Portugal às escuras: crônica de um apagão nacional
Na semana passada, em Portugal, vivenciei o dia em que se passou tudo menos a normalidade. O apagão, que afetou todo o país, me levou a refletir sociologicamente, observando as diferenças entre países, pessoas e comportamentos

Por Elaine Santos*
Morando em São Paulo desde criança, na década de 1990, aprendemos a conviver com as chuvas torrenciais e, consequentemente, com a falta de energia. Lembro — e talvez essa memória seja compartilhada por muitos — que, na primeira gaveta da pia da cozinha, tínhamos um pacote de velas. Naquela época, não havia celular, então a ideia era manter as velas à mão.
Normalmente, a energia caía por algumas horas, às vezes se estendendo madrugada adentro, mas sabíamos que logo voltaria. Isso nos acalmava, e tentávamos seguir a vida. De certa forma, aproveitávamos o escuro para fazer coisas diferentes, como jogar dominó à luz de velas. Também me recordo de irmos dormir e meu irmão, anos mais velho, me assustar, o que rendia uma bronca da minha mãe.
Contudo, na periferia paulistana, a ausência de energia, mesmo que por poucas horas, podia trazer problemas maiores. Sem luz, o medo da violência e de outros perigos aumentava. Ficar em casa, juntos, era a melhor saída.
De uns tempos para cá, em São Paulo, a Eletropaulo deixou de existir em 2018, e a Enel assumiu as operações. Percebo que a falta de energia durante as chuvas se tornou mais frequente. Como já escrevi nesta coluna, chegamos a ficar dias sem luz. Num momento em que somos cada vez mais dependentes do digital e da energia, não há dominó que nos faça suportar tantos dias.
Na semana passada, em Portugal, vivenciei o dia em que se passou tudo menos a normalidade. O apagão, que afetou todo o país, me levou a refletir sociologicamente, observando as diferenças entre países, pessoas e comportamentos. Chamo isso de “reflexão sociológica” porque, mesmo lidando com desafios práticos — como morar no décimo andar de um prédio e ter que subir escadas —, procurei manter a calma e meu senso de comunidade, pensando em como me adaptar e apoiar quem está ao meu redor. Vivo numa área residencial, quase uma zona dormitório, o que torna a experiência ainda mais singular.
A princípio, no meu trabalho, sem luz, achei que o problema fosse local. Porém, usando os dados móveis e checando as redes sociais, percebi que pessoas de todo Portugal, e até da Espanha, comentavam a falta de energia. Diferentemente de São Paulo, onde as faltas de energia eram quase rotineiras, aqui em Portugal o impacto pareceu amplificado pela surpresa. Pelo rádio, ouvi que a falta de energia era de âmbito nacional, algo “inédito”. Ainda no início da tarde, o Conselho de Ministros reuniu-se de emergência — sinal de que a situação havia escalado a ponto de se tornar, imediatamente, uma questão de Estado. Na Espanha também foi tratada como uma emergência nacional.
Tentei ser mais complacente com as pessoas ao meu redor, que, talvez por nunca terem passado por isso nesta escala, não soubessem que era hora de manter a calma e não correr às compras sem que isso fosse extremamente necessário. Logo começaram as especulações: “Teriam sido os russos? Foi um ataque?”. Continuei sentada em frente ao computador, esperando que alguém me dispensasse, já que meu trabalho depende quase totalmente de energia. Digo “quase” porque, em casa, após sermos liberados, usei um bom e velho caderno para escrever, inclusive este texto que compartilho com vocês.
Já na rua, soube pelo rádio que pessoas corriam aos supermercados em busca de mantimentos, mas alguns estabelecimentos logo fecharam, enquanto outros continuaram funcionando com geradores. Fiquei pensando se elas acreditavam que a falta de energia duraria dias ou semanas, já que, na minha cabeça, ninguém precisa de dez garrafas de cinco litros de água para algumas horas sem luz. Nesse ritmo, se a energia faltasse por mais tempo, sem os “ingredientes físicos” que tomamos como garantidos, a sociedade sofreria uma ruptura. Energia é isso.
Não costumamos prestar atenção nisso até que ela falte. Talvez, por ter crescido convivendo com essas interrupções, sem a dependência de um celular, eu encare essas faltas com mais naturalidade. Ainda assim, percebo que, como tudo está conectado, a ausência de energia afeta os telefones, os repetidores de internet e, eventualmente, o fornecimento de água. Em alguns lugares, isso já aconteceu. Por precaução, enchi dois baldes com água para garantir o mínimo caso o problema se prolongasse por mais de 24 horas, o que, felizmente, não ocorreu.
Numa escola próxima ao meu trabalho, por volta das 12h, os alunos brincavam enquanto esperavam os pais para irem embora. Os semáforos não funcionavam. No meu bairro, ao fim da tarde, percebi que as ruas estavam cheias de carros, sinal de que todos haviam voltado no mesmo horário. Também reparei no silêncio, uma quietude incomum que parecia refletir a pausa forçada na rotina — um não ter o que fazer. Sem notícias, sem telefone e sem internet, restou-me um rádio — sim, o velho rádio a pilha — para buscar informações. O jornalista, já pelo meio da tarde, dizia não saber se conseguiriam continuar transmitindo notícias ao vivo. Curiosamente, soube pelo rádio que muitos rádios a pilha foram vendidos naquele dia, e algumas pessoas comentavam que, após essa experiência, comprariam um. Como se redescobrissem a importância de algo tão simples, o rádio a pilha tornou-se o herói do dia.
Enquanto eu, em casa, observava o silêncio do meu bairro, soube pelo rádio que, em áreas mais centrais de Portugal e até da Espanha, pessoas aproveitavam o final da tarde ensolarada em bares — a falta de energia impôs uma pausa bem-vinda numa segunda-feira. Viver em diferentes áreas do país também dita comportamentos e reações.
Pelo rádio, ouvi uma das primeiras declarações de João Faria Conceição, do Conselho de Administração e da Comissão Executiva da REN (Redes Energéticas Nacionais). Ele explicou, de forma técnica, o que havia ocorrido: uma falha derrubou os sistemas de alta voltagem, desencadeando um efeito cascata que afetou Portugal e até a Espanha. Sem apoio da Espanha e sendo um país periférico, segundo ele, a situação ficou mais complexa. Quando o escutei, imediatamente pensei que o técnico também é político — e que até mesmo falhas elétricas envolvem decisões e prioridades que impactam a todos.
Quando a energia voltou, percebi pela comemoração das pessoas nos prédios. Sempre acho interessante, e até bonito, o fato de comemorarmos a volta da energia. O fundamento da nossa sociedade é a energia — aquilo que permitiu muitos avanços e que, quando falta, mostra rapidamente nosso retrocesso.
Neste texto, não vou me aprofundar nas explicações do que ocorreu — posso fazer isso em outro momento, e acho que vale a pena. Nossa dependência energética é tão grande que todos deveriam entender o mínimo do que aconteceu e saber como se prevenir. Ter em casa vela, um rádio, alguns alimentos a mais e, principalmente, manter a calma, quando possível, pode fazer a diferença. Algumas pessoas, como aquelas que dependem de oxigênio, são mais vulneráveis em situações assim e merecem maior atenção da comunidade.
Essas quase 12 horas sem energia em outro país me fizeram ver que, se, eventualmente, algo — artificial ou natural — deixasse o mundo ou grande parte dele sem energia por duas ou três semanas, seria o fim. A sociedade colapsaria. Nos grandes centros, uma semana sem energia já seria o caos: faltam água, comida, os hospitais entram em colapso. Somos frágeis demais e, talvez, mal-acostumados, no sentido de que aprendemos a ver tudo pronto, sem conhecer suas origens. Tudo depende de energia — e é justamente na sua falta que percebemos o quão despreparados estamos.
Por Elaine Santos*, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP
Este texto é uma reprodução autorizada de conteúdo do Jornal da USP - https://jornal.usp.br/
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