01 julho 2010

Críticas e Comentários

O ministro José Dirceu honrou-me com uma resposta ao artigo em que cogitei uma eventual aliança pt-psdb em torno de projetos prioritários para o Brasil – no meu entender, basicamente uma reforma política que afastasse, até mesmo da posição de coadjuvantes (cada vez mais incômodos), aquelas lideranças políticas que agem de maneira pouco ortodoxa.


O ministro José Dirceu honrou-me com uma resposta ao artigo em que cogitei uma eventual aliança pt-psdb em torno de projetos prioritários para o Brasil – no meu entender, basicamente uma reforma política que afastasse, até mesmo da posição de coadjuvantes (cada vez mais incômodos), aquelas lideranças políticas que agem de maneira pouco ortodoxa. Não contesto as diferenças que ele aponta entre pt e psdb. Ele próprio, aliás, ao evocar artigos meus anteriores, várias vezes cita passagens em que as assinalo, como quando atribuí ao pt uma prática democrática e ao psdb um discurso (não necessariamente uma prática) republicano. Conviria lembrar que este texto meu foi uma exposição que dei, a pedido do então ministro Francisco Weffort e para um pequeno grupo de pensadores políticos, no Ministério da Cultura, e que saiu em publicação oficial ainda no governo Fernando Henrique. O texto está na Internet, no endereço http://renatojanine.pro.br/Brasil/democraciapetista.html.

Onde, então, posso e devo responder a José Dirceu? É que toda a sua contestação se baseia em pontos que podem valer para sua polêmica com os líderes tucanos a quem critica, mas ignoram o ponto essencial do artigo que ensejou sua contestação. Assim, Dirceu elenca uma série de grandes avanços sociais do governo atual. Concordo e admiro. Ele sabe que votei seguidas vezes no pt e que trabalhei – por um tempo – no atual governo. Contudo, o que falta – e o que incomoda a muitos, como eu, que votaram no pt seguidas vezes – é um avanço equivalente nos mores políticos.

Dizendo de outra forma: do ponto de vista social, o País avançou. Mas cresceu, no plano político? Ou: Dirceu mostra uma série de benefícios. Não tenho dúvidas de que os mais pobres foram beneficiados pelas políticas sociais. Mas tornaram-se eles mais sujeitos das decisões políticas?


Para quem quiser situar-se à esquerda, este é o ponto crucial. Não se trata apenas da diferença entre dar peixe e ensinar a pescar, que tem sido o eixo das críticas tucanas aos projetos sociais do governo Lula – e às quais o governo pode responder, sem maior dificuldade, que é preciso fazer as duas coisas, uma emergencialmente, outra a longo prazo. O que está em jogo é mais do que isso: é o papel da política. Uma diferença essencial entre o velho populismo que o pt tanto criticou – e que o pt nasceu justamente por criticar – e a política proposta pelo pt era que os trabalhadores não queriam mais ser cooptados pela máquina pública. Exigir autonomia para os sindicatos, acabando com o infame direito do governo a intervir neles quando se mostrassem combativos, exigir o fim do apoio policial às empresas que não queriam negociar livremente com seus empregados, exigir as liberdades democráticas, tudo isso significava a passagem da condição de beneficiário cooptado para a de sujeito das decisões.


Mal comparando, se penso no filme Lula, o Filho do Brasil, não há dúvida de que dona Lindu, mãe de nosso presidente, prosperou muito ao deixar o casebre no interior da Bahia e, com trabalho duro, conseguir casa, televisão, dignidade na região do abc. Se a película se limitasse a mostrar o jovem Lula como aprendiz no Senac, procurando uma namorada, comprando uma casa, sua mãe vivendo seus últimos dias numa casa decente, com televisão, teríamos uma espécie de vitória do Brasil na inclusão social dos mais pobres. Uma inclusão, porém, feita sem que eles fossem seus sujeitos. Até aí, poderíamos ter até mesmo uma película mostrando o bem que o capital industrial fez pela vida dos imigrantes que vieram do mundo rural.


Mas a diferença, no filme, é a entrada de Lula no sindicato e a mudança que a vida sindical – e política – conhece no Brasil, a partir da luta dos operários do abc. É isso o que se chama poder.


Por que a melhora na condição de vida, apontada pelo ministro Dirceu, não basta, na história do pt? Porque surge a exigência de protagonismo. Há que tomar o sistema sindical daqueles que conciliam com a ditadura. Há que acabar com um esquema paternalista que premia o pelego e pune o trabalhador. E vejam que nem falo na repressão e no seu caráter sórdido. Porque, quando o abc se rebela no fim dos anos 1970, não é só contra a ditadura militar: é também contra o modelo do sindicato atrelado. Mesmo sem a polícia política, aquilo não se justificava mais.


É este o cerne do meu artigo e de sua proposta talvez insana: não sendo político, tenho o direito de sugerir o inviável; sendo intelectual, tenho o dever de tratar mesmo do impossível. Agora, quando o ministro Dirceu, depois de enumerar os benefícios e ganhos sociais do governo atual se limita, em matéria política, a dizer no final de seu artigo que
No caso da reforma política, que devia ser um tema suprapartidário, a conduta do psdb revelou apego ao atual sistema político-eleitoral que estimula a corrupção, o caixa dois nas eleições, as barganhas por emendas e nomeações, as licitações dirigidas e o desvio de dinheiro público. Já aprovado no Senado, inclusive com o apoio do psdb, o texto da reforma política foi rejeitado na Câmara dos Deputados porque o psdb mudou de lado. Sem a reforma política, aliada a outras medidas, não será possível aprimorar a administração pública, adotando melhorias como o voto uninominal, o financiamento público nas campanhas e a fidelidade partidária, permito-me dizer que isso é pouco, no conjunto do artigo dele. O problema que levantei não foi o do social, separado do político, que por sua vez seria alvo de uma reforma específica. Não, a questão é como fazer que os movimentos sociais ou os grupos sociais que melhoraram de vida se tornem sujeitos de sua história. Isso significa sair do benefício para entrar no protagonismo. É claro que seria muito bom levarmos para o Brasil inteiro as condições de vida de dona Lindu no final dos anos 1970. Será incrível se até 2016, como sugeriu outro dia Marcio Pochmann, um dos melhores quadros do atua-l governo, for possível extinguir a miséria em nosso País. Mas a questão política decisiva hoje em dia não é a de beneficiar. É a de empoderar, para usarmos o difícil neologismo que nos vem do inglês e que significa passar da condição passiva à ativa. A essa questão, José Dirceu não respondeu. Mas mesmo assim agradeço a atenção e a seriedade com que se dedicou a examinar e criticar meu artigo e outras manifestações sobre o assunto, nem todas, por sinal, concordantes entre si. É de debates como esse que o Brasil precisa.


Acordos e Desacordos
José Dirceu
Meu ilustre mestre Renato Janine Ribeiro volta à carga sobre eventual descompasso entre mudanças econômico-sociais promovidas pelo governo Lula e manutenção do status quo institucional. Sua indagação: “Não tenho dúvidas de que os mais pobres foram beneficiados pelas políticas sociais. Mas tornaram-se eles mais sujeitos das decisões políticas?”


Também considero relevante esse debate. Como bem disse meu polemista, “é um ponto crucial para quem quiser situar-se à esquerda”. Precisamos estabelecer, no entanto, alguns paradigmas que mantenham essa discussão nos marcos da racionalidade política.


A própria eleição do presidente Lula é passo seminal na conquista de protagonismo pelos pobres da cidade e do campo. Ainda que a oligarquia continue capturando setores nevrálgicos do Estado, a ascensão da esquerda alterou parcialmente a correlação de forças. Ao lado de outra política econômica e social, de matriz distributivista, emergiram novos mecanismos de participação.


As conferências setoriais talvez sejam a principal novidade, mobilizando dezenas de milhares de delegados. Não é à toa o incômodo de grupos direitistas com essas iniciativas de rearticulação entre Estado e sociedade, pois ajudam a constituir espaços de influência do povo organizado e enfraquecem as casamatas conservadoras.
Esse repertório, no entanto, não está circunscrito às ações de governo. São fatos notórios o aumento das ocupações de terra, mobilizações operárias e greves urbanas nesses últimos sete anos. Não somente o cenário de desenvolvimento econômico permitiu maior poder de barganha aos trabalhadores como o novo ambiente lhes deu mais confiança em sua capacidade de mobilização.


O professor Janine parece dar pouca atenção a esses fatos e sua relevância na transformação dos trabalhadores em “sujeitos das decisões”. Trata-se de processo lento e difícil, apenas iniciado, que tem como uma de suas características a preservação da autonomia dos movimentos. Talvez seja o primeiro momento em nossa história no qual a tensão entre lutas sociais e Estado não é abordada como questão de polícia ou objeto de cooptação.
Tampouco se pode subestimar o papel das melhorias econômico-sociais na liberação de energias para a participação política. A implantação do programa de governo reforça a identidade entre esquerda e povo, ao mesmo tempo em que permite aos “de baixo” reconhecer os adversários dessas mudanças. Essa percepção dos interesses de classe transforma-se progressivamente em escudo contra o monopólio da mídia e outros meios de hegemonia operados pelas elites.


Não é pouca coisa. Basta ver a higidez da popularidade do presidente Lula, mesmo sob fogo constante dos veículos de comunicação. Ou a reeleição em 2006, depois da feroz campanha conduzida contra a administração e o pt a partir do ano anterior. A escalada da ex-ministra Dilma Rousseff nas pesquisas para a disputa de 2010 igualmente é tributária desse estado de ânimo entre as camadas mais pobres.


O professor identifica, de toda maneira, insuficiência na transição, do povo, “da condição passiva à ativa”. Partilho parcialmente da mesma opinião, mas não devemos menosprezar os avanços realizados. Essa travessia poderia, de toda forma, ser mais rápida e sólida se tivesse havido aposta na mobilização de massas como instrumento da política.
A eleição de 2002 colocou-nos diante de uma equação complexa, a de como governar com a esquerda em minoria parlamentar e sem ruptura prévia com a ordem vigente. Fizemos parte do que tínhamos a fazer, ou seja, alianças que atraíssem correntes de centro para o bloco de sustentação do governo. Mas erramos ao não combinar devidamente essa política com a pressão dos movimentos sobre as instituições.


A excessiva dependência das negociações parlamentares acaba por induzir a demasiadas concessões nas ações de governo. A morosidade na atualização dos índices de produtividade para reforma agrária é um bom exemplo dessa armadilha.


Também deixamos de aproveitar as condições criadas, a partir das vitórias em 2002 e 2006, para provocar modificações institucionais mais potentes, que impulsionassem a participação popular. A primeira delas deveria ser a reforma eleitoral.


O sistema eleitoral brasileiro é entulho autoritário que serve à promiscuidade entre grandes grupos econômicos e o Parlamento. A votação uninominal, acoplada ao financiamento privado das campanhas, incentiva a corrosão dos partidos, a mercantilização da política e a formação de bancadas a serviço de corporações. Não é possível falarmos em radicalização da democracia sem substituirmos esse sistema, adotando o voto em lista partidária e o financiamento público exclusivo da disputa eleitoral.


Tais alterações aprofundariam o enfrentamento entre distintos projetos, pois libertariam o eleitorado, em boa medida, das relações individualizadas de clientelismo e fisiologia. Um cenário com mais tônus político-ideológico, enfim, eventualmente facilitaria a formação de uma maioria parlamentar de esquerda, com evidentes consequências sobre a estratégia de governo.


O professor Janine, porém, parece dar pouca importância a esse tema. Da minha parte, não antevejo maiores possibilidades para outras mudanças sem uma justa resolução desse desafio. A democratização do regime de voto é indispensável para que a preferência progressista, registrada nos últimos pleitos presidenciais, também se reflita sobre as demais instituições eletivas.


Além disso, é uma etapa necessária para decisões mais arrojadas, dependentes do Parlamento, que possam fortalecer a soberania popular. Estou-me referindo, por exemplo, à convocação de plebiscitos por subscrição de certo número de eleitores ou por decisão do presidente da República. A exemplo do que se passou em tantos outros países, também poderia citar programas contra o monopólio dos meios de comunicação, cujo controle nas mãos de poucas famílias é peça-chave na contenção do processo democrático.


Não posso deixar de reparar, por fim, nas ilusões do mestre com o papel que poderia cumprir o psdb. Transformados em partido da modernização conservadora, os tucanos assumiram o lugar da velha direita como articuladores das elites. No rastro das políticas privatistas e antinacionais, foram abandonando compromissos com a radicalidade democrática.


Adotaram como programa a criminalização dos movimentos sociais. O governo Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, chamou o Exército para acabar a greve dos petroleiros em 1995. Foi sob o governo paraense do psdb que ocorreu, em 1997, o massacre de Eldorado dos Carajás. São algumas provas de que esse partido não sofre qualquer constrangimento para defender políticas repressivas quando os interesses econômicos que representam são ameaçados pela mobilização social.


Essa lógica os levou a esvaziar qualquer negociação séria sobre reforma eleitoral. O psdb revela-se o principal baluarte da velha ordem institucional e a protegerá como puder, pois teme que sua transformação permita às forças progressistas abrir nova etapa no processo inaugurado com a eleição do presidente Lula.


65 anos, é advogado, ex-ministro da Casa Civil, membro do Diretório Nacional do PT.

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