Os EUA e os desafios contemporâneos da política externa brasileira
A versão 3.0 da política externa ‘ativa e altiva’ de Lula tem renovado a inserção internacional do Brasil a partir da integração regional, diversificação de parcerias, diálogo e cooperação multilateral. Contudo, este perfil autônomo de ação enfrenta críticas e até mesmo cerceamentos por parte dos EUA
Em junho, um alto representante do Departamento de Estado ligado aos assuntos do Oriente Médio dos EUA — o diplomata Abram Paley — esteve em Brasília. Esta visita recebeu alguma repercussão na mídia brasileira, especialmente devido às manifestações de desagrado do próprio Irã.
Apesar de o conteúdo não ter sido divulgado por nenhum dos governos, em mensagem na rede social X, Paley forneceu indícios da pauta: sanções econômicas, não proliferação e as chamadas “atividades desestabilizantes” do Irã na América Latina. Esse discurso não é uma inovação da atual administração estadunidense, mas espelha a continuidade de uma política iniciada ainda no final do segundo governo de Barack Obama (2012-2016) e, aprofundada principalmente, na administração de Donald Trump (2017-2021).
Reflexo da reação dos EUA ao cenário internacional das últimas décadas —caracterizado pelo crescente retorno da China e Rússia, bem como por significativas rachaduras das instituições multilaterais —, esta orientação exibe a resistência da grande potência em abrir mão de seu domínio e direção internacionais. Na presente gestão, o democrata Joe Biden vem mantendo uma forte retórica dirigida para o acirramento de disputas do país com atores então nomeados inimigos: China, Rússia, Irã e, na América Latina, Venezuela e Cuba. E é essa continuidade de visão que domina parte importante das relações dos EUA com o Brasil hoje.
A versão 3.0 da política externa “ativa e altiva” de Lula tem renovado a inserção internacional do Brasil a partir da integração regional, diversificação de parcerias, diálogo e cooperação multilateral. Contudo, este perfil autônomo de ação enfrenta críticas e até mesmo cerceamentos por parte dos EUA. O próprio episódio da visita de Paley ao Brasil reflete esse contexto.
Para os EUA, é inadmissível qualquer atividade que ponha em risco seus interesses, e, apesar de não ser uma relação estreita, o Brasil tem estado junto ao Irã a partir, por exemplo, da inclusão do país do Oriente Médio no Brics desde janeiro. Assim, Paley veio transmitir seu recado à diplomacia brasileira.
A posição de diálogo e não interferência de Lula em assuntos domésticos da sua vizinha Venezuela também tem gerado descontentamento estadunidense. Em junho do ano passado, o assessor do presidente Biden, Juan González, e o subsecretário de Assuntos do Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, apresentaram contundentes críticas ao posicionamento do presidente brasileiro.
As iniciativas do Brasil para a resolução da guerra em Gaza também têm gerado desconforto e desaprovação do governo Biden. Por exemplo, em outubro de 2023, quando a diplomacia do Brasil articulou sua primeira proposta junto ao Conselho de Segurança da ONU, os EUA a vetaram. Já em fevereiro passado, o porta-voz do Departamento de Estado estadunidense, Matthew Miller, declarou discordância e proferiu críticas ao posicionamento do governo brasileiro em definir como genocídio o que está acontecendo naquela região.
Portanto, apesar de alguns sinais iniciais de diálogo entre os governos de Biden e Lula conduzirem alguns analistas a alimentar esperanças de um aprofundamento de relação, o que se observa é a manutenção de um posicionamento estadunidense desafiador à autonomia internacional brasileira na atualidade. Em um cenário de incertezas sobre o futuro da superpotência decorrentes do resultado eleitoral de novembro próximo, vislumbrar um cenário positivo e de aprofundamento de parceria com os EUA não parece viável, nem mesmo com a vitória dos democratas.
Luciana Wietchikoski é doutora em ciência política pela UFRGS com estágio pós-doutoral em relações internacionais pela UFSC e professora na Unisinos
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