30 setembro 2022

Processo político e corrosão institucional sob a polarização

O sociólogo Marco Aurélio Ruediger projeta uma sombra sobre a vida democrática do Brasil. Condição trazida por elementos de polarização, autoritarismo e conflito interinstitucional. Uma agenda se assenta numa guerra cultural e na busca por remodelagem entre poderes, tentando implantar um Executivo unitário, a exemplo do debate do trumpismo. Três razões confluem para essa corrosão: crescente déficit de confiança, derivado do desgaste das boas práticas públicas; esquemas de corrupção em caráter predatório às estruturas de Estado; e falta da razoabilidade na interpretação da lei, com uso radicalizado de recursos legais para além do princípio de presunção de inocência.

.

Introdução

Uma sombra se projeta sobre a vida democrática e institucional do Brasil. Essa sombra traz elementos de polarização, autoritarismo e conflito interinstitucional e tem, como componentes desestruturadores do equilíbrio entre poderes e de práticas de governança transparente, o uso da desinformação e o ataque a instituições por meio das redes digitais, outrora espaço de utopias de liberdade e de construção de consensos.

Dessa forma, a credibilidade e a eficacidade de instituições estruturantes dos contrapesos e equilíbrios sob a proteção dos contratos constitucional e social pactuados pós-redemocratização são fragilizadas. Isso vem acarretando dramáticas consequências para as confianças interna e externa, além de danos ao país.

Incluem-se, nesse conjunto, várias ameaças a oportunidades de circulação de segmentos antagônicos no poder; à estabilidade e à confiança do sistema de regulação eleitoral e institucional do país; e à própria definição do que são democracia e liberdade de expressão; e, sob essa perspectiva, às estruturas, narrativas e ações que conferem confiança e previsibilidade à esfera pública.

Não por acaso, o relatório de 2021 do Edelman Trust Barometer (EDELMAN, 2021) confirma essa percepção, quando aponta a péssima posição do Brasil, colocado no grupo dos 13 países com mais desconfiança geral no governo. O documento também expõe a discrepante desconfiança da maioria da população, em contraste com uma visão oposta e positiva de uma parcela ínfima da elite.

O exercício de reflexão que aqui faremos se assenta na constatação de que vivemos em um novo contexto global, político, econômico, ambiental e, acrescentamos, informacional, para o qual instituições e atores políticos e econômicos deverão se aperfeiçoar e se adaptar, a fim de desempenharem suas funções com a adequada eficacidade. Com isso, poderão garantir a preservação de princípios basilares de liberdade e democracia intrínsecos a concertações democráticas vigentes.

Estruturalmente, essa perspectiva requer a promoção e o fortalecimento de anteparos legais e procedimentais, de forma a garantir um mínimo de capacidade de geração de consensos estratégicos para o Brasil e, com isso, gerar confiabilidade da sociedade nas escolhas públicas e fidúcia para investimentos no país. As razões para essas disfuncionalidades serão visitadas, e, ao final, pontos de atenção serão sumarizados.

Razões da disfuncionalidade

No Brasil, está em curso uma agenda bifronte que tenciona a institucionalidade. Por um lado, essa agenda se assenta numa guerra cultural e na busca por uma remodelagem entre poderes, sob a égide de tentativa de implantação de um Executivo unitário, a exemplo do debate do trumpismo americano. Por outro lado, tem a curiosa e contraditória característica ‒ vinculada a especificidades culturais e políticas nacionais ‒ de entregar largas porções do orçamento à discricionariedade não transparente do cluster de centro-direita fisiológico no Congresso Nacional, conhecido por Centrão.

O orçamento, em qualquer país avançado do mundo, é a peça central de uma administração, pois, em torno dele, as relações de poder e sinalizações de prioridades se materializam. Seu processo decisório sempre foi algo obscuro para leigos; ainda assim, teve até há pouco, no Brasil, um grau de transparência relativamente satisfatório. Entretanto, recentemente, na presidência legislativa empossada em 2021, os presidentes da Câmara e do Senado o tornaram legalmente opaco, o que significou o maior retrocesso da Lei de Acesso à Informação (BRASIL, 2011) nesta triste quadra da nossa história.

Um elemento adicional impulsiona a radicalidade polarizada desse processo. A dinâmica disruptiva descrita acima é exponenciada pelo fluxo instantâneo de informações e pelo uso sofisticado de meios digitais por grupos com tendências antidemocráticas em um ecossistema de plataformas on-line. Isso tem criado oportunidades para a disseminação do discurso do ódio social, econômico e político, aproveitando-se da perplexidade e da inconformidade com as dificuldades de adaptação à nova conjuntura e das dinâmicas dos sistemas democráticos liberais.

Em vista disso, atores-chave e instituições, por conta de uma guerra cultural subjacente à polarização, foram culpabilizados, atacados e desacreditados sistematicamente, o que colocou o Brasil numa encruzilhada histórica entre uma sociedade pautada por um conservadorismo autoritário ou outra pautada por valores seculares e democráticos. O relatório World Values Survey de 2020 (WVS ASSOCIATION, 2022) mostra justamente o Brasil em meio a essa encruzilhada, como pode ser observado no gráfico a seguir.

Fonte: WVS Association

Nesse sentido, observa-se um dramático retrocesso institucional e de confiança política, na esteira de um embate ideológico e cultural altamente polarizado, que faz com que o Brasil perca a capacidade de construção de consensos estratégicos mais profundos e, consequentemente, obstaculariza soluções suprapartidárias específicas frente aos desafios do século 21 ‒ em especial, nas questões ambiental, social e de avanço técnico-científico. A corrosão institucional advinda desse processo ainda não tem um desfecho claro, pois não se dá de forma repentina, mas em um ritmo constante e já perceptível em seus efeitos.

No entanto, pela política, essa situação ainda pode ser revertida; porém, mesmo que o seja, não se trata apenas de paralisação da desconstrução corrente. Exige-se, para tal, que haja ousadia e um grau mínimo de concertação entre diversos setores nacionais que vise ao seu redesenho para o futuro.

Como e aonde chegamos

Três razões confluem para essa corrosão de fidúcia e para a dificuldade de geração de consensos estratégicos. O primeiro é causado pelo crescente déficit de confiança derivado do desgaste das boas práticas públicas e do homem público. Por um lado, há a extensão inaudita de esquemas de corrupção, em caráter predatório às estruturas de desenvolvimento estratégico do Estado. Por outro lado, como algo igualmente corrosivo, foge-se à razoabilidade da interpretação da lei, com o uso radicalizado de recursos legais para pressionar suspeitos públicos e privados para além do princípio de presunção de inocência. Ambos são elementos nocivos à confiança pública.

O segundo se insere na imanência das redes sociais, com a compressão de tempo e a instantaneidade da circulação da informação em tempo real e em escala global, o que permitiu crescentes micro-contribuições de tempo no debate público (MARGETTS et al., 2015), bem como a construção e a corroboração de narrativas a custos ínfimos e decrescentes. Essas podem ser positivas ou negativas. De 2018 em diante, percebe-se sobremodo que, ao invés de ampliar a transparência, as redes têm sido utilizadas para distorcer, acobertar ou distorcer fatos, quer sejam científicos, econômicos, políticos ou éticos.

O terceiro é a crise profunda de identidade nas democracias como consequência da globalização econômica, social e migratória, conforme observou Manuel Castells (2003), ao afirmar que o cidadão, diante de uma crise estrutural de oportunidades, não percebe como atendidas as expectativas e as demandas básicas de inclusão frente a um sentimento de atomização social e de escassez de solidariedade.

Em consequência, diante de um mundo crescentemente complexo, escasso em oportunidades e confuso em mensagens e valores, indivíduos reagem defensivamente, buscando se inserir em comunidades que lhes ofereçam acolhimento e pertencimento, e uma narrativa que lhes dê um senso de propósito e sentido. Movimentos religiosos extremados, ideologias de ódio ‒ tanto à esquerda quanto à direita ‒ e movimentos político-religiosos de caráter totalizante e salvacionista se tornam extremamente sedutores nesse contexto, mas, sobretudo, crescentemente ameaçadores à democracia.

Cynthia Miller-Idriss, em Hate in the homeland: the new global far right (2022), observa esses aspectos da estratégia de como militantes jovens de extrema-direita são recrutados pelas mídias sociais; como um conteúdo depreciativo da credibilidade de instituições de Estado é disseminado; e como essa estratégia forma um modelo global em termos de difusão e financiamento. O somatório dos fatores acima provocam, de forma contundente, a ampliação e a desestabilização de estruturas democráticas.

Na mesma direção, Levitsky e Ziblatt, em seu seminal trabalho Como as democracias morrem (2018), observam, no caso americano, o compromisso crescentemente débil do conservadorismo com o regramento democrático; a negação da legitimidade de adversários políticos; o encorajamento à violência; e a propensão de restringir liberdades civis de oponentes. O que os autores denominaram de “abdicação coletiva”, referindo-se ao Partido Republicano se curvando a Donald Trump, um líder de tendências autoritárias e manipulador midiático, pode ser extrapolado e é perceptível em outros países. Na verdade, o trumpismo é parte de um problema ainda maior, vinculado à existência de um modus operandi da extrema-direita globalizada.

No caso brasileiro, a exemplo de Trump, o presidente Jair Bolsonaro crescentemente investiu em sua agenda unitária e de guerra cultural, mimetizando seu colega americano, indo desde o uso das redes e da mobilização radical da agenda ultraconservadora até a proximidade com autocratas como Vladimir Putin. Bolsonaro, eleito presidente do Brasil em 2018, agregou ao seu redor segmentos conservadores diversos, tais como lideranças evangélicas neopentecostais, empresários ultraconservadores e parcelas da estrutura de segurança pública, entre outros. Por fim, necessitando viabilizar sua base parlamentar, promoveu, como observamos, uma aliança política com o Centrão.

Para esse arranjo com o Centrão ser viabilizado, entregou-se parte significativa do poder discricionário do Executivo sobre o orçamento. Esse grupamento, ao perceber a oportunidade irrecusável de exercer um controle inaudito sobre vastas porções do orçamento, não apenas forneceu a maioria parlamentar necessária ao governo Bolsonaro, como absorveu, adotou e espargiu, na margem de sua base política, a simbologia e a narrativa corrosivas da extrema-direita.

No agregado, esse processo aprofundou a crise de governabilidade que vinha se expressando com intensidade desde 2013. O impacto dessa crise de 2013 versus 2022 pode ser observado pelo gráfico do Transformation atlas, da Fundação Bertelsmann (2022). No gráfico reproduzido a seguir, observa-se uma clara retração em praticamente todas as dimensões de institucionalização democrática.

Fonte: WVS Association

Nesse sentido, poderíamos dizer que as seguidas administrações, quer sejam de centro, de esquerda ou de direita, lograram obter pela eleição vitórias incompletas desde a redemocratização, que, sem resolução, levaram a uma indefinição de rumos que culmina com uma crise institucional e política contratada a partir de 2013. Isso leva o pleito presidencial de 2022 para uma situação de radical ajuste de contas, o que agudiza a vontade de promover mudanças estratégicas mais enraizadas, cujos efeitos não sejam episódicos, mas que durem por muito mais tempo.

No entanto, isso também leva a uma crescente desconfiança e a uma animosidade dos atores e do sistema político, com repercussões em definições de linhas estratégicas suprapartidárias e, consequentemente, na capacidade de entrega de promessas e de boa governança institucional. Ou seja, a resultante de qualquer caminho a ser tomado pelo Brasil será tensionada com base na desconfiança e apontará para uma continuidade dessa fricção cultural e ideológica, a despeito do desfecho do pleito.

Essa percepção coincide com a de outros institutos, inclusive nos relatórios de conjuntura da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP) (2022), que apontam extrema e contínua polarização ‒ nesse caso, nas redes sociais ‒ pela profusão de discursos de ódio e contínuas polêmicas disruptivas envolvendo da vacina ao descrédito da economia do país e passando pela segurança das eleições, entre outras. Dessa forma, a eleição de 2022 promete se tornar não somente radicalizada, mas, também, a mais pivotal desde a redemocratização; isso requer extrema atenção.

Fonte: WVS Association

Conclusão: contrafogos à disfuncionalidade

Sugerimos que olhar para além da névoa, em um momento de aguda falta de confiança e de profundos déficits de cidadania, significa considerar a capacidade de boa governança na contemporaneidade como algo vinculado diretamente ao interesse de preservação nacional. Ou seja, com respeito aos regramentos constitucionais e institucionais e à compreensão da dinâmica do mundo em uma nova grande transformação, exige-se uma forma mais sofisticada de gestão.

Considerando o impacto da informação na moderna governança, sugere-se a utilização das redes para difusão e provimento de dados fidedignos e verificáveis, em uma cultura que denominamos de “governança por blockchain”, retomando, do contexto das redes a possibilidade de fidúcia e aferição de impactos em tempo real. Isso significa que podemos construir factualmente consensos básicos dentro do regramento democrático, com níveis de transparência radicais.

Dessa forma, uma modelagem agente principal, articulada com redes de aferição e policy feedback ‒ em que instituições independentes e de notória excelência produzissem avaliações e dessem conhecimento público de seus cenários, com alguma agência sobre resultantes da pauta a ser implementada ‒ seria estimulante e revigoraria o sistema permanentemente. Em paralelo, canais de transparência deveriam ser reformulados para uma tradução da complexidade do orçamento, visando a uma maior accountability para a sociedade. Hoje, como nunca antes, isso é possível.

Complementarmente, haveria a rejeição programática do utilitarismo seco ‒ refletido no que Bauman (2000) denominou de “economia política da incerteza” ‒, ou seja, a desconstrução ideologizada de normas de proteção econômica e social e de instituições defensivas, o que, consequentemente, ampliaria a insegurança da sociedade. Economia, saúde e ciência devem ser preservadas e fortalecidas. Daí emerge a importância de reconfigurar a engenharia orçamentária e suas âncoras, incorporando o conceito de justo como metacritério a ser perseguido, tal como proposto por Rawls, e visando a alocações de justiça como equidade, calibradas dentro da curva de eficiência.

O poder de decisão sobre prioridades e contornos das políticas deve ser objeto da bem-informada deliberação do Estado e da sua relação dialógica com os cidadãos, e não ser tratado como espetáculo distorcido por interesses de ocasião ou decidido apenas por grupos de stakeholders privilegiadamente informados. Sobretudo, a discussão política na democracia não pode ser pautada por algoritmos monetizados e narrativas de desinformação que visam à polarização e à semeadura de cínico autoritarismo.

Esse é o cerne da recuperação da confiança pela transparência com ousadia e deveria ser observado como eixo vertebrador dos programas de governo para 2022 em diante, a serem apresentados pelo campo democrático ao país. Nesse sentido, devemos estar atentos para os sinais além da névoa, pois, hoje, uma única coisa é certa: o que decidirmos em 2022, contrataremos por um precioso período; e o tempo do mundo não esperará pelos contínuos desencontros do Brasil.   Marco Aurélio Ruediger

Referências:

BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

BRASIL. Lei n° 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal […]. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 26 ago. 2022.

CASTELLS, M. The power of identity. Hoboken: Blackwell, 2003.

DIRETORIA DE ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS. Bolsonaro e Lula fazem disputa acirrada em número de perfis no Twitter [DAPP Report]. Rio de Janeiro: FGV DAPP, 2022. Disponível em: https://observademocraciadigital.org/posts/bolsonaro-e-lula-fazem-disputa-acirrada-em-numero-de-perfis-no-twitter/. Acesso em: 31 ago. 2022.

EDELMAN. Edelman trust barometer 2021: global report. Chicago: Edelman, 2021. Disponível em: https://www.edelman.com/trust/2021-trust-barometer. Acesso em: 26 ago. 2022.

FUNDAÇÃO BERTELSMANN. Transformation atlas. Gütersloh: Bertelsmann Stiftung, 2022. Disponível em: https://atlas.bti-project.org/1*2020*CV:CTC:SELIND*CAT*IND*REG:TAB. Acesso: 26 ago. 2022.

LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MARGETTS H; JOHN P.; HALE S.; YASSERI, T. Political turbulence: how social media shape collective action. Princeton: Princeton University Press, 2015 MILLER-IDRISS, C. Hate in the homeland: the new global far right. Princeton: Princeton University Press, 2022.

WVSASSOCIATION. The Inglehart-Welzel cultural map. Viena: World Values Survey, 2022. Disponível em: https://www.worldvaluessurvey.org/WVSContents.jsp. Acesso em: 26 ago. 2022.

As opiniões e alegações feitas no presente artigo são de responsabilidade exclusiva do seu autor. O autor agradece, ainda, as sugestões e comentários feitos pela pesquisadora Angela Mendes (FGV ECMI) e pelo pesquisador Dalby Dienstbach (FGV ECMI) para o manuscrito.


Doutor em Sociologia e MSc em Policy Analysis and Management. É diretor da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV. Seus campos de interesse são a sociologia política, a análise de redes sociais e a inovação tecnológica e seus impactos na democracia

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter