01 janeiro 2010

Pré-sal Brasileiro: Uma Nova Independência?

O autor vê no pré-sal a possibilidade de mudar radicalmente o modelo de desenvolvimento brasileiro. O marco regulatório proposto pelo governo ficaria aquém dessa possibilidade, representando uma concessão à lógica do capital financeiro. A seu ver, a mudança radical passaria pelo retorno ao monopólio da Petrobras. A renda petroleira integralmente apropriada pelo Estado seria alocada segundo um plano estratégico de desenvolvimento sob clara liderança estatal.

A história da humanidade guarda profundos vínculos com o processo de apropriação social da energia. Nossa espécie, o Homo sapiens, tem cerca de duzentos mil anos. Na maior parte desse tempo viveu caçando e coletando aquilo que a fotossíntese, a energia do sol apropriada pela natureza, oferecia. O desenvolvimento da agricultura foi uma revolução. Há doze mil anos, nossa espécie aprendeu a controlar a fotossíntese auxiliada pelo ciclo hidrológico, também movido pelo sol. Foram selecionadas plantas e animais que se alimentavam dessas plantas, para proporcionar a alimentação, o transporte e o trabalho humanos. Surgiram as sociedades agrárias, que em poucos milênios se espalharam por todos os continentes. Mas eram sociedades bem limitadas. Utilizavam-se amplamente do trabalho escravo. Dependiam da natureza e do trabalho físico humano e de alguns animais para garantir a produção dos meios necessários à sua existência.

Finalmente, essa nova base técnica e o próprio sistema capitalista sofrem uma espécie de segunda revolução, no final do século xix, quando surgem as telecomunicações, o gerador, o motor e a transmissão elétricos e, principalmente, o motor de combustão interna à base de gasolina e de óleo diesel, que substitui os cavalos e as carruagens, dando origem à indústria automobilística. Do ponto de vista social, é a fase em que o capitalismo se monopolizou e em que se formaram os cartéis, associados ao sistema financeiro. Ocorreu, então, uma intensificação extraordinária da produção de bens e mercadorias. Sua circulação e seu consumo aconteceram em escala e velocidade sem precedentes, graças ao petróleo. Este tornou-se a principal fonte de energia dessa fase e do modo de vida urbano-industrial, que persiste até agora.

Tal fonte energética é a mais flexível, a que mais facilita a produção e o consumo. Permite mover máquinas sem depender de redes estruturadas e caras. A sua apropriação social permitiu uma intensificação extraordinária da produtividade do trabalho. Daí seu enorme valor. O valor excedente de sua introdução no processo social de produção e de circulação é enorme quando comparado ao custo de produzi-lo. Quando a indústria petroleira começou, a energia líquida disponível estava na razão de um para cem. Ou seja: gastava-se em esforço o equivalente a um barril de petróleo para obter cem barris. Hoje, a razão está em um para trinta: gasta-se de capital e trabalho humano o equivalente a um barril de petróleo para produzir apenas trinta barris. Mas o problema desse custo cada vez maior deve ser relativizado. A fonte alternativa ao petróleo mais competitiva hoje, o etanol brasileiro, tem uma relação de um para oito. E o biodiesel, o óleo diesel produzido a partir de vegetais, de um para um.

A conversão direta do sol em eletricidade, a energia fotovoltaica, tem uma relação semelhante. Hoje, o petróleo se produz a um custo de um a dez dólares o barril equivalente. E o seu valor no mercado oscilou, nos últimos anos, entre sessenta e cento e cinquenta dólares o barril. Um excedente enorme, de mais de cinquenta dólares por barril. Surge daí a renda diferencial, disputada no campo econômico, político e ideológico pelas grandes empresas e Estados. O sistema econômico mundial consome cerca de trinta bilhões de barris ao ano, permitindo a apropriação de um excedente econômico da ordem de dois trilhões de dólares anuais.

Não se pode vincular o problema a uma fonte natural. O problema está na sociedade, na sua organização para a produção. A demanda total de petróleo não é determinada a partir de um país, mas a partir da forma como a organização mundial da produção se dá hoje e como se dá a sua circulação, junto com a circulação de pessoas em escala global. O petróleo continua exercendo um papel essencial para que esta forma de produzir permaneça. Estamos falando do mundo real, das sociedades urbanizadas de hoje, com indústrias automobilísticas enormes nos países ricos e crescentes em países em desenvolvimento importantíssimos, como a China, por exemplo.

Mudança de paradigma levará tempo

De onde vem essa característica especial do petróleo? Hoje, no mundo, o recurso energético mais disponível em estoque é o carvão. O urânio também existe em grande quantidade. Em termos de fluxo, a quantidade de energia que chega à terra vinda do sol e que volta para o espaço após algumas transformações é imensa. Cada uma das três formas que a energia solar assume na sua ação sobre a terra – a energia hidráulica, a eólica e a da fotossíntese – tem, por ano, um valor maior que todo o estoque de petróleo acumulado. No entanto, em função do papel que o petróleo assumiu no sistema urbano industrial, que emergiu da Segunda Revolução Industrial, nenhum recurso energético natural contribui mais do que ele para fazer a roda do consumo girar. E o consumo, por sua vez, move a roda da produção. E esta faz a máquina de geração de excedente funcionar cada vez mais rápido. Podem-se imaginar mudanças nesse modelo urbano-industrial e a transição para outro, de menor uso de energia. Para que outras formas de energia desempenhem esse mesmo papel, no entanto, é preciso melhorar as condições técnicas de sua apropriação, para que elas usem menos capital e menos trabalho vivo. Os economistas ecológicos falam da necessidade de mudança desse paradigma. É necessário e é possível. Mas levará tempo. Não há neste momento força política global capaz de assegurar e acelerar essa passagem.

Está em curso, hoje, também, um processo de transição energética provocado pela discussão das mudanças climáticas e também pela perspectiva de exaustão das reservas de petróleo, pois o ritmo da descoberta de novas jazidas não dá conta do ritmo de crescimento do consumo. Mesmo assim, quando se observa a estrutura social de produção, a persistência do modelo de desenvolvimento urbano-industrial surgido das revoluções industriais, é preciso aceitar que o papel do petróleo é ainda extraordinário.


Há duas razões para a necessidade da transição energética para fontes alternativas. A primeira é a própria exaustão definitiva do petróleo e a segunda é o enfrentamento das mudanças climáticas. O primeiro problema, de qualquer maneira, terá de ser enfrentado, porque os recursos de petróleo convencionais estão-se exaurindo em razão da taxa atual de consumo, que se aproxima dos 85 milhões de barris de petróleo por dia. Isso significa que os dois trilhões de barris remanescentes de recursos convencionais conhecidos de petróleo vão exaurir-se de qualquer maneira, nas próximas três ou quatro décadas, dado que o consumo e a produção ainda estão aumentando. Um aumento que se verifica não obstante a preocupação com a questão da mudança climática e com a matriz carbonizada da economia mundial e as tentativas de busca de novas fontes de energia que permitam substituir o petróleo, seja em função de sua exaustão, seja da necessária redução de emissões de gases de efeito estufa.

A solução simultânea dos dois problemas exige investimento em ciência e tecnologia para amenizar os impactos que esta substituição terá na estrutura de produção e de consumo. Não é que seja desnecessária uma mudança de modelo de desenvolvimento social, das sociedades atuais para outras que usem muito menos o automóvel como meio de transporte individual, por exemplo. Mas, para que haja essa mudança de padrão, não basta apenas vontade: é preciso desenvolver as forças produtivas, investir nas novas tecnologias para que elas elevem sua produtividade. E, ao mesmo tempo, trabalhar para que ocorra uma mudança de modelo social.

O uso do petróleo e sua relação com as emissões de gás de efeito estufa constituem uma questão real que precisa ser entendida na sua totalidade. O vínculo maior da questão da poluição não é o vínculo natural físico, mas o vínculo social. Assim, o modo capitalista de produção, hegemônico no mundo inteiro, tem promovido uma espécie de necessidade permanente de induzir o aumento do consumo para permitir o aumento da produção e, assim, gerar excedentes econômicos que permitem a acumulação.


Na atual estrutura produtiva com 6,7 bilhões de habitantes no planeta, com cerca de 190 milhões de habitantes no Brasil, o sistema hegemônico permite que essas pessoas sobrevivam, ainda que grande parte delas de maneira desigual. Há uma assimetria entre países e dentro das sociedades: concentração do acesso aos bens e serviços em favor de elites. A maioria vive em condições precárias no mundo inteiro e também no Brasil.

O trilema que a humanidade enfrenta é: como produzir mais e distribuir melhor a produção para atender à necessidades de grande parte da população, fazendo uso de fontes de energia menos impactantes, que reduzem a produtividade do sistema econômico e o acúmulo de excedentes. A solução deste trilema passa pela alteração do padrão de consumo e pelo aumento e melhor distribuição da produção. Isso implica a necessidade do aumento da produtividade do trabalho e do capital pelo uso de fontes como o petróleo, geradoras potenciais de excedentes, e também pelos investimentos em tecnologia e ciência requeridos para avançar o processo de produção mediante a utilização de fontes menos impactantes.


O petróleo terá ainda um enorme valor enquanto persistirem as características básicas do atual modelo de desenvolvimento urbano-industrial e um papel central na viabilização da mudança do paradigma de produção e consumo existente e na própria transição energética. O petróleo manterá seu elevado valor por longo tempo, três ou quatro décadas, no mínimo. Quem controlar a apropriação de qualquer parte importante do uso desse recurso natural controlará parte do poder. Onde está esse petróleo remanescente? Em três fronteiras: na Ásia Central; na África, em países como a Nigéria e o Sudão; e, agora, no pré-sal brasileiro. Isso dá uma ideia do que está em jogo.

A importância política da intervenção estatal como forma de se apropriar de parte da renda extra criada pelo petróleo é relativamente recente. Claro, a intervenção estatal na economia é mais antiga. Foi ampla com a revolução socialista de 1917. Mas, especificamente, no caso do petróleo, surgiu em 1938, no México, com a criação da estatal Pemex. A criação da Opep, em 1960, é outro passo na compreensão política do problema da apropriação da renda petroleira. Com os choques de preços dos anos 1973–1979, este papel especial do petróleo se torna ainda mais evidente. O que está em disputa, não só aqui, mas em todos os cantos do mundo, hoje, é isso. O Congresso Nacional terá a responsabilidade extraordinária de decidir sobre quem ganhará com as grandes rendas a serem propiciadas pelos recursos do pré-sal, uma das últimas grandes fronteiras mundiais do petróleo.

Petrobras: industrialização, autossuficiência e pré-sal

A percepção do papel da apropriação social da energia, especialmente do petróleo e da indústria elétrica, nos processos de transformação social, induzidos pela industrialização e urbanização, esteve no cerne da luta dos brasileiros, nas décadas de 1940 e 1950. Essas lutas conduziram ao monopólio estatal do petróleo e à criação da Petrobras, Eletrobrás, Telebrás, do bnde e da csn como instrumentos indispensáveis para a possibilidade material de transformação da sociedade agrário-mercantil em outra.

Nos anos 1940/1950, percebendo a importância que passaria a ter o domínio da energia para o processo de modernização produtiva, nasceu a campanha “O petróleo é nosso”. Na esteira desse movimento, criou-se a Petrobras. A missão da Petrobras em sua primeira fase, nos anos 1950–1970, foi garantir que todas as regiões do País tivessem acesso aos derivados do petróleo, um fator essencial à modernização das condições de vida. A empresa foi criada com o desafio de encontrar petróleo e abastecer o mercado interno.
A produção nacional não atingia 1,6% do nosso consumo. Tomou-se a decisão de ampliar o setor de refino existente, com o objetivo de reduzir os dispêndios com a importação dos derivados de petróleo. A Petrobras cumpriu essa tarefa, principalmente com petróleo importado. A companhia intensificou a exploração e trabalhou na formação e especialização de seu corpo técnico. No esforço de garantir o suprimento, a empresa passou a desenvolver atividades fora do Brasil e descobriu, no período, o maior campo petrolífero do Iraque, chamado de Majnoon (o Maluco) dada a sua enormidade. Ele foi, todavia, nacionalizado.

Com o primeiro choque do petróleo em 1973 e o segundo, em 1979, criou-se uma nova situação, na qual a economia mundial entrou em crise. O paradigma keynesiano, de intervenção estatal definida, forte, entrou em crise, também, pois as taxas de acumulação do capital reduziram-se drasticamente. Países como o Brasil, que tinham embarca
do em um projeto de desenvolvimento acelerado, aprovisionado com financiamento externo, viram-se duplamente ameaçados: pela conta petróleo, extremamente alta, e pela inflação internacional combinada com as altas taxas de juro decorrentes da crise americana dos anos 1980. Essas condições levaram o Brasil ao limiar de uma crise mais profunda, e a Petrobras recebeu uma nova missão. Não encontrando petróleo em terra, a Petrobras, para assegurar sua missão de redução da dependência energética, migra para o mar. Em 1968, iniciaram-se as atividades de prospecção offshore, no recém-descoberto campo de Guaricema, Sergipe. Em 1974, encontrou-se a bacia que é, até o momento, a maior produtora do Brasil, Campos. A área inicial foi Garoupa, seguida pelos campos gigantes de Marlim, Albacora, Barracuda e Roncador. Nessa fase é que foi desenvolvida a tecnologia de exploração em águas profundas e ultraprofundas. Progressivamente, da exploração em lâminas de água de poucas dezenas de metros passa-se para centenas e, mais adiante, para mil, dois mil e, hoje, profundidades próximas a três mil metros. E assim o Brasil alcança a autossuficiência em 2006. Esta permitiu a estabilidade macroeconômica do País, mesmo recentemente, quando o preço do petróleo superou os cem dólares.

A estratégia da Petrobras de investir fortemente em produção e exploração no Brasil e no exterior tem-se mostrado acertada, por haver uma tendência de valorização definitiva do petróleo nesse cenário de pré-exaustão, apesar das restrições colocadas pela mudança climática. O gás natural já é uma possibilidade adicional de gerar valor, pois cada 150 metros cúbicos permitem a substituição de um barril de petróleo, além de proporcionar uma progressiva descarbonização.

Mas o esforço no segmento dos biocombustíveis e outras fontes renováveis, como a eólica e a fotovoltaica, constitui a base para criar, desde já, uma alternativa à exaustão final do petróleo e uma resposta definitiva para a descarbonização da matriz energética. Essa estratégia é fruto de um trabalho histórico, e o grande patrimônio não é o petróleo encontrado, mas a capacidade de encontrar petróleo, desenvolver petróleo, desenvolver gás natural e outras soluções para a inevitável transição energética da era pós-petróleo, incluindo os biocombustíveis e outras fontes renováveis. O valor da Petrobras está principalmente em sua corporação de 75 mil pessoas e no esforço histórico do povo brasileiro, que acreditou nela, que lhe deu apoio quando foi ameaçada de privatização, quando a chamaram de Petrobrax, no auge do neoliberalismo dos anos 1990.

A capacitação na área de exploração, desenvolvimento, produção e gestão, associada à interação com grandes organizações mundiais de ponta, permitiu à Petrobras desenvolver um novo modelo geológico ao longo de décadas, que previa a possibilidade da existência de um segundo andar de petróleo, sob a camada de sal, o que permitiria alcançar a autossuficiência.


A primeira descoberta de petróleo no pré-sal foi no bloco de Parati, em 2005. O primeiro poço com resultados espetaculares, no entanto, foi o 1-RJS-628A de Tupi. A perfuração do poço pioneiro começou em setembro de 2005. Quando se chegou à camada do pós-sal, em outubro, não se achou petróleo. Aquela era a oportunidade para testar o novo modelo geológico que vinha sendo construído há muitos anos e que mostrava a possibilidade de haver muito petróleo mais abaixo, no pré-sal. Decidiu-se aprofundar a perfuração: no início de maio de 2006, foi feita a reentrada no poço.


No começo de julho, veio a grande descoberta. Mas era apenas um poço. Fez-se, então, a partir de maio de 2007, o poço 3-RJS-646, de extensão, com o qual se procura medir a amplitude da jazida. E no começo de agosto, quando se descobre óleo, confirma-se o enorme potencial da jazida, avaliada depois entre quatro e oito bilhões de barris de tipo leve, equivalente a um ou mesmo dois terços de todas as reservas brasileiras. A anp foi avisada, como é obrigatório, por lei. O governo foi avisado. O presidente da Petrobras e o diretor de Exploração e Produção estiveram com o presidente da República, no Palácio do Planalto, por longas horas, avisando-o do significado da descoberta.

Hoje, os geólogos da Petrobras ainda não têm a dimensão exata das reservas de petróleo do pré-sal. Trata-se de uma reserva gigante, não há dúvida. Mas ainda não se conhece a extensão da formação do sal e do petróleo subjacente a essa formação, que tem mais de cem milhões de anos. Pode ser que a área com potencial se estenda além do Espírito Santo, que chegue a Sergipe, por exemplo. Alguns dizem que o sal-gema daquela região é da mesma natureza do das camadas que fecham os reservatórios de petróleo descobertos sob o mar em Campos e em Santos.

Reformas liberais e as propostas de Lula de 2002

Antes da eleição de 2002, houve um enorme debate no País sobre as formas da apropriação da energia pela sociedade. Basicamente, havia dois pontos de vista antagônicos.


Um procurava enquadrar essa apropriação dentro do plano de ideias liberais, mais amplo, que implicava uma reestruturação da produção sob hegemonia do capital financeiro. No fundo, era a resposta à crise do modelo de desenvolvimento capitalista de tipo keynesiano, com grande intervenção estatal e que, após um sucesso inicial, dos anos do chamado milagre do pós-guerra, encalacrara. No Brasil, essa reorganização começou tardiamente, no governo Collor. E se desenvolveu mais amplamente com fhc. Nos serviços públicos, a reorganização consistiu na privatização de vários setores, como o das telecomunicações e de parte do setor elétrico. No setor de petróleo, a reorganização consistiu na venda de grande parte das ações da Petrobras e na tentativa de mudar seu nome para Petrobrax, a fim de supostamente facilitar sua internacionalização. Foram criadas as agências de regulação desses serviços – anp, do petróleo e gás natural, Aneel, do setor elétrico, e Anatel, das telecomunicações – para garantir a rentabilidade dos investimentos e, consequentemente, atrair o capital internacional.

O ponto de vista oposto é o de que era essencial o controle social dos serviços públicos definidores do modo de vida urbana concreto que emergira da Segunda Revolução Industrial – do saneamento, das telecomunicações, dos serviços de energia elétrica, dos transportes. De que maneira fazer esse controle? Pode-se dizer, resumidamente, que, nesse campo, havia duas correntes. Uma, a de voltar ao esquema de subsídios, das tarifas sociais, para manter esses serviços a preços mais baixos e reduzir o custo de reprodução da força de trabalho. A outra, de certo modo reconhecia a necessidade de aceitar certas regras de mercado que estavam colocadas. Mas buscava apropriar-se de parte da renda proveniente do uso de recursos naturais, que permitiam muito mais produtividade do trabalho humano incorporado, especialmente os potenciais hidráulicos e as jazidas de petróleo. Buscava também controlar, no interesse social, os monopólios na prestação de serviços. Esta visão, de usar mecanismos de mercado e apropriar certas rendas de serviços públicos, foi a que afinal prevaleceu.

Decidiu-se aproveitar a chamada renda hidráulica e a petroleira, por exemplo, para criar as bases de uma mudança no modelo liberal. Havia base para isso. A despeito das privatizações, grande parte do setor elétrico – mais de 80% da geração, por exemplo, estava ainda em mãos do governo. O que se propunha era que as empresas vendessem energia por um preço apenas um pouco abaixo do valor de mercado e a diferença entre esse preço e o custo mais baixo da geração fosse apropriado por um fundo social. Na área do petróleo, na qual ainda se tinha o controle da Petrobras, propunha-se mudar o sistema de concessão do governo fhc. No livro A Reconstrução do Setor Elétrico Brasileiro (Sauer et al., Paz e Terra, 2003), escrito na época para detalhar essa proposta, propunha-se introduzir o sistema de partilha como mecanismo de o Estado ficar com a grande parte do excedente gerado na exploração e produção de petróleo.

No governo Lula, embora houvesse uma discussão da proposta para mudar o regime de concessão para o regime de partilha, isso não aconteceu. Faltou coragem política de enfrentar o interesse das petroleiras internacionais e privadas brasileiras e o capital financeiro para mudar o regime. Em 2002, achava-se que ainda havia expressivo risco de exploração e, portanto, a forma dos contratos de partilha ainda era válida e superior à dos contratos de concessão vigentes. O governo passou cinco anos ignorando os protestos que exigiam que ele mudasse o modelo construído pelos liberais.


No setor elétrico, um processo de discriminação das estatais levou ao chamado mercado livre de energia com preços extremamente favorecidos para os grandes consumidores. Este cresceu incrivelmente, de quase nada, até cerca de 25% do consumo total de energia do País, o que permitiu uma apropriação de parte do excedente, não em benefício público mais amplo, mas por um grupo restrito de empresas. No petróleo, foi mantido intacto o modelo das concessões, apesar dos protestos amplos verificados. Políticos, juristas, profissionais da Petrobras, sindicalistas protestaram contra todas as rodadas de licitação de blocos de petróleo promovidas pela anp no governo Lula: a quinta, a sexta, a sétima, a oitava, a nona, a décima. A discriminação contra a Petrobras já estava clara: a razão da suspensão da oitava rodada foi o fato de a justiça ter aceito que havia uma cláusula discriminatória contra a empresa na licitação, porque se limitava à proporção de blocos que ela podia adquirir. Vários setores do governo lutavam pela manutenção das regras liberais, a despeito de várias descobertas já feitas no pré-sal.

A despeito do crescimento das pressões para mudar o regime de exploração de petróleo, o projeto de realizar, em novembro de 2007, a nona rodada de licitação foi desenvolvido, os blocos foram escolhidos, anunciados e o leilão mantido até às vésperas de sua realização. Foi aí que, finalmente, o Presidente reuniu o Conselho Nacional de Política Energética e foram retirados da licitação os 41 blocos em torno de Tupi. Foram, porém, mantidos onze blocos do arco do Cabo Frio, arrematados pela ogx, que, sem reação do governo, meses antes recrutou os técnicos detentores de informações estratégicas e privilegiadas da Petrobras.

A proposta do governo: análise crítica

Depois da descoberta, anunciada em 2007, somente em meados de 2008 o governo nomeou uma comissão para elaborar novas leis para o setor. Essa comissão passou mais de um ano estudando o assunto, praticamente em sigilo. Há cerca de três meses, finalmente cumpriu sua tarefa: foram divulgados quatro projetos de lei para reformar a legislação do petróleo. Com isso, o governo praticamente acolheu todas as sugestões de movimentos sociais, mas deixou tudo em aberto, para, até mesmo, não executar nenhuma delas. Os contratos de partilha da produção eram uma proposta e uma solução em 2002, quando Lula foi eleito. Hoje, a situação é outra. As novas leis repõem a Petrobras no comando do processo de exploração, produção e venda do petróleo no País. Só aparentemente.
A direção da Câmara quer aprovar as novas leis até o final de dezembro, antes do recesso parlamentar de fim de ano, sob o regime chamado de urgência. Esse ritmo de votação é apressado e descabido. Por que a superurgência? Porque o governo precisa ter os grandes recursos que o petróleo pode efetivamente proporcionar para, o mais rapidamente possível, dedicá-los ao Fundo de Desenvolvimento Social, que uma das quatro leis apresentadas estabelece? Certamente que não.

Suponhamos que tudo corra de modo acelerado: 1) a legislação nova seja aprovada ainda este ano; 2) em 2010, o governo promova licitações e a Petrobras e outras empresas, sob um novo regime legal, o da partilha do petróleo obtido, disputem blocos do pré-sal; 3) em três ou quatro anos mais, após a assinatura dos contratos, as empresas explorem suas áreas e façam as instalações para colocá-los em produção; 4) nos três ou quatro anos seguintes, elas se dediquem, de acordo com o estabelecido no projeto de lei a respeito, a produzir o petróleo necessário para cobrir seus custos de produção, o chamado “óleo custo”, que embolsarão sozinhas; 5) então, finalmente, quando a produção começar a ser partilhada, a parte do governo vá, em primeiro lugar, para um Fundo de Desenvolvimento Social e, depois, quando esse fundo der frutos, seus rendimentos sejam distribuídos para as atividades econômicas e sociais pretendidas. De quanto tempo se está falando? Se tudo der certo, só lá pelos idos de 2018 ou 2020 é que os recursos aparecerão no fundo. Somente depois, talvez em 2022, seus rendimentos terão escala para financiar a “nova independência” do País. Por que a pressa, portanto? Porque as eleições estão bem próximas e essas novas licitações pressupõem grandes negócios? Dias atrás, logo após a divulgação da proposta da nova legislação, o presidente da República esteve em Nova York e grandes empresários lhe proporcionaram um jantar para tratar de investimentos no País. Segundo o jornal Valor, o ágape custou mais de setecentos mil dólares. E duas empresas do setor de petróleo, uma de empresário brasileiro, a ogx, e outra multinacional, a Exxon Mobil, pagaram a maior parte da conta: cada uma delas, duzentos mil dólares. A pressa das petroleiras internacionais em se apossarem do direito a grandes reservas de petróleo é visível. E fácil de compreender: suas reservas são uma fração mínima do que eram nos anos 1960, quando, de certo modo, mandavam no mundo. Mas essa pressa não é o que interessa ao País. Deve-se fazer a avaliação mais precisa do petróleo ainda não leiloado. A contratação da Petrobras para concluir o processo exploratório, isto é, conhecer as acumulações, seus limites, desenvolver um plano de avaliação e desenvolvimento da produção, é essencial. Assim, saber-se-á com certeza se há oitenta, cem, duzentos ou mais bilhões de barris.

Só assim haverá como planejar a produção. Não se pode esquecer que a própria Opep não produz sem plano. Ela articula o equilíbrio de oferta e demanda e tem como preço-alvo estratégico o petróleo entre sessenta e oitenta dólares o barril. As formas básicas de operar a indústria do petróleo – monopólio público operado por empresa estatal ou a contratação para prestação de serviços, produção compartilhada e concessão de áreas – já foram bastante expostas. Não se destacou, no entanto, o seguinte: o monopólio público exercido por operadora estatal é a forma mais simples e mais amplamente utilizada. É o regime adotado pela Arábia Saudita e por todos os outros países com grandes reservas, como o Irã e a Venezuela. Quando necessário, subcontratam a prestação de serviços e, raramente, a produção compartilhada. Os outros dois regimes – o da partilha e o das concessões – eram hegemônicos em outra época, nos anos 1960, quando as grandes multinacionais do petróleo, as chamadas Sete Irmãs – Shell, Esso, British Petroleum e outras – detinham perto de 90% das reservas mundiais, em comparação com menos de 10% que detêm hoje. Atualmente, as Sete Irmãs do petróleo, como disse o Financial Times recentemente, são as companhias nacionais: a Saudi Aramco, a Gazprom russa, a cnpc chinesa, a nioc iraniana, a pdvsa venezuelana, a Petrobras brasileira, e a Petronas da Malásia. O regime de monopólio público exercido por operadora estatal passou a ser adotado na medida em que os países mais pobres foram-se dando conta do enorme excedente gerado pelo petróleo e da necessidade de controlá-lo.

Não se pode definir um plano de exploração para o petróleo do pré-sal sem conhecer direito essa reserva. A primeira decisão sobre os campos gigantes de petróleo do pré-sal deveria ser a contratação da Petrobras, que os descobriu, para avaliar toda a sua extensão, mediante um contrato com o governo pelo custo do serviço. Petróleo é, cada vez mais, um recurso geopolítico. As grandes reservas mundiais estão sob o controle dos Estados nacionais e de suas empresas estatais. A produção mundial de petróleo, hoje, está em cerca de 85 milhões de barris por dia, dos quais a Arábia Saudita produz aproximadamente dez milhões, e os eua consomem em torno de 22 milhões de barris diariamente.

Suponhamos que o Brasil tenha cem bilhões de barris no pré-sal, que é mais ou menos o que se está avaliando, na opinião de diversos analistas. Se decidir explorar essa reserva em trinta anos, o Brasil colocará no mercado cerca de dez milhões de barris por dia, mais ou menos como a Arábia Saudita faz hoje. Mas a Arábia Saudita não foi ao mercado sozinha, nem deixou o mercado decidir por ela. Ajudou a formar a Opep. Por quê? Porque a entrada de um grande ator no mercado mundial de petróleo tem consequências sobre os preços. Qual o preço do petróleo hoje? Falava-se, antes da crise, que os biocombustíveis teriam espaço, mas que a ameaça era uma crise internacional, que jogaria os preços do petróleo para baixo. Mas a crise veio e o preço do petróleo já está de novo mais ou menos na faixa-alvo da Opep, entre sessenta e oitenta dólares por barril. Portanto, a tese de que o petróleo continua sendo de grande valor é robusta. E reforça, também, a hipótese de que a retirada do petróleo do subsolo e sua conversão em moeda, qualquer que seja ela – dólar ou yuan – pode não ser inteligente. Hoje, por exemplo, se esse dinheiro obtido com a exploração do petróleo ficasse aplicado como as reservas brasileiras, seria mau negócio. O dólar é comprado com títulos da dívida pública para não provocar inflação interna, com as taxas de juros brasileiras – a Selic, a 8,5% ao ano. E fica aplicado lá fora em títulos do Tesouro dos eua, que estão pagando menos de 4% ao ano. Os dólares também poderiam ter outras aplicações.

O fundo soberano que se pretende constituir, com um dos projetos de lei encaminhados pelo governo ao Congresso, poderia, por exemplo, comprar grande parte das ações da Petrobras que estão hoje sob controle estrangeiro. Mas também esse não é um bom negócio agora, quando se está mudando o marco regulatório do petróleo no País: depois da mudança, provavelmente, o preço das ações estará valendo menos. A valorização das ações da Petrobras depende da evolução de sua capacidade de produção, da taxa de novas descobertas e de sua capacidade de converter esses fatores em lucros futuros. Mas depende, fundamentalmente, de quão obediente a Petrobras é às regras do mercado financeiro, de quanto o governo brasileiro vai permanecer fiel à ortodoxia financeira. Teremos capacidade de compreender essas coisas, de construir um caminho próprio? Ou seremos sempre escravos das regras do grande capital? Não tenhamos dúvida. O capital financeiro aí está, em busca de aplicações rentáveis. Quer que o governo se comporte dentro de suas regras.

Projeto nacional de desenvolvimento

Para fugir dessa sina o País tem de ter um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social, um plano. Que plano é esse?

Ele deve incluir a educação, mas não existem planos nessa área. Eles não existem, nem existe capacidade de gestão para aplicá-los na dimensão necessária, de vinte a trinta bilhões de dólares por ano. O plano deve incluir, também, a saúde, que se vincula à prevenção, ao saneamento, à infraestrutura, ao ambiente urbano. Nessa área temos o sus que, como concepção, é um projeto de referência. Porém, aponta para onde se deve ir e não tem recursos para chegar lá. O modelo agrícola brasileiro também precisa ser repensado. Precisa-se incorporar melhor a grande massa de população que ainda vive no campo e planejar melhor a ocupação do território brasileiro, ainda em grandes vastidões inexplorado, ou mal explorado, depredado, como é o caso da Amazônia. O plano deve tratar de nossa infraestrutura, especialmente a de circulação dentro do espaço urbano e entre os espaços econômicos e geográficos do País. O sistema existente é o pior possível: muito intensivo em uso de energia, poluente e ineficaz. Precisa ser mudado para valorizar o transporte ferroviário, fluvial, a navegação de cabotagem, o transporte urbano metroviário.

Como se vê, um plano nacional de desenvolvimento econômico e social exige um grande esforço. E o País não está preparado para isso. O que é o nosso Ministério do Planejamento hoje? Não passa de um órgão de implementação e fiscalização do orçamento. O governo não tem um plano estratégico. O que ele apresentou para tratar do petróleo do pré-sal?

Nos quatro projetos de lei enviados ao Congresso, o governo, basicamente, concede ao Executivo, especialmente ao presidente da República, e a alguns segmentos federais dependentes da Presidência, o poder de arbitrar o acesso à exploração do pré-sal. Por que quatro projetos de lei e não apenas um? Para dividir o foco do problema e ressaltar o papel do coordenador central, que é o Executivo. O primeiro projeto é o que estabelece o regime de partilha. Ele era relevante em 2002; hoje, não é mais. Agora, a partilha foi criada para manter a aura de que existe risco no projeto de exploração do pré-sal. Para dizer que o Estado brasileiro não sabe administrar esse risco e que, portanto, deve chamar os especialistas na administração de risco: o grande capital financeiro internacional. Isso não é verdade.


Quais são os riscos da exploração de petróleo? Podemos dividi-los em quatro categorias: o geológico-geofísico, da exploração das áreas para localizar o petróleo; o tecnológico e de engenharia, para determinar as estruturas de produção a serem instaladas nas áreas para tirar o petróleo; o financeiro, com o risco de reunir capitais e promover o investimento; e o risco comercial, de saber comercializar o petróleo num mercado complexo.

O risco exploratório no caso do petróleo do pré-sal é pequeno e pode ser praticamente eliminado, se houver interesse. Aliás, no projeto de lei da partilha, o governo admite que pode reduzir esse risco. A anp foi encarregada de furar alguns poços no pré-sal para avaliar as reservas e para isso a agência já está tratando com a Petrobras. Mais do que isso, na lei enviada ao Congresso, no seu artigo 7o, o governo estabeleceu que o Ministério das Minas e Energia “poderá” fazer a avaliação prévia das jazidas. Não deveria ser “poderá”. Deveria ser: o ministério “deverá” fazer a avaliação prévia das jazidas. A avaliação leva, possivelmente, dois a três anos. Com isso, pode-se delimitar melhor o pré-sal. Saber, por exemplo, se ele se estende à Bahia, ao Sergipe. E se faz discussão do plano nacional de desenvolvimento econômico e social. Infelizmente, no entanto, o “poderá” que está no pl da partilha está em linha com todo o resto do marco regulatório anunciado. Este é uma espécie de estrutura circular. Parece que está tudo institucionalizado: ouve-se o Conselho Nacional de Política Energética, a nova empresa, a Petrossal, a anp. Mas, no fundo, tudo está centralizado no poder do príncipe, todos os outros órgãos são demissíveis a qualquer hora pelo presidente da República. Poucas vezes na história do País se enviou ao Congresso para referendar um mandato de tão elevado impacto econômico. Se forem os cem bilhões de barris que muitos supõem, a serem explorados em trinta anos, é uma receita que fica na casa de meio a um bilhão de dólares por dia.

O papel atribuído à Petrossal reforça o caráter centralizador e arbitrário do conjunto dos projetos. Como funciona a indústria do petróleo, em geral, no caso das licitações? Concorre um consórcio de empresas ou uma empresa única. Se é uma só, ou ela é a própria operadora, ou contrata uma operadora de sua escolha. Se é um consórcio, os sócios se acertam e escolhem uma operadora. E fazem um joa (Joint Operation Agreement), que é o instrumento pelo qual se definem as regras da operação. O operador vai tomar as decisões de exploração, quantos poços vai fazer, em que prazos, e submete algumas decisões aos consorciados. E faz o cash call, chama o capital para os investimentos. Como seria pelas regras da legislação enviada ao Congresso? Se for a Petrobras que ganha a licitação sozinha, ela vai decidir o que fazer junto com a Petrossal. Existirá um comitê operativo para cada área licitada, no qual a Petrossal tem metade dos votos além do poder de veto. Como a Petrossal poderá, em última instância, decidir melhor que a Petrobras, em todas as questões envolvidas no projeto de aproveitamento dos recursos do bloco licitado? São decisões que envolvem conhecimento sobre uma enorme gama de temas: da geologia, da engenharia, do financiamento, do comércio mundial de petróleo. Por que o governo acha que a Petrossal, uma empresa que nascerá agora, com um conjunto de profissionais já definido como pequeno, deve ter a última palavra e não a Petrobras? É porque existe no núcleo central do governo uma desconfiança em relação à Petrobras. A situação é ainda mais complicada se, nas licitações, a Petrobras fizer uma proposta perdedora e, como manda a lei, tiver que ficar obrigatoriamente como operadora e com 30% do capital do investimento no bloco licitado.


Toda essa confusão resulta do fato de o governo, de certo modo, ter aceito todas as críticas que eram feitas e, em princípio, reposto a Petrobras no posto estratégico de exploração do petróleo no País. Mas, na prática, ter feito isso de um modo ambíguo, que permite exatamente fazer o contrário. Esse bloco pode não ser licitado e pode ser entregue diretamente à Petrobras. A Petrobras será operadora de todos os campos e em tese vai contratar todos os fornecedores e ampliar a fatia nacional dos negócios. A Petrobras vai ser, possivelmente, a empresa escolhida para comercializar o petróleo. Mas, pode não ser. A Petrossal pode decidir que a Exxon Mobil ou a ogx deve comercializar o petróleo, por exemplo.

E essa penumbra, essa incerteza, tem claramente um propósito. Deixa a ideia de que existe risco, abre o espaço para os grandes operadores do risco que são os do sistema financeiro. O País abre mão de seu projeto, de seu plano. E se mantém sob o controle do grande sistema.

Vejamos em detalhe os números do balanço da Petrobras (Tabela
1). Isso permitirá uma espécie de radiografia do que acontece no setor de petróleo no Brasil hoje, quando a estatal tem quase o monopólio da produção. E ajudará a ver como pode ficar no futuro, com o sistema híbrido que o governo pretende estabelecer. Como se sabe, o governo quer manter a abertura estabelecida para o capital privado com o sistema de concessões criado em 1997. E, para as áreas do pré-sal e outras consideradas estratégicas, quer estabelecer o sistema de partilha da produção.

Do balanço destacam-se, em primeiro lugar, no valor líquido adicionado pela Petrobras, 97 bilhões de reais como renda paga aos governos. Esse número corresponde a 85 bilhões, transferidos à União, aos Estados e aos Municípios por conta de royalties, participações especiais e bônus exigidos nos contratos de concessão atuais, mais doze bilhões, de lucros e dividendos repassados ao governo federal em função dos 40% de ações que tem da empresa. A soma corresponde a praticamente 70% de toda a renda extra agregada pela Petrobras. Assim, para cada um dos 800 milhões de barris produzidos em 2008, cerca de 125 reais ou setenta dólares por barril foram apropriados publicamente. Isso significa que o País, mesmo mantendo a legislação atual, deve aumentar, e muito, a receita dos governos, graças ao crescimento da produção com as jazidas do pré-sal.

Numa escala de países com as maiores reservas de petróleo, em primeiro lugar vem a Arábia Saudita, com 264 bilhões de barris. O Brasil estava no 17o lugar, com 14 bilhões de barris. Com as primeiras descobertas do pré-sal, passou para 20 bilhões, foi para o 12o lugar, logo após os Estados Unidos.


Quanto de petróleo existe no pré-sal? Oitenta bilhões de barris? Cem? Duzentos bilhões? Hoje, sem o pré-sal, produzimos dois milhões de barris de petróleo por dia. Se tivermos cem bilhões de barris, poderemos produzir, digamos, por trinta anos, quando se estima que a era do petróleo já estará passando, dez milhões de barris por dia. Isso daria, partindo das contas da Petrobras já citadas, uma receita estatal extra cinco vezes maior que a do ano passado, que foi de 97 bilhões. Ou seja, de cerca de 500 bilhões de reais por ano, um número próximo de toda a arrecadação atual de impostos no Brasil, que é de 800 bilhões de reais.

Há um consenso, até mesmo com as grandes petroleiras estrangeiras, de que a fração que cabe aos governos pode aumentar, nos novos contratos a ser feitos. Suponhamos que essa participação estatal aumente dos atuais 70% já vistos, para 80% ou mesmo 90%, seja por um aumento das participações especiais nos contratos de concessão, como preferem as petroleiras, ou pelo sistema de partilha, proposto pelo governo. Isso resolve o problema da apropriação da renda do petróleo? Não. Hoje, os governos destinam esses recursos para cumprir metas de superávit primário, pagar os juros de sua enorme dívida interna e para outros fins, que não constituem, minimamente, um plano estratégico para mudar o padrão de desenvolvimento do País. A multiplicação desses recursos, pelo aumento da quantidade de petróleo a ser produzida com as jazidas do pré-sal pode, inclusive, agravar alguns problemas da economia brasileira. Em primeiro lugar, porque a perspectiva clara que está colocada é a de uma ampliação da participação no setor por parte das empresas estrangeiras e de empresas privadas, supostamente nacionais, mas associadas intimamente ao capital estrangeiro.

O que os movimentos populares propõem

A proposta básica é eliminar a especulação inútil, medir a reserva de petróleo no pré-sal e explorá-la de acordo como um plano nacional de desenvolvimento. O modelo de partilha proposto pelo governo não conta com apoio de movimentos sociais, defensores da campanha “O Petróleo tem que ser nosso”, que submeteram ao Congresso, com subscrição de cerca de duas dezenas de deputados, um projeto alternativo. O modelo que os movimentos sociais defendem propõe: a) conclusão do processo exploratório, mediante contrato com a Petrobras, para dimensionamento e avaliação das reservas; b) restauração do monopólio estatal do petróleo; c) reestatização de 100% da Petrobras, via recompra das ações, e capitalização com reservas; d) desenvolver um plano nacional de desenvolvimento econômico e social: educação, saúde, urbanização, habitação, saneamento, mobilidade, inclusão digital, portos, aquavias, ferrovias, trens urbanos, ciência e tecnologia, desenvolvimento e reforma agrária, e recursos para promover a transição energética sustentável; e) planejar a produção do petróleo no ritmo necessário à capitalização do Fundo Social para financiar tal plano. A avaliação dos movimentos sociais é de que não faltarão recursos financeiros nem tecnológicos, pois com o controle das reservas de petróleo garante-se o financiamento necessário para sua produção pela Petrobras, detentora da maior capacitação na área do pré-sal e com acesso garantido a todas as tecnologias de ponta disponíveis no mundo. Finalmente, para tratar devidamente da nova situação criada pela descoberta do petróleo do pré-sal, que pode ter extraordinárias repercussões na vida do povo brasileiro, os movimentos sociais propõem um plebiscito, a ser convocado concomitantemente com as eleições presidenciais de 2010, com duas perguntas:

1) a União deve retomar e exercer o monopólio sobre o petróleo e promover sua extração e produção vinculada exclusivamente ao financiamento de um plano nacional de desenvolvimento econômico e social?

2) a Petrobras deve ser reestatizada e ser a executora do monopólio?
Na campanha a ser feita para o plebiscito, as forças progressistas do País acreditam ser possível aprofundar a compreensão do ponto central: o de que as extraordinárias rendas que o petróleo propicia hoje – e deve continuar proporcionando nas próximas duas ou três décadas, pelo menos – deveria servir a um novo plano de desenvolvimento econômico e social capaz de mudar radicalmente o Brasil.

É Ph.D. em Engenharia Nuclear, professor titular de Energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da usp. Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras (2003–2007).

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