30 julho 2025

Retratando a morte de Jean Charles de Menezes 

O dia 22 de julho de 2025 marcou o 20º aniversário da morte de Jean Charles de Menezes, o brasileiro de 27 anos confundido com um suspeito de terrorismo e morto a tiros pela polícia britânica na estação de metrô Stockwell, em Londres, em 2005. Stephanie Dennison reflete sobre as representações na tela e no palco do assassinato de Jean Charles e, em particular, sobre a única resposta audiovisual brasileira: o longa-metragem de Henrique Goldman, lançado em 2009, intitulado ‘Jean Charles’.

Cena do filme ‘Jean Charles’

Há cerca de 4,5 milhões de brasileiros vivendo no exterior, com 220.000 residentes na Inglaterra, a grande maioria dos quais vive e trabalha em Londres. A chamada segunda onda de imigração brasileira para a Europa, que ocorreu depois que o crédito e as viagens aéreas se tornaram mais acessíveis às classes trabalhadoras média-baixa e qualificada do Brasil, consistiu principalmente de jovens homens e mulheres em busca de maiores oportunidades de ganhar dinheiro. Jean Charles de Menezes, de Gonzaga, Minas Gerais, veio para o Reino Unido para trabalhar como eletricista em 2002, como parte da segunda onda. Um mural dedicado a Jean Charles, que foi assassinado pela polícia três anos após sua chegada a Londres, ainda está de pé do lado de fora da estação de metrô Stockwell como um memorial à perda da vida deste jovem trabalhador migrante nas circunstâncias mais terríveis.

Em julho de 2005, Londres estava em alerta máximo, devido a uma série de bombas que explodiram em trens do metrô e um ônibus em Bloomsbury, em um ataque coordenado por homens-bomba islâmicos, resultando em 52 mortos e mais de 700 feridos. Em 24 horas após receber a notícia de que Londres havia sido escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 2012, a cidade foi tomada por medo e pânico em um nível não experimentado desde a Segunda Guerra Mundial.

‘A incompetência da equipe policial resultou em Jean Charles sendo seguido até a estação de metrô Stockwell e o vagão do trem, onde policiais disfarçados abriram fogo e atiraram sete vezes em sua cabeça’

Uma segunda série de ataques, frustrada, ocorreu em 21 de julho, e a Polícia Metropolitana de Londres recebeu informações de que novos ataques terroristas eram iminentes. Um suspeito, o etíope Osman Hussein, estava sob vigilância em seu endereço no bairro de Tulse Hill. Jean Charles morava ao lado do suspeito. A equipe de vigilância, por uma mistura de incompetência e má gestão, começou a segui-lo na manhã de 22 de julho, pensando que ele era o suspeito. O fato de ele ter sido forçado a mudar seus planos de viagem quando a estação de metrô mais próxima estava fechada levantou suspeitas. A incompetência adicional por parte da equipe policial (walkie-talkies obsoletos que não funcionavam no subsolo não ajudou) resultou em Jean Charles sendo seguido pela escada rolante até a estação de metrô Stockwell e o vagão do trem, onde policiais disfarçados abriram fogo e atiraram sete vezes em sua cabeça.

Respostas criativas à morte de Jean Charles logo se seguiram, com a exibição de um documentário na televisão aberta do Reino Unido em 12 meses (e, portanto, antes da publicação do resultado do inquérito sobre sua morte), e depois um docudrama e três peças de teatro*, todos em 2009. Todas essas respostas detalharam os erros cometidos pela polícia e pela mídia na época, alimentando uma narrativa que continua a ser muito popular no Reino Unido sobre corrupção e incompetência na Polícia Metropolitana de Londres, além de sensacionalismo e notícias falsas nos tabloides. Todas também foram inequívocas em sua sinalização de erro judiciário (a Polícia Metropolitana foi multada por violar as normas de saúde e segurança, a família recebeu indenização, mas nenhum policial foi levado à justiça pelo caso). Tanto Ian Blair, o então Comissário da Polícia Metropolitana, quanto Cressida Dick, chefe da unidade especial responsável pela morte de Jean Charles, foram inocentados de qualquer culpa pessoal. Blair, que faleceu em 2025, semanas antes do aniversário da morte de Jean Charles, foi nomeado para a Câmara dos Lordes em 2010, e Dick foi promovido a Comissário da Polícia Metropolitana em 2017, para grande consternação da família de Menezes.

O longa-metragem Jean Charles

Apesar de 2% da população brasileira viver no exterior, é possível contar nos dedos de uma mão os filmes significativos que surgiram em que personagens brasileiros se envolvem e refletem significativamente sobre a vida além das fronteiras do Brasil. A coprodução Brasil/Reino Unido de Henrique Goldman, Jean Charles (2009), é o único longa-metragem de ficção a documentar a vida de um grupo de imigrantes brasileiros no exterior. Este retrato de uma comunidade ocupa dois terços da duração do filme.

Jean Charles começou como um projeto apoiado pela BBC, envolvendo Goldman, o diretor brasileiro radicado em Londres e sua produtora, a Mango Films. Após chegar à fase de roteiro, no entanto, a BBC Films desistiu do projeto. A separação da BBC parece ter sido causada pela determinação de Goldman em se concentrar na comunidade brasileira em Londres: “ Foi uma relação muito difícil porque eu sempre olhava do ponto de vista brasileiro, e eles queriam algo com a visão inglesa”. 

‘A “visao inglesa” não significava encobrir um crime para proteger os interesses nacionais, mas sim responsabilizar a Polícia Metropolitana e seu papel na morte de Jean Charles’

Para ser claro, essa “visao inglesa” não significava encobrir um crime para proteger os interesses nacionais, mas sim responsabilizar a Polícia Metropolitana e seu papel na morte de Jean Charles. 

No mesmo ano, o documentário Stockwell: Countdown to Killing, parte da longa série Panorama, pareceu atender ao desejo da BBC de contar a história do assassinato de Jean Charles, concentrando-se exclusivamente nas ações falhas da polícia. Após se desligar da BBC, mas mantendo Stephen Frears como produtor executivo, Goldman reescreveu o roteiro, juntamente com o roteirista brasileiro radicado em Londres, Marcelo Starobinas, para se concentrar exclusivamente em personagens brasileiros. O filme teve um bom desempenho nos cinemas brasileiros, mas nunca foi lançado no Reino Unido.

Para se inspirar em suas experiências de vida em Londres, tanto Henrique Goldman quanto, mais tarde, o ator Selton Melo, que interpreta Jean Charles, passaram um tempo com os amigos e familiares de Jean Charles, que moravam em Londres. Com exceção de Selton Melo, Vanessa Giacomo (prima Vivian) e Luis Miranda (primo Alex), os brasileiros que aparecem no filme foram recrutados entre a comunidade brasileira de Londres. A prima e colega de apartamento de Jean Charles, Patricia Armani, e o antigo chefe e amigo Mauricio Varlotta interpretam a si mesmos no filme, com sucesso.

‘A recriação das cenas é apresentada de forma quase idêntica no filme e nos dois docudramas feitos sobre a morte de Jean Charles’

É apenas no terço final do filme que o foco muda para os eventos que levaram à morte de Jean Charles, com uma recriação de seus movimentos finais: chegar à estação de metrô de Brixton; descobrir que ela está fechada; entrar em um ônibus e, em seguida, descer a escada rolante em Stockwell e sentar-se silenciosamente no vagão do trem. A recriação dessas cenas é apresentada de forma quase idêntica no filme e nos dois docudramas feitos sobre a morte de Jean Charles: Stockwell, exibido no canal aberto ITV em 2009, e Suspect: The Shooting of Jean Charles de Menezes, lançado em abril de 2025 no Disney Plus Channel. Jean Charles na tela não corre, não usa uma jaqueta ou mochila volumosa, não pula a barreira e não resiste à prisão. A polícia e a mídia britânica da época afirmaram o contrário.

Selton Melo assumiu o papel de Jean Charles logo após seu sucesso como traficante de cocaína de classe média e um patife adorável em Meu Nome Não É Johnny (2008). O Jean Charles da vida real era considerado tímido, modesto e de fala mansa, e é assim que ele é retratado tanto no docudrama da Disney de 2025 quanto em um novo documentário sobre o caso, Shoot to Kill: Terror on the Tube, que foi exibido no Channel Four do Reino Unido em 2024. A versão de Selton do personagem, assim como “Johnny”, esbanja charme e é extremamente confiante e à vontade em situações sociais. Os elementos de malandragem que acompanham a interpretação de Jean Charles no filme não foram bem recebidos por sua família em casa. Em contraste, os pais e familiares de Jean Charles atuaram como consultores, e sua mãe, irmão e primo compareceram à estreia do docudrama da Disney em Londres em abril de 2025. Na série de quatro partes, Edison Alcaide interpreta Jean Charles e um grande número de cenas o apresentam interagindo em português com seus colegas de apartamento. No docudrama anterior de uma hora de duração, de 2009, as poucas falas do ator Jano Morkorz são em inglês.

‘O documentário do Channel Four, de 2024, Shoot to Kill, investe fortemente na criação de uma sensação de medo que toma conta da cidade, e seu trunfo é uma entrevista exclusiva com um dos policiais que atirou e matou Jean Charles’

O documentário do Channel Four, de 2024, Shoot to Kill, investe fortemente na criação de uma sensação de medo que toma conta da cidade, e seu trunfo é uma entrevista exclusiva com um dos policiais que atirou e matou Jean Charles. Assim, apesar do nível tangível de cuidado em retratar o horror do que aconteceu no metrô naquele dia, a série de erros fatais cometidos pela Polícia Metropolitana é, em certa medida, amenizada pelo contexto trazido pelos ataques terroristas de 7 de julho e pelos ataques fracassados no dia anterior ao assassinato de Jean Charles. Nem o filme Jean Charles nem o docudrama da Disney de 2025 deixam a polícia tão impune.

Apesar de um membro da equipe de vigilância policial ter identificado Jean Charles inicialmente como IC1 (branco), pelo menos um outro membro da equipe afirmou que ele era o suspeito. O primo de Jean Charles, Alex (mestiço), afirmou, em relação ao erro policial, que Jean Charles era “branco, não mestiço”. Na época da morte de Jean Charles, o estudioso de história imperial Richard Drayton refletiu assim:

“Se a assinatura da África não estivesse visível no corpo do brasileiro Jean Charles de Menezes, ele teria sido morto a tiros em um metrô em Stockwell? O cabelo levemente crespo e sua pele bege pálida transmitiam algo mal interpretado pela polícia como um perigo estrangeiro.”

As implicações da incapacidade da polícia britânica de distinguir entre um brasileiro branco e um etíope negro mal foram discutidas à luz da morte de Jean Charles. Jean Charles, por viver ao lado de muçulmanos e por não ser branco o suficiente, tornou-se um dano colateral em uma guerra travada em um cenário internacional. O fato de as autoridades britânicas negarem qualquer irregularidade e de nenhum policial ter sido levado à justiça pela morte de Jean Charles serve, em última análise, para tornar manifestas as relações de poder assimétricas associadas a cidades globais como Londres.


Referências

*“Why Are There So Many Plays About Jean Charles de Menezes?”, Guardian 10.11.2009. Available at: Why are there so many plays about Jean Charles de Menezes? | Theatre | The Guardian

** Foi uma relação muito difícil porque eu sempre olhava do ponto de vista brasileiro, e eles queriam algo com a visão inglesa:

**Folha de S.Paulo – BBC cancela filme sobre Jean Charles – 05/02/2007

***The wealth of the west was built on Africa’s exploitation | Richard Drayton | The Guardian

Stephanie Dennison é colunista da Interesse Nacional e professora de Estudos Brasileiros da Universidade de Leeds, Inglaterra. Dirigiu a rede de pesquisa “Soft Power, Cinema and the BRICS”, que buscava investigar a relação entre atores não estatais nas indústrias culturais do Brics e estratégias nacionais de soft power.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

Cultura 🞌 Segurança 🞌 Terrorismo 🞌

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