Política climática internacional na era de alta conflituosidade geopolítica
Sem mudanças de posicionamento, na COP de Belém o Brasil deve se apresentar como um agente duplo. De um lado, mostrará resultados consistentes de redução de desmatamento; de outro, perde capital climático em razão de sua visão distorcida de transição energética
Desde a inauguração do regime internacional do clima, com a assinatura da Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas, em 1992 – durante a Rio 92 –, o mundo avançou muito pouco para conter o aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, uma das causas do problema.
O grande paradoxo dos anos da década de 2020 é que, de um lado, o aquecimento global e os eventos climáticos extremos – incluindo as inundações ocorridas no Rio Grande do Sul e o verão de temperaturas recordes que no hemisfério Norte em 2024 – continuam aumentando em frequência e intensidade; e, de outro lado, o impulso de reduzir emissões (ou de reduzir o crescimento de emissões, nos países em desenvolvimento) foi diminuído ou revertido parcialmente.
Estamos muito longe de atingir o objetivo definido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em seu relatório de 2021, de redução de 50% das emissões globais até 2030 para que se mantenha viável a meta de não superar 1,5º C de aumento médio da temperatura até 2100.
Diante desse quadro, quais os principais avanços e retrocessos nas últimas rodadas de negociação, e o que podemos esperar para as próximas?
Em 2021, na COP 26, realizada em Glasgow, houve avanços em quatro temas importantes. O primeiro tema são as Contribuições Nacionalmente Determinadas (CNDs), compromissos de redução de emissões apresentados pelos países. As CNDs foram apresentadas pela primeira vez quando da assinatura do Acordo de Paris, em 2015, e ficou estabelecido que cada país deve revisar sua meta periodicamente aumentando a ambição de redução de emissões. Algumas metas revisadas cumpriram o esperado – ainda que permaneça a dúvida se serão realmente implementadas.
O Reino Unido propôs reduzir suas emissões, em relação ao total emitido em 1990, em 68% até 2030, melhorando sua proposta de 2015, que era reduzir em 40%; a União Europeia propôs redução de 55% das emissões até 2030, também com ano base no que emitia em 1990, e também aumentando dos 40% propostos em 2015. E os EUA propuseram reduzir, até 2030, de 50 a 52% de suas emissões de 2005 (seguindo a tradição, inaugurada em 2009, de mudar o ano base da Convenção de 1990 para 2005; caso o ano base fosse 1990 a redução seria menor, 43%), quando o que haviam proposto em 2015 era reduzir entre 26 e 28% das mesmas emissões até 2025. Japão, Canadá, Austrália, e Coreia do Sul também propuseram metas de redução de emissões melhores do que em 2015, mas não tão ambiciosas como os primeiros. O resto do mundo teve melhoras bastante limitadas das CND e, em alguns casos, como o Brasil, não houve melhoras, mas, sim, um pequeno retrocesso.
A grande decepção foi a China, cujas emissões representaram mais da metade do total mundial no período 2000-2020 e cujo compromisso de redução de emissões é muito pouco ambicioso – reduzir a intensidade de carbono no PIB em 65%, em relação aos níveis de 2005, até 2030, com pico de emissões até 2030 e carbono neutro até 2060 – totalmente incompatível com o orçamento global de carbono.
A China defende sua pouca ambição argumentando que é um país em desenvolvimento e que, de acordo com o princípio das Responsabilidades Comuns Porém Diferenciadas, tem direito a aumentar suas emissões. É uma visão distorcida, pois ignora mudanças importantes no sistema internacional desde que o princípio foi negociado, em 1992.
Atualmente, a China é uma superpotência econômica e militar que disputa a hegemonia global com EUA, e tem emissões per capita de 9,16 toneladas de CO2 per capita, bem acima de outros países – como a Índia, com 2,45 tCO2/capita e a União Europeia, com 7,03 tCO2/capita (números de 2021).
A Rússia tem sido um predador do regime climático na última década. Suas emissões caíram drasticamente na década de 1990 por conta do colapso econômico, mas aumentam sistematicamente desde 2002; sequer atualizou sua CND. A partir de 2019, a Rússia passou a considerar metas de descarbonização como ameaça à segurança nacional.
O segundo tema em que houve avanços em 2021 foi a criação de um mercado de carbono mundial: também na COP 26 foi concluída a negociação do artigo cinco do Acordo de Paris.
O terceiro tema foi a assinatura, por alguns países, de declarações sobre três questões importantes. A primeira para reduzir fortemente o uso do carvão até 2030 – porém não foi assinada por China, Índia, Rússia e EUA, grandes consumidores do produto. A segunda declaração estabelece a meta de redução em 30% das emissões de metano até 2030, mas não foi assinada por China, Índia e Rússia. A terceira declaração fala da eliminação do desmatamento ilegal até 2030.
O quarto tema foi a formação de coalizões comprometidas com o avanço da descarbonização, entre as quais: empresas multinacionais com metas de carbono neutro; fundos de investimento e pensão comprometidos em desinvestir de atividades relacionadas a combustíveis fósseis; e empresas e fundos comprometidos em investir em projetos de descarbonização e transferir tecnologia e recursos financeiros para países de renda baixa e média baixa.
O impacto desses limitados avanços durou pouco. A invasão da Rússia à Ucrânia em fevereiro de 2022 produziu forte mudança no mercado mundial de energia e a segurança energética – muitas vezes com retomada do uso de combustíveis fósseis, inclusive carvão, para substituir o gás natural russo na geração de energia – tornou-se prioridade.
Empresas de petróleo privadas ocidentais retomaram fortes investimentos em exploração e produção, que haviam estado em compasso de espera nos anos anteriores devido a riscos de redução da demanda (as empresas estatais de petróleo não haviam parado de investir e aceleraram seus investimentos, como é o caso da Petrobras).
Com este desenvolvimento, as emissões de carbono derivadas da produção e consumo de petróleo voltaram a aumentar na maior parte do mundo ocidental, acompanhando o que acontecia nas outras regiões, onde esse aumento havia sido contínuo. Desde 2023, e por meio de importação de gás natural de outros países (como Noruega, Qatar, Argélia e EUA), o uso do carvão foi novamente reduzido na Europa, mas China, Índia e Rússia continuam aumentando sua produção.
Outras mudanças no sistema internacional que afetam as negociações climáticas são a segunda guerra fria e duas guerras quentes – Rússia contra Ucrânia e Hamas contra Israel – em curso.
A guerra fria entre EUA (e aliados) e China (e aliados) tem várias dimensões: comercial, militar, de alta tecnologia e cibernética e colocou fim ao período de alta interdependência global vivenciado durante a pós-Guerra Fria. Na guerra Rússia-Ucrânia, Rússia é apoiada por China, Irã e Coreia do Norte (eixo das autocracias) e Ucrânia, pela Otan, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Taiwan (bloco das democracias). Israel é apoiado por EUA e Europa – que enfrentam profundos desgastes políticos em razão disso – e Hamas é apoiado por Irã e seus vassalos (Hezbollah, Síria, milícias iraquianas e hutus do Iêmen).
Neste contexto extremamente conflituoso, a cooperação internacional torna-se bastante mais difícil, o que dificulta avanços nas negociações climáticas. Em razão disso, os avanços nas COP 27 (2022) e 28 (2023) foram quase irrisórios (apesar dos discursos positivos dos diplomatas), e há chances de que pouco mude nas COP 29 (Baku, 2024) e 30 (Belém, 2025) – especialmente se Trump vencer as eleições presidenciais nos EUA e adotar posturas de seu mandato anterior, como retirar os EUA do Acordo de Paris e impulsionar o uso de combustíveis fósseis no país.
Que fatores podem contribuir para reverter o quadro e assegurar avanços na cooperação climática internacional?
Primeiro, o forte aumento dos extremos climáticos em todo o mundo tende a ampliar a pressão das sociedades sobre os governos para aumentar a ambição climática e cooperar internacionalmente. Caso China e EUA – as duas maiores potências climáticas, com respectivamente 26,57% e 11.56% das emissões globais em 2021 – consigam limitar sua animosidade a outras agendas, sem incluir o tema climático, o tema pode ter avanços mais significativos.
Alianças de cooperação incluindo outros países com altas emissões – por exemplo Japão, Brasil, Indonésia, Coreia do Sul, Canadá, México, Austrália, Arabia Saudita e Irã – também são necessárias.
Segundo, mudanças tecnológicas mais aceleradas no setor de energia. Um exemplo é a já iniciada “revolução solar”, que está tornando a geração de eletricidade por meio dessa fonte muito mais eficiente e que poderia reduzir a necessidade do uso de carvão e gás natural – tornaria a energia solar a fonte mais importante do mundo em torno de 2040-45 (sobre este tema, é muito relevante o dossiê especial publicado em The Economist na edição de 22 de junho de 2024).
Outro exemplo é o do hidrogênio de baixo carbono, que poderia substituir parcialmente o petróleo como combustível para transporte. Essas mudanças tecnológicas reverteriam a tendência atual – que é de aumento do uso energias de baixo carbono, mas também das fósseis –, reduzindo a necessidade das últimas. Essas mudanças em energia são relevantes porque para a grande maioria dos países em geral, e das cinco potências com as maiores emissões – China, EUA, Índia, União Europeia e Rússia – em particular, as emissões do setor de energia, compreendendo eletricidade e transporte, são as mais relevantes no total de emissões.
Terceiro, avanços em conter o desmatamento. A redução de vegetação primária, especialmente florestas, é fonte importante de gases de efeito estufa. A Amazônia sul-americana, por exemplo, é um importante sumidouro global de carbono; de acordo com pesquisa liderada por Carlos Nobre, sua supressão liberaria na atmosfera o equivalente a pelo menos 10 anos de emissões globais.
Neste tema, é decisiva a influência do Brasil, que tem mais de 60% da Floresta Amazônica sob sua soberania: o Brasil tem potencial de liderança efetiva na formação de uma coalizão para controlar o desmatamento nos países tropicais. É um potencial menor que alardeado pelo governo Lula (que considera o Brasil capaz de liderar o regime climático em geral, o que é exagero), mas é um potencial bastante importante.
Atualmente, o governo se apresenta fortemente comprometido com o controle do desmatamento na Amazônia, mas também com o aumento da exploração, produção e exportação de petróleo. Se esse compromisso com o petróleo avançar (o que é altamente provável), até 2030 o Brasil deve se tornar o quinto exportador global de petróleo do mundo, atrás apenas de Arábia Saudita, Rússia, Irã e Iraque.
O governo Lula justifica seu posicionamento dizendo que os dividendos do petróleo financiarão a transição energética e que todos os países estão aumentando a produção de petróleo. Enquanto a segunda parte do argumento é verdadeira, é importante lembrar que transição energética requer planejamento do longo prazo, algo em que o Brasil peca mais do que outros países e que o governo Lula já deixou de lado no passado – quando foi dito que os recursos do boom das commodities financiariam um reajuste estrutural da economia, o que, por requerer mudanças impopulares, não se concretizou.
Aumentar a dependência econômica brasileira de uma commodity que está chegando a seu pico de demanda global, sem garantia de planejamento do futuro, impactará na transição energética brasileira e os esforços de descarbonização. Se na conjuntura atual brasileira as forças favoráveis à exploração do petróleo são muito mais fortes do que as descarbonizantes, elas sairão ainda mais fortalecidas.
Esse movimento cria um círculo vicioso que vai na contramão do que seria necessário do ponto de vista do futuro da humanidade, traçando um futuro difícil para a descarbonização brasileira que tende a neutralizar os impactos positivos de curto e médio prazos da exploração de petróleo para a economia brasileira.
Sem mudanças de posicionamento, na COP de Belém (2025) o Brasil deve se apresentar como um agente duplo. De um lado, mostrará resultados consistentes de redução de desmatamento, devido ao controle de desmatamento na Amazônia – já em curso –, angariando, com isso, ganhos de soft power. De outro lado, perdendo capital climático em razão de sua visão distorcida de transição energética, sem respaldo na realidade empírica.
Larissa Basso é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Eduardo Viola é professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, professor titular aposentado da Universidade de Brasília, pesquisador nível 1B do CNPq, e coordenador do Comitê de Pesquisa em Economia Política Internacional da International Political Science Association.
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