma década, combinação de financiamento, boas instalações de treino e prospecção de novos talentos consolidou status do país entre os dez maiores ganhadores de medalhas nas últimas quatro edições. Dirigentes apostam em resultados ainda melhores nas Paralimpíadas de Paris, que se iniciam hoje
Começaram, em Paris, os Jogos Paralímpicos de Paris 2024 e a delegação brasileira está animada com as perspectivas positivas para a sua participação no evento. Viajaram à capital francesa cerca de 250 pessoas, entre dirigentes, técnicos e atletas, que competirão em uma vintena de modalidades. A projeção dos dirigentes é que o país irá superar as 72 medalhas conquistadas em Tóquio 2020 e chegar a, pelo menos, 75 — há quem sonhe com 90 medalhas, das quais 20 de ouro. Tal resultado daria ao Brasil uma colocação entre o quinto e o oitavo lugares na classificação geral, e talvez uma performance superior à registrada nos Jogos de Tóquio, quando alcançamos a sétima posição e ficamos à frente de potências esportivas tradicionais, como a França e o Japão.
Os fãs do esporte paralímpico sabem que há bons motivos para que nossa delegação desembarque em Paris sentindo-se otimista. Afinal, nosso país tem exibido um progresso consistente em sua performance na competição, passando de um décimo quarto lugar no quadro geral de medalhas em Atenas 2004 para um lugar fixo entre as dez nações mais vencedoras nas últimas quatro edições. Ficamos em nono em Pequim 2008 com 47 medalhas, sétimo em Londres 2012 com 43 medalhas, oitavo nos jogos de 2016 no Rio de Janeiro e novamente sétimo em Tóquio 2020, em ambos os casos arrebatando 72 medalhas. E, se adotarmos como parâmetro de comparação as sete medalhas conquistadas em Barcelona 1992, encontramos um crescimento de 1.028%. Nas Olimpíadas, o Brasil ainda está distante de resultados mais consolidados. Os melhores resultados viveram nos jogos de Tóquio 2020: 21 medalhas, e a décima segunda posição no quadro geral.
A comparação das medalhas e classificações alcançadas pelas equipes Olímpica e Paralímpica brasileiras nos últimos jogos ajuda a dimensionar o salto que o esporte paralímpico brasileiro alcançou no espaço de menos de uma década, consolidando-se como potência esportiva. É claro que esses resultados se devem, em boa parte, à dedicação e ao talento dos atletas brasileiros (veja boxes ao longo do texto), mas também são fruto de planejamento, políticas públicas, apoio político e continuidade administrativa, que coalesceram na forma de três pilares fundamentais: a construção do Centro Paralímpico Brasileiro, o desenvolvimento de um sistema de financiamento que vem das loterias, e a captação de novos atletas.
De Fundação Casa a Centro de Treinamento
Um dos elementos-chave para a guinada do esporte paralímpico brasileiro começou a tomar forma durante uma conversa descontraída em novembro de 2011, no restaurante Picanhas do Sul, em Brasília. À mesa estavam Mizael Conrado, 46 anos, então vice-presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro (ele hoje é o presidente) e o chefe de gabinete da Secretaria dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Estado de São Paulo, Alexandre Perroni. Perroni perguntou o que faltava para o Brasil se tornar uma potência paralímpica e Conrado respondeu rapidamente que a construção de um centro de treinamento para atletas paralímpicos “de primeiro mundo” seria fundamental.
Perroni recordou-se de que sua secretaria havia recebido como doação, por parte do Governo do Estado, um terreno enorme, com 130 mil metros quadrados, onde anteriormente havia funcionado a Fundação Casa. Os dois homens conversaram e concluíram que, devido às suas dimensões, o local parecia ideal para abrigar o novo centro. Sem muita expectativa, entraram em contato com Linamara Rizzo Battistella, chefe de Perroni e titular da Secretaria. Ela se mostrou entusiasmada, e a ideia aos poucos foi amadurecendo.
Em 2012, o presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro, Andrew Parsons, estava em Londres e assistiu à Paralimpíada. Com o mesmo objetivo estava na capital inglesa o então ministro dos Esportes do primeiro governo Dilma, Aldo Rebelo. Rebelo havia feito toda a sua carreira política no PCdoB, tinha boa interlocução com a presidente e se manteria politicamente fiel a ela até sua cassação, em 2016.
“Eu estava na Paralimpíada e me entusiasmei com o rendimento dos atletas brasileiros”, recorda Rebelo. “Então, perguntei ao Parsons como o governo federal poderia ajudar. Ele respondeu que seria com a construção do Centro Paralímpico. Falei com a presidente Dilma e ela me deu cartão verde para tocar. Na hora, mandou construir”, diz. “Foi minha obra mais importante.”
Rebelo procurou o então governador Geraldo Alckmin, do PSDB, que havia sido derrotado por Lula na eleição presidencial de 2006, mas que mantinha boas relações com Dilma Rousseff. “Éramos de partidos diferentes, mas já havíamos feito um trabalho conjunto no projeto Minha Casa, Minha Vida”, relata Alckmin, que dez anos depois surpreenderia inclusive muitos de seus eleitores ao articular uma chapa presidencial com Lula para as eleições de 2022 e tornar-se vice-presidente da República. “A conversa foi rápida e acertamos tudo. Dei o terreno e o Centro foi construído, com inversão conjunta de R$ 400 milhões. Hoje, o Brasil vai melhor na Paralimpíada do que na Olimpíada”, diz.
Outro fator que contribuiu para que a obra do Centro Paralímpico saísse do papel foi o fato de que o governo federal já disponibilizava verbas e programas visando preparar o Brasil para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, num total de 400 diferentes iniciativas. “Eu disse ao Ricardo que, entre 400 obras, ele poderia dedicar pelo menos uma para o paralimpismo. Ele aceitou, claro”, conta Conrado, referindo-se ao então secretário nacional de esportes de alto rendimento, Ricardo Leyser Gonçalves, 54 anos. O prestígio dos diversos padrinhos políticos que apoiaram o empreendimento à época pôde ser medido pelas autoridades que compareceram à cerimônia de inauguração das obras, em janeiro de 2013; além de Alckmin, vieram o então prefeito de São Paulo, ex-ministro de Lula e presidenciável Fernando Haddad e a própria presidente Dilma Rousseff.
Paridade com o esporte olímpico ajudou
Hoje, o Centro de Treinamentos Paralímpicos serve de base para a preparação de atletas de 17 modalidades esportivas os quais, junto com seus treinadores, ficam instalados em um hotel de 300 leitos enquanto se preparam para competir. Ocupa uma área de 140 mil metros quadrados, dos quais 95 mil são de área construída, o que faz dele a quarta maior instalação do gênero, atrás apenas de equipamentos semelhantes instalados no Japão, Coreia e Rússia. De maio de 2016, quando foi inaugurado, a dezembro de 2023, recebeu 1.916 eventos esportivos.
Para Ricardo Leyser Gonçalves, que hoje atua como consultor e é membro independente do conselho de administração do Comitê Olímpico Brasileiro, o salto dado pelo esporte paralímpico começou a ser ensaiado nove anos antes que Mizael e Perroni se encontrassem para jantar juntos em Brasília e sonhar com um centro de treinamento.
“Tudo começou em 2001, com a assinatura da Lei Agnelo Queiroz, que destinava 2% de todo o dinheiro arrecadado com loterias para o movimento olímpico e paralímpico. O Brasil saiu na frente, já a partir do ano seguinte”, diz. A posse de Lula como presidente, em 2003, trouxe mais um elemento decisivo. “Lula, quando gosta de um assunto, de uma causa, ele se envolve muito. Ele recomendou ao Agnelo Queiroz , que estava como ministro dos Esportes, que tudo o que fosse feito para o esporte olímpico deveria ser replicado com o esporte paralímpico. Isso aconteceu com o bolsa atleta, o bolsa pódio, todos os programas”, diz Leyser Gonçalves. Desejoso de projetar o Brasil como polo de soft power mundial, o governo Lula abraçou a candidatura do Brasil a sediar a edição de 2007 dos Jogos Panamericanos, e, em paralelo, do Parapan. “O Parapan de 2007 foi um sucesso enorme, o Comitê Olímpico Internacional o considerou melhor que a Olimpíada de 2004. Foi todo bancado pelo governo federal”, diz Leyser Gonçalves.
Originalmente, a repartição dos 2% estabelecidos pela Lei Agnelo Piva eram divididos em 1,7% ao esporte olímpico e 03,% ao esporte paralímpico. Em 2015, Dilma Rousseff promulgou a Lei da Inclusão e a divisão passou a ser diferente. Dos 2,7% arrecadados, 1,73% ficaram com o olimpismo e 0,97% com o esporte paralímpico.
“No ano passado, nosso orçamento anual foi de R$ 248 milhões, um valor já superior aos R$ 217 milhões de 2022. Nem dá para comparar com o ano de 1996, quando precisamos de 25 patrocinadores para conseguir R$ 2,5 milhões”, conta Conrado, cujo mandato como presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro está chegando ao fim.
Mas, para além da construção do Centro de Treinamento, da continuidade dos investimentos e da criação de um amplo sistema de identificação de talentos, outro fator que desempenhou um papel importante no crescimento do esporte paralímpico brasileiro foi o senso de oportunidade demonstrado por dirigentes e políticos, ainda que talvez essa não fosse uma prioridade. Pois, como reconhece Leyser Gonçalves, é mais fácil para um país destacar-se no universo paralímpico do que no olímpico — pelo menos por enquanto. “É mais fácil. Até por uma questão de história, uma vez que o segmento paralímpico é mais recente. A maior parte das nações ainda destina bem menos atenção e investimentos a ele. Isso facilita o processo necessário para que um país se posicione na frente”, avalia.
O jornalista Fernando Gavini, que é editor do site Olimpíada Todo Dia, especializado em esportes olímpicos e paralímpicos, aponta as diferenças. “Alguns fatores facilitam o rendimento paralímpico. Existem potências olímpicas, como os EUA, que não dão tanta importância. Por exemplo, lá não existe um comitê paralímpico independente, essas atribuições ficam com o próprio comitê olímpico”, diz.
Ele também destaca a carência dos espaços de inclusão social disponíveis para as pessoas com deficiência no Brasil. “O esporte se torna uma grande oportunidade para que essas pessoas se integrem à sociedade e possam ganhar um bom dinheiro. Poucos países oferecem incentivos como bolsa, Bolsa Pódio e salário. No Brasil, todo atleta paralímpico ganha bem”, diz.
Por fim, o fato de haver muitas classes diferentes de deficiência leva a um número menor de atletas disputando provas, o que pode facilitar a vitória. “Em Tóquio 2020 foi preciso juntar duas classes diferentes para que acontecesse uma prova de corrida. Mesmo assim, só oito atletas participaram. O brasileiro Vinícius Rodrigues, que é amputado de uma perna, perdeu para um atleta russo que era amputado de braço”, diz Gavini.
De craque a dirigente
A verba que Conrado administra como presidente do Comitê Paralímpico Brasileiro fica em torno de R$ 20 milhões por mês, e é dividida para atividades como a manutenção do Centro Paralímpico, treinamentos, torneios e captação de atletas com o know-how de quem já esteve em campo.
“Nasci cego, e depois de três operações passei a enxergar, aos três anos. Aos nove, tive descolamento de retina e fiquei cego novamente”, diz. Ainda criança, apaixonou-se pelo futebol. “Minha última lembrança de enxergar alguma coisa foi a decisão do campeonato brasileiro de 1986”, relata. Para conseguir perceber alguma coisa, assistiu com o rosto grudado — “grudado mesmo” — à televisão ao dramático jogo, que opôs as equipes de São Paulo e Guarani. O posicionamento lhe permitiu ver o momento em que o são-paulino Wagner Basílio deu um chutão para a frente. “Pita ganhou de cabeça de Ricardo Rocha e a bola sobrou para Careca, que acertou o chute sem pulo. O São Paulo empatou com o Guarani em 3 x 3, e depois ganhou nos pênaltis.”
Certo dia, no pátio do Instituto Padre Chico, instituição paulistana destinada à educação de cegos e crianças com deficiências visuais, questionou de onde vinha um som de guiso. “São crianças jogando bola”, respondeu a religiosa. Por meio daquele som, veio o desejo de praticar o esporte e iniciou-se uma trajetória que o levaria a ser artilheiro na paralimpíada de Sydney 2000 e ao reconhecimento como o melhor jogador do mundo na modalidade de futebol de cegos.
Conrado explica como se articulou a captação de novos atletas, o terceiro pilar que explica o crescimento do movimento paralímpico no país. “Oferecemos cursos de ensino a distância para orientar os professores de educação física como tratar melhor alunos com deficiência, e promover inclusão. Anunciamos o curso no site do Ministério da Educação e Cultura, mas é preciso uma parceria mais efetiva. Por enquanto, ela envolve apenas divulgação, mas, mesmo assim, 50 mil professores já participaram”, diz.
O processo de captação de novos talentos segue um escopo amplo, abrangendo de crianças a militares. ‘’São profissionais que se tornaram deficientes no exercício da profissão e que podem ser ótimos atletas. Quanto às crianças, temos 72 escolinhas espalhadas pelo Brasil, são centros de referência. Atendem seis mil crianças. Este ano, fizemos um festival paralímpico e tivemos 21 mil crianças participando em 119 cidades diferentes. E temos também competições universitárias”, diz.
Os atletas captados vão até o Centro Paralímpico e são avaliados por profissionais capacitados. É a classificação funcional, que avalia a funcionalidade do corpo e o insere na classe que mais se adapta à sua debilidade físico-motora. Existe um departamento especializado, com médicos e fisioterapeutas que acompanham os atletas em competições e treinamentos. Uma pessoa que perdeu o dedo mínimo não pode disputar o paraciclismo, por exemplo, porque sua debilidade não atrapalha em nada. A gente analisa tudo e vê em qual categoria o atleta se insere”, conta Mariane Lima, uma das avaliadoras.
Conrado acredita que os Jogos Paralímpicos de Paris 2024 serão a última competição em que o Brasil estará fora dos cinco primeiros colocados na contagem geral de medalhas. “Hoje a inclusão é algo universal, o mundo inteiro está se preparando para lidar com isso. Uma criança cadeirante que vê alguém semelhante a ela ganhar uma medalha passa a ter um exemplo a seguir. Nós também estamos fortes e na Paralimpíada seguinte, que vai ocorrer em Los Angeles 2028, estaremos entre os cinco primeiros. E, em 2040, seja onde for a competição, estaremos incomodando a China, que sempre fica com o primeiro lugar”, diz.
Este texto é uma reprodução livre de artigo publicado pelo Jornal da Unesp - https://jornal.unesp.br/
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