21 agosto 2025

O que dizem a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Internacional de Justiça sobre a crise climática?

Em julho de 2025, duas decisões consultivas emitidas, uma pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), e a outra pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), marcam um divisor de águas nesse processo

Marcha pelo Clima reúne ativistas e ambientalistas no centro da cidade, é parte do Ato Global pelo Clima, que se realiza em diversas cidades do mundo e alerta para a crise climática e o aumento dos eventos climáticos extremos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por Silmara Veiga Montemor e Maria da Penha Vasconcellos*

Nos últimos anos, a crise climática deixou de ser apenas uma questão científica para se tornar também um desafio jurídico de dimensão civilizatória. A comunidade internacional busca, de forma ainda fragmentada, construir um regime normativo capaz de responsabilizar Estados por suas ações — ou omissões — diante do aquecimento global.

Em julho de 2025, duas decisões consultivas emitidas, uma pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), e a outra pela Corte Internacional de Justiça (CIJ), marcam um divisor de águas nesse processo.

A Opinião Consultiva nº 32/25, solicitada por Chile e Colômbia, foi emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por quatro votos a três. Trata-se de um marco jurídico relevante para os 34 países que integram a OEA. A corte reconheceu que a emergência climática compromete, de forma estrutural, os direitos humanos no continente, impondo obrigações concretas aos Estados, especialmente no que diz respeito à proteção de populações vulnerabilizadas como povos indígenas, quilombolas, mulheres, jovens e comunidades tradicionais.

Embora o parecer não tenha caráter vinculante como uma sentença judicial, ele possui forte valor normativo e pode — e deve — orientar políticas públicas, decisões judiciais e estratégias de litígio. Dentre os principais pontos estão:

  • Emergência climática: A corte reconhece, com base na ciência, a existência de uma emergência climática que demanda ações imediatas e eficazes;
  • Dever de não causar danos: O dever de não causar danos irreversíveis ao meio ambiente é elevado à condição de norma de jus cogens, ou seja, obrigatória para todos os Estados;
  • Ações baseadas em ciência: Os Estados devem adotar medidas baseadas em ciência, com análise de riscos, participação pública, monitoramento constante e transparência;
  • Proteção de grupos vulneráveis: Grupos como crianças, povos indígenas, afrodescendentes, comunidades tradicionais e defensores ambientais recebem proteção reforçada;
  • Direito ao clima estável: É reconhecido o direito autônomo a um clima estável, com implicações individuais e coletivas;
  • Acesso à justiça climática: Os Estados devem garantir o direito à informação, participação e acesso à justiça em decisões e litígios climáticos;
  • Conhecimento científico e tradicional: O direito à ciência e aos saberes tradicionais são reconhecidos como fundamentos obrigatórios para as políticas climáticas;
  • Natureza como sujeito de direitos: A natureza passa a ser reconhecida como sujeito de direitos, com valor intrínseco.

Além disso, a corte destacou o dever correlato dos Estados de atuar contra as causas das mudanças climáticas, mitigar as emissões de gases de efeito estufa, regular e supervisionar o comportamento dos indivíduos, determinar o impacto climático de projetos e atividades que o requeiram, bem como definir e avançar progressivamente em direção ao desenvolvimento sustentável.

O parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça

No âmbito global, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), com sede em Haia, emitiu em 23 de julho de 2025 um parecer consultivo histórico, solicitado pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Pela primeira vez, a corte declarou, de forma unânime, que as mudanças climáticas representam uma “ameaça urgente e existencial” e reafirmou que os Estados possuem obrigações jurídicas claras de proteger o sistema climático global.

A construção desse parecer consultivo foi, por si só, um marco no direito internacional contemporâneo. O processo foi iniciado formalmente a partir da resolução A/RES/77/276 aprovada pela Assembleia Geral da ONU em março de 2023, por meio da qual se solicitou à CIJ um parecer consultivo sobre as obrigações jurídicas dos Estados no enfrentamento da mudança do clima.

A consulta à CIJ recebeu colaborações de mais de 100 países, além de contribuições de organizações internacionais, especialistas, universidades e representantes da sociedade civil. Durante o processo, foram realizadas audiências públicas e abertas, em dezembro de 2024, nas quais Estados e entidades puderam apresentar argumentos jurídicos, científicos e éticos sobre a responsabilidade climática. Essa mobilização multilateral refletiu o crescente consenso global de que a crise climática ultrapassa fronteiras e exige respostas jurídicas à altura de sua complexidade.

A força do parecer emitido em 23 de julho de 2025 é resultado direto dessa construção coletiva, democrática e transdisciplinar.

O parecer conclui que os países têm o dever de reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE), reparar danos ambientais e respeitar as metas do Acordo de Paris, especialmente o limite de 1,5°C de aquecimento global. A corte também reconheceu que essas obrigações derivam não apenas dos tratados internacionais — como a Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança do Clima, o Protocolo de Kyoto e o Acordo de Paris —, mas também do direito internacional consuetudinário e dos direitos humanos, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Além disso, a corte ampliou o escopo da responsabilidade ao reconhecer que as obrigações estatais incluem não apenas emissões diretas, mas também políticas públicas e omissões que permitam práticas danosas ao clima, inclusive por agentes privados. O parecer abre caminho para litígios entre Estados — por exemplo, no caso de países prejudicados por políticas altamente emissoras de outras nações — e pode fortalecer ações judiciais de comunidades afetadas em cortes internacionais e nacionais.

Implicações para o Direito Ambiental Internacional

Ambos os pareceres reafirmam que o regime jurídico ambiental internacional está evoluindo para incorporar de forma mais contundente a noção de justiça climática. A responsabilidade dos Estados, embora ainda sem sanções automáticas, passa a ser juridicamente respaldada por princípios, precedentes mais sólidos e normas.

Embora os pareceres consultivos sejam normas de soft law – ou seja, não possuem força coercitiva imediata e não obrigam juridicamente os Estados, ou seja, não têm força de hard law como uma sentença judicial internacional (ex: julgamento de casos contenciosos entre Estados que aceitaram sua jurisdição, para esses a decisão é vinculante) –, não se pode ignorar seu impacto normativo.

Os pareceres exercem função interpretativa essencial, ao consolidar princípios e orientar a comunidade internacional, seu conteúdo pode influenciar tratados, resoluções e decisões estatais, além de ser utilizado como base para a elaboração de leis e políticas públicas – papel típico da soft law.

Como já ocorreu em outros contextos — como no reconhecimento do direito à água ou à identidade de gênero —, pareceres consultivos frequentemente antecipam mudanças jurisprudenciais e legislativas. A partir de agora, a omissão estatal diante da crise climática poderá ser compreendida não apenas como uma falha de gestão, mas como uma violação jurídica.

Os pareceres reforçam o princípio da equidade intergeracional, o dever de cooperação e o princípio da precaução, pilares que nortearam a construção do direito ambiental desde Estocolmo/1972 e Rio/1992.

Os dois pareceres indicam que a evolução normativa do direito internacional ambiental está deixando de ser programática para ganhar contornos mais operacionais.

A despeito de seu caráter consultivo, os pareceres têm potencial transformador: funcionam como guias interpretativos para tribunais nacionais e internacionais, fortalecem argumentos em ações judiciais e podem servir de base para reformas legislativas.

Ao reconhecer que os Estados têm deveres legais de ação, mitigação, reparação e cooperação, a OEA e a CIJ sinalizam um novo horizonte normativo: o da responsabilização internacional por danos climáticos e da efetivação do direito à justiça ambiental.

Em tempos de emergência climática, a consolidação do direito internacional ambiental passa a ser não apenas desejável, mas urgente. Os pareceres da OEA e da CIJ representam conquistas históricas nesse caminho, ao afirmarem a obrigatoriedade jurídica da ação climática e ao abrirem novas possibilidades para o acesso à justiça ambiental. Mais do que respostas jurídicas, esses pareceres expressam uma exigência ética de nosso tempo: proteger o presente e o futuro comum da humanidade.


Silmara Veiga Montemor é membro da Comissão Especial do Clima e do Meio Ambiente da OAB-SP, e Maria da Penha Vasconcellos, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Instituto de Estudos Avançados da USP

Este texto é uma reprodução autorizada de conteúdo do Jornal da USP - https://jornal.usp.br/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Ambiente 🞌

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