Reflexões sobre o Japão
Qual seria a chave para a “alma japonesa”? Acredito que esteja na busca silenciosa da natureza e da simplicidade um dos seus códigos
Decidi tentar rascunhar algo sobre o país onde servi durante quase três anos e meio, o período mais longo num só posto na minha carreira. Tarefa quase impossível diante da complexidade do Japão e do meu “filtro afetivo”. Mas, vamos lá.
Tóquio foi o meu terceiro destino na Ásia. Antes havia servido na Índia, entre 1984 e 87, e posteriormente na China, de 1994 a 1997. Nestas duas vezes, a imagem apriorística que fazia desses países correspondeu, mutatis mutandis, à(s) realidade(s) que encontrei: a parafernália e a exuberância da cultura indiana; na China, a paisagem de Pequim de então, onde apenas bicicletas, quase, trafegavam pela avenida Jianguomen levando pessoas ainda vestidas com os surrados uniformes da Revolução Cultural: os automóveis eram poucos e quase todos da marca Volkswagen. O meu imaginário se encaixava então na realidade que encontrei.
Ao descer no Aeroporto de Narita, em Tóquio, em 2001, deparei-me com uma paisagem “ocidental” semelhante à que encontrara em Washington, que eu acabava de deixar: vestimentas ocidentais, homens de terno escuro/preto, mulheres de tailleur, a contemporaneidade tecnológica. Somente o físico da população era distinto. Achei que me encontrava em um universo conhecido.
Ledo engano!
Logo percebi que o invólucro ocidental serve para camuflar uma alma profundamente “japonesa”, muito distinta até dos seus vizinhos continentais.
Lógico que é sempre assim, mas não com tal intensidade. Acredito que esteja aí uma das chaves – não única, é claro – do enigma: o caráter profundamente ilhéu da população que, isolada no arquipélago, confronta-se com enormes desafios não somente da natureza – tufões, tsunamis, terremotos, etc. – senão também de uma vizinhança poderosa e inamistosa, que o passado belicoso do país endossa. Isto a torna quase homogeneamente compacta.
Malgrado estes fatores segregadores, o Japão se construiu buscando nas civilizações vizinhas, sobretudo a China, que lhe transmitiu grande parte dos seus referenciais. Porém, “à la japonesa”, os transformou numa produção endógena com características próprias e incomparáveis. Esta foi a sua história, a meu ver: copiar…”nacionalizar”…e criar um produto próprio de grande qualidade.
Digo isto a partir do que “re-constatei” agora lá. As megalópoles formalmente se parecem cada vez mais: está-se em Nova York como em Tóquio; a paisagem pouco difere, a não ser pela arquitetura, ainda mais compacta e “brutalista” – arquitetonicamente falando – desta última, ou de Osaka. Este amálgama urbano se replica na vestimenta da população, sobretudo dos homens: o insubstituível terno preto, a camisa branca e a gravata escura; tailleur e saia preta para as mulheres; a fantasia fica somente para o(a)s adolescentes. Seriam “clones” de um anonimato necessário para despersonalizar o indivíduo a fim de melhor inseri-lo na sociedade, sobretudo no seu local de trabalho? A este respeito, sabemos que não existe o conceito de “meritocracia” no Japão como o entendemos no Ocidente: é a fidelidade ao chefe, ao superior, que define a ascensão do empregado na empresa.
Qual seria a chave para a “alma japonesa”? Esta uniformidade social se repercute em todos outros aspectos? Outro ledo engano: esta frieza aparente contrasta com a fineza dos gestos e das atitudes, que revelam sensibilidade e respeito profundo pelo “outro”. Ainda não encontrei um povo mais cortês e mais respeitoso nas minhas andanças, nem mesmo nos países islâmicos, o que fala por si mesmo. Desconfio, porém, que o cerimonial nos contatos no Japão sirva, antes, para criar uma distância respeitosa com o interlocutor, obstaculizando maior intimidade. Notei, aliás, que o mesmo ocorre entre os próprios japoneses.
Então, onde está a chave?
Acredito que esteja na busca silenciosa da natureza e da simplicidade um dos seus códigos. Esta é uma tradição milenar que decorre do conceito desenvolvido por eles apenas, do Wabi Sabi, “afilhado” do Zen-Budismo. O dicionário o define como “um ideal filosófico japonês, assim como uma abordagem estética centrada na aceitação da transitoriedade e da imperfeição dos objetos e dos seres humanos. Esta concepção é muitas vezes descrita como a do belo que é “imperfeito, impermanente e incompleto”. De cunho zen-budista, ele alerta o indivíduo para a finitude e metamorfose de tudo, dos homens e da natureza. Diante desta realidade última, será que o japonês contemporâneo consumista acompanha estes ensinamentos? Contemporaneidade e tradição (outro traço visível da sociedade japonesa, para mim).
O que mais me impacta, em tudo isto, é o seu profundo senso estético, presente em tudo: na decoração dos pratos nas refeições, no mobiliário minimalista, nos arranjos de ikebana, na elegância dos gestos. Acho, porém, que este conceito se corporifica sobretudo na beleza transcendente dos templos, tanto budistas quanto xintoístas.
Quioto, e sobretudo Nara, são, para mim, o ápice desta estética: ausência de qualquer cor que não seja a da madeira e um interior que apenas imagens preenchem: a mensagem que passa é a de recolhimento. O templo Horyu-ji, nas cercanias de Nara, é para mim, o ápice da beleza que qualquer monumento religioso pode atingir, em qualquer parte do mundo. Ao invés da sedução extrospectiva do douramento e das volutas barrocas, a mensagem é de interiorização ao abrigo da quase perfeição silenciosa da madeira. A busca ao sagrado se recolhe, assim, à alma. Horyu-ji é o máximo!
O que acho do Japão? Não sei.
Pós-moderno, com sua arquitetura contemporânea arrojada, com a robotização que presenciei nos restaurantes; com uma afluência e qualidade de vida invejáveis para a maioria dos países e uma sociedade homogênea que esconde a miséria nas tendas azuis que bordejam as margens do Edagawa, em Tóquio; com uma crescente despopulação decorrente, entre outras causas, do crescente desinteresse da juventude por sexo; com a obsessão em manter a pureza da raça, que obstaculiza a imigração… O Japão é um “case“.
É um “case” distinto de todas as outras civilizações em que tive o privilégio de viver por este mundão da Ásia. Como todas as outras. Tautológico, não é?
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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