28 junho 2023

Proposta de manejo da floresta tropical

Não obstante a Constituição determinar a preservação da fauna e da flora nativas, feito palavras ao vento, a degradação e o desmatamento de nossos biomas tropicais comprovam que a realidade é outra. Para a iniciativa privada, tout court, mola propulsora do crescimento econômico, impulsionada pela concorrência na distribuição da renda, em sua busca pelo maior saldo monetário de sua atividade, a preservação de uma floresta, além de onerosa, não contribui para os objetivos econômico-financeiros empresariais. Explorá-la ou devastá-la, implantando agronegócio ou pastoreio, faz sentido racional nessa visão de curto prazo de todo empresário, como comprova a substituição parcial da Floresta Amazônica e do Cerrado Nordestino por lucrativas monoculturas como soja, pastagem e eucalipto.

Mesmo que se disponha de norma de utilização preservacionista da floresta, há de se dispor de uma instituição capaz de promovê-la e, ao mesmo tempo, garantir a imprescindível dinâmica empresarial. Tal instituição está prevista em nossa legislação ambiental, não obstante seu potencial de aglutinar preservação e uso do recurso natural ainda não ter sido satisfatoriamente compreendido.

A simbiose uso/preservação aqui proposta, mesmo que só gradativamente implementada, trará de imediato o reconhecimento internacional para os por nós assumidos compromissos climáticos com a emissão de CO2, justificará a liberação condigna dos recursos do Fundo Amazônia e, possivelmente, destravará os impasses ambientais do Mercosul.

■  O manejo natural

O manejo preservacionista da floresta tropical repousa sobre dois pressupostos: (1) de manter a diversidade e o potencial de evolução de todas as espécies arbóreas; e (2) de assegurar a sua viabilidade econômico-financeira em uma economia de mercado.

Para a garantia da regeneração de uma espécie há de se assegurar a produção e a disseminação de sementes dos indivíduos que a compõem na natureza. A dinâmica de uma floresta tropical em clímax, ou mata virgem, caracteriza-se por intensa competição por sol, nutrientes e água entre cada indivíduo e as árvores em seu entorno, independentemente da espécie a que pertence. A própria floresta tropical seleciona as árvores a serem eliminadas, na conquista de espaço para indivíduos mais viçosos. Nesse processo seletivo, árvores são condenadas à morte, inexoravelmente, em dinâmica garantidora da pujança da floresta como um todo ao longo de séculos e milênios. Mais que isso, cada novo indivíduo traz consigo um mesmo que ligeiro diferencial em sua estrutura genética de importância no processo seletivo da espécie para melhor se adaptar à disponibilidade de água, nutrientes e luz, à competição com os demais seres vivos e às flutuações climáticas. Destarte, é imprescindível a preservação de indivíduos em sua fase reprodutiva. É crime cortar um ipê na Amazônia em plena exuberância. Poderia ser ele, em seu diferencial intraespecífico, garantidor de uma população de ipês nos vindouros séculos face aumentos de temperatura acima de 2 graus centígrados. Uma perda que afetaria todo o equilíbrio do ecossistema em sua ampla diversidade de seres vivos, talvez até, de alguma forma, impactando o próprio homo sapiens.

Mas a proteção de árvores viçosas não representa um obstáculo intransponível ao manejo natural. Pois que a floresta tropical em clímax contém cerca de 20% de árvores com alta probabilidade de não mais participarem do processo regenerativo. Condenadas à eliminação, enfraquecidas pela competição com indivíduos mais robustos, jovens e adultos, de qualquer espécie, vão aos poucos definhando no inescapável caminho da morte, quando se decomporão, finalmente integradas ao solo em suas substâncias orgânicas e inorgânicas. Dentro destas últimas, liberam CO2 à atmosfera, o carbono que compõe em cerca de 50% a massa total das árvores e que, por sua vez, vai sendo reabsorvido pelos novos indivíduos ao ocuparem seu espaço. Como o volume em metros cúbicos de material madeireiro, diga-se, contido em 1 hectare – mantidas constantes a diversidade vegetal original, a composição do solo e as características climáticas – oscila em torno de uma constante, o volume de carbono contido numa floresta tropical primária também é uma constante, e o CO2 emitido pelas árvores em decomposição é novamente sequestrado pela população que os sucede. Ou seja, é nulo o sequestro de gás CO2 em uma floresta tropical primária.

Dessa maneira, ao se retirar árvores descartáveis para o processo regenerativo e se o carbono contido em sua madeira não for liberado por decomposição (utilizado em móveis, assoalhos e todo o mais), agora sim, haverá um sequestro de CO2 ao longo do processo de recomposição do volume de carbono originalmente contido na floresta, o que se dará no prazo de 20 a 25 anos, tomando-se por base pesquisa efetuada na Mata Atlântica[1].

O manejo natural requer um enfoque diferenciado do costumeiro inconsequente alvoroço em torno dos focos de incêndio detectados por satélite espião, das narrativas de sustentabilidade de pretensos ambientalistas e das distorções dos inúmeros códigos florestais. A floresta tropical é um sistema demasiadamente complexo para ser entendido por abordagens simplistas. Esta complexidade pode ser explicitada focando-se a atenção em uma reduzida parcela da floresta, uma unidade ecológica, aqui denominada ecounit, contendo um conjunto de 600 árvores com DAP (diâmetro à altura do peito) ≥ 10 cm, com área oscilando em torno de 1 hectare. Contém árvores de todas as idades e alturas. Mais do que isto, uma única ecounit de floresta tropical primária apresenta mais de 60 espécies arbóreas. E como se isto não bastasse, uma determinada ecounit se diferencia da estrutura da ecounit vizinha: por exemplo, uma delas pode conter algumas espécies não existentes em outra. Razão pela qual a floresta tropical pode ser descrita como formando um mosaico de ecounits. Como lidar com esta extrema complexidade, sabendo que o corte de um ipê na Amazônia vai afetar no longo prazo a estrutura de uma ecounit localizada a quilômetros de distância?

Este é o desafio do manejo natural quanto à preservação da biodiversidade original. Para tanto há de se proceder ao levantamento de cada ecounit a ser manejada, árvore por árvore, levando em conta 4 variáveis: a numeração da árvore (de 1 a 600), a espécie a que pertence, seu DAP, sua altura utilizável do tronco e, finalmente, a qualidade de sua copa. Esta última é fundamental por fornecer o critério de seleção para o corte ou preservação da árvore. Pois que a qualidade da copa, classificada em exuberante, normal e fraca, reflete a vitalidade do indivíduo, em que uma copa fraca significa que foi selecionada pelo seu entorno para ser eliminada, deixando de contribuir para a regeneração da espécie dada a baixa probabilidade de produção de pólen e sementes férteis, indicados pela redução do volume de folhagem responsável pela fotossíntese. O botânico, o engenheiro florestal e o mateiro necessitam do conhecimento detalhado das dezenas de espécies que formam o ecossistema em que estão inseridas as ecounits. A copa exuberante de uma espécie pode corresponder em volume a uma copa normal ou mesmo fraca de outra espécie. Assim, feito o farmacêutico da esquina conhecer as centenas de produtos em suas prateleiras e um cidadão urbano distinguir as dezenas de marcas de carros e seus subtipos, mesmo um simples mateiro empático com a natureza em pouco tempo fica capacitado a avaliar a qualidade das copas das árvores de um ecossistema[2].

O levantamento das quatro varáveis das 600 árvores de uma ecounit fornece não só as informações para o corte das árvores de copa fraca e possibilita a devida fiscalização, como também permite acompanhar o desenvolvimento das remanescentes em novos inventários até o limite climácico da massa arbórea, dando início ao novo ciclo de manejo.

■  A instituição preservacionista

O professor da USP Paulo Nogueira Neto, precursor dos ministros do Meio Ambiente, introduziu na legislação ambiental como opção entre as unidades de conservação a Área de Proteção Ambiental (APA), que se distingue das demais por manter o direito dos proprietários, permitir sua utilização e ser gerida por conselho deliberativo tripartite, formado por proprietários, servidores públicos ambientais e pela sociedade civil (como ONGs e universidades). Uma instituição apta a conciliar os usualmente conflitantes interesses puramente econômicos dos proprietários, com os dos ambientalistas e do Estado.

Uma APA, como unidade de conservação, pode ser constituída por decreto em níveis federal, estadual ou municipal, em consenso com os proprietários florestais, referendada pelo respectivo poder legislativo. Para a sua operação, o conselho deliberativo necessita de empresa privada de manejo para administrar suas operações, incumbida do inventário das econits, da implantação da infraestrutura operacional e das confinadas vias de acesso, da extração e comercialização das toras e dos demais serviços requeridos para torná-la competitiva em uma economia de mercado, atendendo às expectativas de resultado dos proprietários.

A empresa de manejo, devidamente fiscalizada pelos membros do conselho deliberativo na execução do manejo natural, deverá elaborar detalhado fluxo de caixa para constante acompanhamento e tomada de decisões. Ou seja, permitir o rastreamento de cada tronco extraído, seu volume e preço como entrada no fluxo de caixa, as despesas pormenorizadas incorridas como saídas de caixa, com os saldos resultantes disponíveis para avaliar o desempenho das operações, como se procede em qualquer empresa moderna. Um monitoramento indispensável para se evitar os prejudiciais descontroles na exploração madeireira nos assim chamados manejos sustentáveis mesmo sob autorização dos órgãos ambientais.

O manejo natural comporta uma segunda fonte de renda, imprescindível para sua viabilização econômica. Pois, dado o seu pormenorizado inventário florestal, dispõe de precisa estimativa do volume de CO2 a ser sequestrado em cada ecounit da APA no ciclo do manejo e, portanto, a empresa privada poderá obter os melhores preços para os créditos de carbono junto aos grandes poluidores internacionais, eventualmente assegurados por ONGs estrangeiras nos conselhos deliberativos.

Caso o fluxo de caixa da APA não consiga ainda permitir uma rentabilidade satisfatória, tanto para a empresa de manejo quanto para os proprietários, especialmente na fase introdutória do manejo natural e até o mercado interno e de exportação consolidar gradualmente preços e práticas mercantis, ao invés de se cogitar de subsídio no orçamento fiscal para atender aos compromissos ambientais em nível internacional, poder-se-ia utilizar recursos disponíveis do Fundo Amazônia para sua implantação gradativa.

Sob tais condições, estariam criadas as condições econômicas e institucionais para um proprietário implantar o manejo natural, transformando suas ecounits em ativo financeiro e, assim, salvaguardando as florestais tropicais dentro do dinâmico arcabouço de uma economia de mercado.

Exemplificando: Em APA de 10 mil hectares, com 7 mil ecounits aproveitáveis para manejo, implantado em sete unidades por semana, ao cabo de aproximadamente 20 anos, as primeiras unidades irão recompor a população arbórea com a absorção do carbono inicialmente extraído, reiniciando novo ciclo de produção. No meio tempo, a área estaria disponível para os diversos subprodutos da floresta, como palmito, mel, xaxim, proteicos cogumelos, frutos nativos e plantas medicinais, fontes de receita no fluxo de caixa da APA, mais que cobrindo as despesas com manutenção das vias de acesso, novos inventários e proteção da área.

As florestas secundárias, parcialmente degradadas pela exploração das espécies arbóreas de maior valor comercial, sob o critério de corte do manejo natural, tendem a se restaurar em sua diversidade original de forma espontânea no longo prazo, lembrando que uma canela preta (Ocotea pretiosa) na Mata Atlântica requer cerca de 100 anos para crescer dos 10 cm aos 40 cm de DAP.

O manejo natural, garantidor da biodiversidade integral em suas ecounits, pode perfeitamente ser introduzido em reservas indígenas, em conselho deliberativo integrado também por representantes da FUNAI, não só gerando mais condigna renda aos proprietários indígenas, mas também propiciando sua inclusão no processo de desenvolvimento econômico e cultural nosso, contribuindo com sua empatia e milenar sabedoria da floresta tropical.

Em 2003, foram implantadas nas encostas da Mata Atlântica em Santa Catarina nove APAs por decretos municipais e referendadas pelas respectivas câmaras de vereadores nos moldes do arcabouço institucional acima descrito, com conselhos deliberativos formados por: (1) representantes do grande número de proprietários florestais; (2) servidores públicos ambientais municipais e estaduais; e (3) associação preservacionista, universidades e sociedade civil, que se reuniam regularmente objetivando conciliar a exploração do palmito (Euterpe edulis) em face das demasiadamente burocráticas normas do código florestal e, num esforço conjunto com a polícia ambiental, sustar a predatória caça à fauna nativa. Os objetivos estavam sendo alcançados quando sobreveio, em 2004, a decretação de um parque nacional incidente sobre as APAs, implicando a sua desarticulação, não obstante AID do governo do Estado de Santa Catarina, contestando o ato federal, mas que, após anos de contenda, não foi acatada pelo Supremo Tribunal Federal. Com seus mais de 200 quilômetros de periferia, fiscalizada por meros cinco servidores do ICMBio, a floresta, agora pública, foi e continua sendo degradada por palmiteiros e caçadores. No entanto, se o inoportuno parque nacional fosse desfeito pelo Poder Executivo, de imediato se retornaria às APAs municipais e, além de se reverter a depredação dos palmitais e da fauna nativa, poder-se-ia nelas implantar o manejo natural como referência para sua disseminação na floresta amazônica.   n


[1].
Conforme Hering, K. G. A scientific formulation of tropical forest management, Ecological Modelling 166 (2003) 211-238 (mais facilmente acessível em http8//repositório.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/84477/189437). Também formulada no ainda inédito Paradigm of tropical forest management, 03.2021. Com fins elucidativos, pode ser acessado vídeo pelo link https://www.youtube.com/watch?v=g1UdYUSpyzg.

[2].
Ou, paralelamente e talvez, desenvolver em TI uma técnica de medir a redução do incremento anual em diâmetro das árvores nos últimos 10 anos sem afetar sua casca.

KLAUS G. HERING cursou Economia e Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), fez mestrado em Economia na Vanderbilt University, é doutor em Engenharia da Produção e Sistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina e foi professor de Teoria Econômica na Faculdade de Economia e Administração da USP

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter