03 janeiro 2015

Quem Financia a Democracia no Brasil?

Desafios da quarta maior democracia do mundoEm 1988, foi promulgada a atual Constituição brasileira, que refundou a Nação, com base no Estado Democrático de Direito e com forte verniz social. Desde então, o Brasil vive o maior período de estabilidade democrática de sua história: 26 anos ininterruptos de Democracia!
A soberania popular concretiza-se pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto do cidadão, com igual valor para todos. Alternância no poder; controle dos abusos dos poderes político, administrativo, econômico e dos meios de comunicação. Meios de participação popular como a iniciativa de leis, que geraram a lei de combate à compra de votos e a lei da ficha limpa. Com as urnas eletrônicas, o voto dado é o voto efetivamente computado. A identificação biométrica, como a garantia de que cada eleitor expresse uma única vez sua vontade nas urnas.
Com mais de 142,8 milhões de eleitores, somos a quarta maior democracia do mundo, após a Índia, os Estados Unidos e a Indonésia.
Mas, ainda há muito a refletir e a avançar no esforço constante de aprimorar o processo democrático de escolha dos nossos representantes políticos, mediante campanhas livres e equânimes que concretizem a genuína vontade popular.
Nosso processo de democratização ainda não foi capaz de evitar que, por meio do financiamento eleitoral, a cidadania seja capturada pelo poder econômico.
Somos uma sociedade capitalista. Na proporção em que aumenta a participação popular na base democrática, também aumentam as tentativas dos setores capitalistas de capturar esta voz. Quer antes, quer depois das eleições! É legítimo, se dentro das regras do jogo. Será ilegítimo se derivar para a corrupção, a fraude e o abuso.
Os dados são incontestes: a democracia brasileira tem sido financiada pelos grandes grupos empresariais.
A campanha eleitoral de 2014 para presidente da República foi a mais cara da nossa história. Foram gastos por todas as candidaturas mais de R$ 648 milhões. Nas campanhas dos candidatos que concorreram ao segundo turno, Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), foram gastos, respectivamente, R$ 350 milhões e R$ 223 milhões.
As contribuições de pessoas jurídicas a todos os candidatos somaram mais de R$ 579 milhões, o que corresponde a mais de 90% do total dos recursos gastos.
Sob outra ótica, a presença massiva das empresas privadas acaba por apequenar a participação do cidadão na disputa. As contribuições de pessoas físicas corresponderam a apenas 2% do montante utilizado. Uma contradição, pois é o cidadão, e não os grupos econômicos, a figura central do processo eleitoral.
O presente ensaio é o resultado de uma série de reflexões acerca do exercício da cidadania e da democracia no Brasil, e parte de uma perspectiva histórico-normativa sobre a influência do poder econômico na formação da cidadania nacional e na captura do nosso processo democrático por meio do sistema de financiamento eleitoral.
Os caminhos da cidadania e do voto no Brasil, um panorama histórico
O sistema eleitoral brasileiro é um reflexo da formação histórica e política do país. De 1822, ano da primeira legislação eleitoral brasileira, até as eleições gerais de 2014, foram 192 anos de vida eleitoral.
Desde o período colonial, já havia nas primeiras vilas e cidades uma tradição democrática expressa no direito do voto. As eleições eram reguladas pelas Ordenações do Reino e tinham caráter estritamente local. O sufrágio era universal, não havendo qualificações prévias1, e o povo elegia os eleitores, os quais escolhiam, entre os “homens bons”, os representantes das câmaras municipais.
Em 1821, foram realizadas as primeiras eleições gerais, regidas pelo Decreto de 7 de março, que adotava o método estabelecido na Constituição Espanhola de Cádiz (1812), inspirada na Constituição Revolucionária Francesa (1791). Tratava-se da eleição dos representantes do povo brasileiro nas Cortes de Lisboa e “o povo votava em massa, inclusive os analfabetos, não havendo qualquer restrição ao voto”2.
Em 19 de junho de 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva expede a Decisão nº 57 Reino – considerada a primeira lei eleitoral brasileira –, estabelecendo as instruções sobre as eleições para a Assembleia Geral Constituinte de 1823. Exigia-se do eleitor ser casado ou ter a idade mínima de 20 anos, excluídos os assalariados (exceto os guarda-livros e primeiros caixeiros de casas de comércio, os criados da Casa Real que não fossem de galão branco, e os administradores de fazendas rurais e fábricas) e os mendigos. O voto passava a se assentar sobre bases econômicas, sendo privilégio daqueles mais abastados, como os proprietários de terras ou os altos assalariados.
A Constituição outorgada de 1824, na mesma linha, definiu quem teria o direito de votar. Eram eleitores os homens com pelo menos 25 anos de idade e com renda mínima de 100 mil réis por ano.
Durante o Império, as mulheres não tinham direito ao voto, e os escravos sequer eram considerados cidadãos. No entanto, permitia-se que os analfabetos votassem, ora com autorização expressa da legislação, ora com autorização indireta, permitindo-se a ausência de assinatura nas cédulas ou que elas fossem assinadas por outrem. Conjugava-se o voto censitário, baseado na renda, com o voto dos analfabetos, o que possibilitava uma maior participação política.
Segundo análise de José Murilo de Carvalho, “[para os padrões da época, a legislação brasileira era muito liberal”3, uma vez que a renda exigida era considerada baixa, permitindo que a maioria da população brasileira trabalhadora votasse. Conforme aponta o autor, “de acordo com o censo de 1872, 13% da população total, excluídos os escravos, votavam”4.
Nesse período, as eleições eram uma disputa pelo domínio político local e o voto, um ato de obediência forçada ou de lealdade ou gratidão. Vários eram os especialistas em burlar as eleições: o cabalista fornecia as provas para a comprovação da renda legal exigida, o fósforo fazia-se passar pelo eleitor fictício e o capanga eleitoral era o responsável pela proteção dos partidários e pela ameaça e pelo amedrontamento dos adversários5. Era o tempo das “eleições a bico de pena”, nas quais se incluíam nas atas fraudulentas o voto de eleitores falecidos ou fictícios.
O excesso de participação popular e o crescimento do movimento abolicionista começavam a preocupar. Para se ter eleições diretas, era importante “reduzir o eleitorado à sua parte mais educada, mais rica e, portanto, mais independente”6. Com a edição da Lei Saraiva, em 1881, adotou-se, pela primeira vez, o voto direto no Brasil. Uma vitória dos Liberais. Em contrapartida, o voto passou a ser facultativo, os analfabetos foram proibidos de votar e a renda exigida para ser eleitor aumentou para 200 mil réis, com critérios rígidos de comprovação.
Segundo se observa nos debates legislativos da época, a qualificação dos eleitores era uma forma de se promover a lisura das eleições. Nas palavras do parecer da comissão encarregada de examinar o projeto da reforma eleitoral, a participação “de uma massa de cidadãos mais fracos e menos civilizados fez progressivamente baixar o nível da capacidade do corpo eleitoral”7. Eis a defesa dos legisladores às restrições:
Sr. Teodoreto Souto: (…) o voto deve pertencer sómente aquelles que têm uma certa somma de conhecimento, de ilustração, assim como de independência para exercê-lo. (…) A ignorância é um obstáculo que cada um póde vencer, e da obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário resulta para o estado o direito inauferível de privar o voto do analphabeto.
Sr. Ruy Barbosa: (…) Eis o que o projecto arreda. Não é o elemento trabalho, o elemento probidade, o elemento povo; é o elemento arbítrio, o elemento corrupção, o elemento phosphoro.8
Com a exclusão dos analfabetos e critérios mais rígidos de comprovação da renda, “em 1886, votaram nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou 0,8% da população total. Houve um corte de quase 90% do eleitorado”9. Essa restrição teve efeito duradouro: a vedação do sufrágio pelos iletrados só deixou de existir mais de cem anos depois.
Com a República, os principais cargos de poder do país passaram a ser eleitos. Quanto à base democrática, algumas alterações foram feitas: aboliu-se o voto censitário, mas o direito de voto era assegurado apenas aos homens maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever. Permaneciam excluídos os analfabetos, as mulheres, os mendigos.
Com essas restrições, acrescidas ao fato de o alistamento e o voto não serem obrigatórios, as eleições durante a Primeira República (1889-1930) tiveram baixa taxa de comparecimento. Nas eleições de 1894, para presidente da República, votaram 2,2% da população10. Em 1912, para a Câmara dos Deputados, o comparecimento foi de 2,6%11. Na última eleição para Presidência da Primeira República, em 1930, 5,6% da população foi às urnas12.
Permaneceram as restrições ao direito de voto implementadas com a Lei Saraiva, mas as fraudes e o controle do voto pelas oligarquias regionais continuaram. Ainda estavam presentes os cabalistas, os fósforos, os capangas e as “eleições a bico de pena”. Sobressai, nesse período, conforme retratado por Victor Nunes Leal, a chamada “política dos governadores”, cujo elo primário era a “política dos coronéis”. Com o coronelismo, e seu inerente sistema de reciprocidade, dá-se a manipulação do voto pelos chefes locais, em torno dos quais se arregimentavam as oligarquias locais.
Com o “voto a descoberto”, o eleitor apresentava duas cédulas eleitorais, as quais eram assinadas perante a mesa eleitoral e, depois, datadas e rubricadas pelos mesários. Uma cédula era depositada na urna e a outra ficava em poder do eleitor. Com isso, as lideranças tinham um controle absoluto do voto dos eleitores, pois bastava exigir a cédula como prova do voto dado.
Com a Revolução de 1930, ganhou força a voz de Assis Brasil, que, desde 1893, já defendia a busca pela “verdade do voto” e pela “verdadeira representação”, visando conferir maior legitimidade aos resultados das eleições e expurgar do processo eleitoral as práticas deletérias da velha política oligárquica brasileira. No Manifesto da Aliança Libertadora do Rio Grande do Sul ao País, Assis Brasil bem resumiu o caos do processo eleitoral na época:
Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor;
Ninguém tem certeza de votar, se porventura foi alistado;
Ninguém tem certeza de que lhe contém o voto, se porventura votou;
Ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro escrutínio (…).13
Como resultado da Revolução de 1930, foi editado o Código Eleitoral (Decreto-lei 21.076, de 1932), o qual trouxe uma série de conquistas democráticas, como o voto secreto e o primeiro modelo de representação proporcional do país. Foi criada, ainda, a Justiça Eleitoral, que passou a ser o órgão da nação responsável pela organização, pela fiscalização e pelo julgamento das eleições. Tudo concentrado no Poder Judiciário! Seu desenho constituiu peculiar e criativo sistema de controle das eleições, conjugando a tecnicidade e a imparcialidade do Judiciário com a temporariedade do exercício da função eleitoral. Embora permanente a instituição, ela não tem quadro próprio. Seus magistrados não passam de quatro anos no exercício da função eleitoral e, assim, não atuam sucessivamente em duas eleições para os mesmos cargos. Fávila Ribeiro ressalta o modelo institucional da Justiça Eleitoral como eficiente “medida de sabedoria política”14.
Outra garantia histórica foi o direito de voto às mulheres. Ressalte-se que, na América Latina, o Brasil foi o segundo a reconhecer esse direito, após o Equador (1929), e o fez antes de países como a França (1944), a Itália (1946) e a Bélgica (1948)15.
A Constituição de 1934, mantendo a orientação de ampliar a participação política, reduziu a idade mínima do eleitor de 21 para 18 anos. Mas “o contingente de adultos cadastrados para votar na primeira eleição (1933) ainda foi baixo: 3,9% (1,438 milhão em uma população de 36.974 milhões)”16.
Com o golpe de 1937, interrompeu-se a incipiente experiência democrática da década de 1930. Foram dissolvidos os partidos políticos e fechados o Congresso Nacional e a Justiça Eleitoral. Onze anos se passariam sem eleições no Brasil. Como ressalta Jairo Nicolau, “foi o período mais longo, desde a Independência, sem eleições para a Câmara dos Deputados”17.
Com a redemocratização, foi editado, em 1945, o Decreto-lei 7.586, também conhecido como “Lei Agamenon”, que regulou as eleições de 1945 para presidente da República e para os Constituintes. O voto passou a ser obrigatório para os brasileiros alfabetizados de qualquer sexo, maiores de 18 anos, o que foi mantido na Constituição de 1946.
O pleito ocorreu em 2 de dezembro de 1945, sendo um grande marco da democracia no Brasil. Sob responsabilidade da Justiça Eleitoral – restabelecida pelo Decreto-lei 7.586/45 –, ocorreram as primeiras eleições da história brasileira com uma significativa participação popular. Pela primeira vez, 13,4% da população votou, ultrapassando-se a participação eleitoral de 1872, antes da Lei Saraiva. Esse contínuo crescimento do número de eleitores também ocorreu nas eleições de 1950 (15,9%) e de 1960 (18%)18.
Mas, a experiência democrática, mais uma vez, foi seguida de um período ditatorial, a partir de 1964. Durante o regime militar, foram mantidas as eleições diretas no âmbito dos legislativos federal e estaduais e, curiosamente, permaneceu a tendência de crescimento do eleitorado iniciada em 194519. Segundo José Murilo de Carvalho, “em 1960, nas eleições presidenciais, votaram 12,5 milhões de eleitores; nas eleições senatoriais de 1970 votaram 22,4 milhões; nas de 1982, 48,7 milhões”20.
Com o fim do regime militar, foi promulgada a Emenda Constitucional 25, de 1985, concedendo o direito de voto para os analfabetos. Essa medida acabou com a restrição fixada pela Lei Saraiva e que permaneceu no Brasil por mais de um século.
Com a Constituição de 1988, nossa base democrática foi consideravelmente ampliada. O princípio republicano de que o povo se autogoverna, escolhendo seus representantes, concretiza-se pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto do cidadão, com igual valor para todos, como posto no art. 14 da Constituição Federal. O voto é obrigatório para os maiores de 18 anos e facultativo para os analfabetos, para os maiores de 70 anos e para os que têm entre 16 e 18 anos.
Eis, então, o caminho tortuoso da cidadania brasileira: No Império, o Brasil teve um número de eleitores maior que durante a Primeira República. Embora o voto fosse censitário, os analfabetos votavam. Em 1881, vedou-se o voto dos iletrados – o voto passaria a ser direto e a abolição da escravatura era questão de tempo. Na primeira eleição da República, o voto deixou de ser baseado na renda, mas, com a impossibilidade de o analfabeto votar, só 3% da população votou para presidente da República. Até 1932, as mulheres não votavam. Somente em 1945, o eleitorado chegou a mais de 13% da população brasileira. Finalmente, nas eleições municipais de 1985, os analfabetos votaram pela primeira vez na história republicana do Brasil. No que tange à Presidência da República, a universalização ocorreu após a Constituição de 1988, nas eleições presidenciais de 1989. Atualmente, o percentual de votantes é de 75% da população brasileira.
Evolução normativa do financiamento eleitoral no Brasil
Se o direito de voto remete a uma tradição de séculos no Brasil, a preocupação normativa com o financiamento eleitoral é fato recente. As legislações eleitorais dos períodos do Império e da República Velha não regulavam o financiamento das campanhas eleitorais.
Somente após a redemocratização e a Constituição de 1946, é que foram editadas as primeiras normas dedicadas a regulamentar o financiamento dos partidos políticos. O Decreto-lei 9.258, de 1946, proibiu os partidos de receberem contribuições de procedência estrangeira (art. 26, a).
Já a Lei 1.164, de 1950, que instituiu o Código Eleitoral exigiu dos partidos a fixação de limites de gastos e de doações, além da obrigação de manter escrituração das suas receitas e despesas, precisando a origem e a aplicação dos recursos (art. 143). Foi, ainda, vedado aos partidos receber contribuição de procedência estrangeira; receber de autoridade pública recursos de proveniência ilegal; e receber contribuição de sociedades de economia mista ou das empresas concessionárias de serviço público (art. 144).
Na sequência, a Lei nº 4.740, de 1965 – Lei Orgânica dos Partidos Políticos – inovou em relação à legislação anterior, proibindo as doações de empresas privadas de finalidade lucrativa (art. 56, inc. IV). Essa restrição não constava na versão original do projeto de lei, mas foi inserida por emenda substitutiva apresentada pelo deputado Noronha Filho, com a seguinte justificativa:
A finalidade do art. 70 é velar pela pureza dos partidos políticos, impedindo a afluxo abusivo do poder econômico.
Entretanto, o projeto é vesgamente unilateral, eis que tenta barrar a investida de corrupção de origem estatal ou governamental, e deixa a porta aberta para a arremetida corruptora do poder econômico privado.
Os exemplos de corrupção eleitoral no Brasil aí estão a demonstrar a incontrastável influência das organizações e grupos capitalistas privados, nacionais e estrangeiros, na deformação da vontade popular e na fraudação da representatividade eleitoral.
O caso do Ibad é um desses exemplos.
Não se pode moralizar pela metade. Suprima-se a influência nefasta do poder econômico nos pleitos eleitorais, [em todos] os seus aspectos, graus, modalidades e latitudes.21
A vedação legal teve como fator determinante a ligação entre grupos empresariais estrangeiros e a criação de grupos de direita, organizados em conjunto com empresários nacionais, para apoiar eleitoralmente grupos anticomunistas, a exemplo do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), citado na justificativa do projeto.22
A Lei 4.740/65 também criou o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos. O fundo foi o mecanismo adotado para viabilizar o subsídio estatal direto aos partidos e às campanhas eleitorais, bem como para compensar a vedação das doações de empresas.
Em 1971, a Lei 5.682 revogou a lei anterior e instituiu uma nova Lei dos Partidos, a qual vedava, além das contribuições de empresas privadas, as doações de entidades de classe ou sindical. Note-se que essa restrição entrou em vigor num período de crescimento do partido de oposição – o MDB – nos centros urbanos, onde a sindicalização era mais forte23.
Em resumo, o financiamento das campanhas eleitorais ficou limitado, basicamente, às doações de pessoas físicas, aos recursos dos próprios candidatos e dos partidos políticos. Nesse período, ressalte-se, o Fundo Partidário, embora criado desde 1965, não movimentava recursos financeiros significativos.24
Com a redemocratização, a ampliação da base democrática pós-Constituição de 1988 e o pluripartidarismo, a competição eleitoral ficou mais acirrada e os custos das campanhas aumentaram consideravelmente. Com a Lei 8.713/93, adotou-se, então, uma posição mais maleável, permitindo-se que empresas privadas com fins lucrativos contribuíssem com o financiamento dos candidatos na campanha de 1994.
A alteração legislativa foi resultado dos escândalos envolvendo a campanha do presidente Collor de Mello (1989) e do seu impeachment (1992). As quantias gastas haviam sido “assombrosas” e, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a legislação que proibia a doação de empresas foi caracterizada como “hipócrita”, “irreal e excessivamente rigorosa”.
Na mesma direção, foram as leis que se seguiram e que regem o financiamento político até hoje.
A Lei 9.096/95, atual Lei dos Partidos Políticos, admitiu o recebimento de doações de pessoas jurídicas, ficando vedadas as contribuições de entidades ou governos estrangeiros; de autoridades ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações do Fundo Partidário; de entidades da administração indireta ou concessionárias de serviços públicos; e de entidade de classe ou sindical (art. 31). A referida legislação também reforçou o Fundo Partidário, que passou a receber dotações orçamentárias da União de forma permanente (art. 38, inc. IV).
A partir de 1997, os pleitos eleitorais passaram a ser disciplinados pela Lei 9.504, a Lei das Eleições, que regulou de forma definitiva as eleições no país, que, até então, eram reguladas por legislações temporárias e específicas para cada pleito. No mesmo sentido da lei de 1993, foram permitidas doações por empresas privadas, com algumas vedações tópicas (art. 24), como as relativas a entidades estrangeiras, concessionárias ou permissionárias de serviço público, sindicatos, entidades de utilidade pública e pessoas jurídicas sem fins lucrativos que recebam recursos do exterior. Em 2006 e em 2009, foram vedadas, também, as doações de entidades beneficentes, religiosas e esportivas, organizações não governamentais que recebam recursos públicos e organizações da sociedade civil de interesse público.
Foram mantidos, por seu turno, os tetos de doação fixados em 1993 de forma proporcional ao rendimento ou ao faturamento do doador no ano anterior às eleições. O limite de doação das pessoas jurídicas é de 2% de seu faturamento bruto e o das pessoas físicas é de 10% de seu rendimento (art. 81, § 1º, e art. 23, § 1º, da Lei 9.504/97). Uma distorção da igualdade de participação no processo eleitoral!
Note-se que não se estabeleceram limites legais para as despesas dos partidos e dos candidatos nas campanhas, remanescendo a mesma norma desde o Código Eleitoral de 1950: os partidos e coligações comunicam à Justiça Eleitoral os valores máximos de gastos que farão por candidatura em cada eleição (art. 18, da Lei 9.504/97). Em 2006, a Lei 11.300 estabeleceu que cabe à lei fixar o limite de gastos de campanha até o dia 10 de junho do ano eleitoral, mas, não sendo essa editada, caberá a cada partido fixar o limite de gastos, comunicando à Justiça Eleitoral (art. 17-A, da Lei 9.504/97). Como a lei nunca foi editada, no Brasil, são os próprios partidos políticos que têm definidos os limites de gastos nas campanhas.
O financiamento eleitoral
nos EUA e na França

Assim como no Brasil, em muitos países, as reformas mais profundas sobre financiamento eleitoral foram decorrentes de escândalos envolvendo doações ou corrupção.
Nos Estados Unidos, em 1904, acusações de que o então presidente Theodore Roosevelt estaria favorecendo grandes empresas doadoras da sua campanha presidencial resultaram na edição, em 1907, do Tillman Act, o qual proibia contribuições de empresas e de bancos nas eleições federais. Em 1947, durante a era do New Deal, foi editado o Taft-Hartley Act, o qual estendeu a proibição aos sindicatos. Os sindicatos passaram então a organizar comitês independentes de apoio a candidatos, mediante financiamento de seus próprios membros, surgindo, assim, os chamados PAC (Political Action Committees). A essa prática, posteriormente, também aderiram as empresas.
Na década de 1970, após relatos de abusos financeiros na campanha de Nixon (1972) e a eclosão do escândalo Watergate, foi criada, em 1974, a Federal Election Commission (FEC), uma agência federal independente, com a atribuição de regular e fiscalizar o financiamento eleitoral.
Nos EUA, o tema do financiamento político também tem sido objeto de decisões da Suprema Corte. Em 2010, a Suprema Corte americana proferiu polêmica decisão no caso Citizens United vs. FEC, no qual reverteu entendimentos anteriores para declarar que as corporações e os sindicatos têm o direito constitucional de realizar gastos independentes visando apoiar determinados candidatos. Com essa decisão, abriu-se caminho para o surgimento dos superPAC, assim denominados porque podem realizar gastos independentes sem limitação e levantar recursos ilimitadamente junto a empresas, bancos, sindicatos, associações ou indivíduos.
Mais recentemente, no caso McCutcheon vs. FEC, em abril de 2014, a Corte declarou inconstitucional a limitação (agregada) de contribuição que uma pessoa física pode fazer em determinado período, por entender como violadora da proteção à liberdade de expressão. Foi mantido como válido o limite de US$ 2.600,00 que um candidato pode receber por cada contribuinte particular.
Na França, foi instituído um rígido sistema de controle, a partir de 1988, após denúncias na campanha de François Mitterrand. Em 1990, estabeleceu-se teto de contribuições e, em 1995, a proibição da participação de pessoas jurídicas no financiamento eleitoral e partidário.
A França conjugou um programa de financiamento público com um rígido sistema de controle, baseado na definição de limites de gastos e de contribuições por pessoas físicas, na fiscalização da utilização dos recursos e na publicidade da contabilidade dos partidos. O limite de gastos dos candidatos à Presidência da República, por exemplo, é de € 13,7 milhões, podendo aqueles que concorrem no segundo turno elevar seus gastos até € 18,3 milhões. O programa de financiamento público opera por intermédio de um mecanismo de ressarcimento parcial das despesas realizadas em campanha. Ademais, são admitidas as contribuições de pessoas físicas para candidatos no limite de € 4.600 por eleição. No caso de doações a partidos políticos, o teto é de € 7.500 por ano.
No Brasil, apesar dos escândalos a opção foi inversa. Como já mencionado, após o impeachment do presidente Collor de Mello (1992), em 1993, passou-se a permitir as doações de pessoas jurídicas, sob o fundamento de se acabar com o chamado “caixa 2” (doações não declaradas) e de se permitir um maior controle da prestação de contas.
Esse tema também está em discussão no STF. A Corte iniciou o julgamento da ADI 4.650, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Já há maioria de votos favoráveis à inconstitucionalidade da participação de pessoas jurídicas no financiamento eleitoral, mas faltam os votos de quatro ministros para a conclusão do julgamento, que se encontra suspenso em razão do pedido de vista formulado pelo ministro Gilmar Mendes.
A captura da democracia pelo poder econômico
A relação entre Estado, política e poder econômico tem sido uma constante no exercício da cidadania e nas práticas eleitorais no Brasil, da escravidão à sua abolição, passando pelo domínio da política pelas oligarquias regionais, até o momento atual, no qual o processo democrático é financiado pelos grandes grupos econômicos do país.
No período colonial e no Império, o acordo tácito entre a monarquia e os escravocratas, com a criação do exército nacional, garantiu a unidade e a paz nacionais, mantendo a unidade da América Portuguesa. Os escravos – força de trabalho do país – não votavam e não eram sequer considerados cidadãos.
No final do Império, com o avanço dos movimentos abolicionistas, a liberdade dos escravos era iminente. Os analfabetos, por seu turno, com a conquista do voto direto, haviam-se tornado um problema no processo eleitoral. Era preciso, urgentemente, excluir “a massa dos cidadãos fracos e não civilizados”. Coincidência? Sete anos depois da Lei Saraiva (1881) e a proibição do voto dos iletrados, foi abolida a escravidão no Brasil (1888). E, após a abolição, vem a queda do Império (1889).
A influência econômica também estava institucionalizada na política do voto censitário, no qual o exercício do voto era condicionado pela condição econômica. A renda também estava presente nos requisitos de elegibilidade. Para ser senador, por exemplo, o cidadão tinha de ter uma renda anual de no mínimo 800 mil réis (art. 45, IV, da Constituição de 1824).
Com o advento da República, afastou-se o voto censitário, mas os analfabetos continuavam afastados do processo eleitoral. Surgiu, contudo, na República Velha, a chamada “política do café com leite”, resultado da aliança entre as elites oligárquicas dos estados de São Paulo e de Minas Gerais, a qual tinha como base o “coronelismo”, que se manifestava, nas eleições, na forma do “voto de cabresto”.
Victor Nunes Leal já ressaltava, com perspicácia, a natureza desse fenômeno histórico. Nas suas palavras, o coronelismo era “antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”.25
Como anota Barbosa Lima Sobrinho, com a criação da Justiça Eleitoral e a preocupação, cada vez maior, de se impedirem as fraudes eleitorais e de se garantir o voto secreto, “[a]s técnicas eleitorais do passado perdem sua eficácia, diante da nova realidade política. (…) O poder político, obediente aos novos tempos, esquece a antiga brutalidade dos processos policiais e adota as luvas de pelica do poder econômico”26.
Nesse contexto, percebe-se que o financiamento eleitoral pelos grandes grupos econômicos nada mais é do que uma reminiscência dessas práticas oligárquicas e da participação hipertrofiada do poder privado na nossa realidade eleitoral. Sem o voto censitário, sem o voto de cabresto, restou às forças econômicas do país atuar no financiamento das campanhas. Antes, as elites agrárias – os produtores de cana-de-açúcar e de café –, hoje, as elites empresariais – as instituições financeiras, as empreiteiras e as grandes indústrias.
Nesse novo modelo, a captura do processo democrático é resultado principalmente da conjugação da falta de limites efetivos para despesas e doações eleitorais com o financiamento por empresas privadas de partidos e campanhas eleitorais.
Na França, diz-se com frequência que “a democracia não tem preço, mas tem um custo”. Mas, eu pergunto: precisam ser tão caras? Naquele país, por exemplo, o limite de gastos dos candidatos à presidente da República é de € 18,3 milhões (com segundo turno).
No Brasil, a cada eleição, quem estabelece o teto de gastos é o próprio partido político. Como consequência, temos uma corrida desenfreada por recursos, com custos de campanha cada vez mais altos, ficando partidos e candidatos reféns das contribuições e de seus doadores.
Ademais, os limites de doações baseado na renda do doador perpetuam a decisiva influência econômica sobre o pleito eleitoral, já que não impedem que a desigualdade de recursos entre os concorrentes seja fator preponderante para o sucesso na disputa.
Por outro lado, um olhar atento sobre a participação de pessoas jurídicas no processo eleitoral, talvez, atinja o cerne de muitos dos problemas que hoje vivenciamos.
Ora, as empresas não têm ideologia, tanto que fazem doações simultâneas para candidatos adversários. Sendo assim, qual o interesse de as empresas realizarem doações para campanhas eleitorais?
Eis o método vicioso: de um lado, partidos e candidatos buscando fontes para custear suas dispendiosas campanhas; de outro, empresários de setores dependentes ou fortemente regulamentados pelo Estado.
Qual a relação?
Um grande grupo econômico, com interesses em algum setor de atuação do Estado, financia as campanhas eleitorais dos principais concorrentes. O candidato eleito, no exercício do seu mandato, favorece os interesses daqueles que o financiaram, que, recebendo essas benesses, financiarão novamente as eleições seguintes, e assim por diante. O dinheiro investido nas doações acaba retornando para as empresas na forma de contratos, empréstimos subsidiados, defesa de seus interesses, enfim: lucro. É um investimento!
Uma proposta: o financiamento democrático das eleições
No Brasil, o debate acerca do financiamento eleitoral foi muitas vezes reduzido a uma solução bifurcada entre o financiamento público exclusivo e o financiamento privado por parte de pessoas naturais e jurídicas, sem distinção.
Exatamente por isso já me pronunciei no STF, no julgamento ainda em andamento da ADI 4.650, no sentido de não ser admitida pela nossa Carta a vedação da participação do indivíduo na manutenção e no apoio financeiro aos partidos e às candidaturas de sua preferência. O cidadão tem, assim, o direito, como detentor por excelência da soberania popular, de contribuir financeiramente para a vida democrática, desde que dentro de limites.
Dessa forma, afastado o financiamento por empresas privadas e fixados limites uniformes de gastos e de doações por pessoas físicas, o cidadão retomará seu imprescindível papel no exercício da soberania, estimulando-se a reaproximação entre partidos políticos, candidatos e eleitores.
É o que chamo de financiamento democrático das eleições: o financiamento privado de partidos e candidatos, com limites isonômicos, pelos próprios eleitores aliado à manutenção do Fundo Partidário, com recursos do Tesouro Nacional, conforme já previsto na lei partidária brasileira, observando-se a proporcionalidade da representação política expressa nas urnas pela vontade popular.
Outra proposta que merece reflexão é a redução do tempo de campanha eleitoral de 90 para 45 dias, com mais duas semanas para o segundo turno. Além do evidente benefício de reduzir os custos das campanhas, a duração atual tem-se mostrado dispersiva e desgastante, gerando gastos elevados e pouco contribuindo para pôr em relevo temas de real interesse da população, além de deixar o país inerte por meses com a paralisação do Legislativo e do Executivo. Nessa mesma linha, é importante reduzir-se, ainda, o tempo da propaganda gratuita no rádio e na televisão de seis para três semanas, de modo a aprimorar o formato dos programas – que devem focar as propostas dos candidatos e seus planos de governo – e a limitar os efeitos tecnológicos e pirotécnicos.
De toda sorte, há sempre o risco de que os partidos e os candidatos busquem a via das doações proibidas e acima dos limites legais ou que retomem o chamado “caixa 2”.
Para mitigar esses riscos, a Justiça Eleitoral, a quem cabe fiscalizar o aporte de recursos para o jogo político democrático, tem buscado evoluir para fiscalizar e reprimir, de modo mais eficiente, os ilícitos eleitorais. São medidas simples, tais como: (i) exigência de os partidos informarem as doações para os candidatos, indicando os doadores originários, evitando assim a chamada doação oculta, quando empresas doam para candidatos por meio dos partidos; (ii) a assinatura das contas de campanhas por profissional de contabilidade, sendo obrigatória a constituição de advogado; (iii) apresentação de contas de campanhas parciais com a indicação dos doadores, viabilizando sua análise antes das eleições; (iv) maior eficácia, celeridade e eficiência na análise das contas, com a cooperação e o compartilhamento de informações com instituições financeiras e autoridades fiscais; e (v) imposição de penas severas como a perda do mandato ou dos recursos do fundo partidário e a proibição de contratar com o poder público, sem prejuízo de eventual responsabilização em ação penal.
Destaque-se, por fim, a importância da divulgação das contas de campanha na internet, a qual possibilita uma maior transparência e um maior conhecimento pelo eleitor dos financiadores do seu candidato, além do constante e relevante acompanhamento da imprensa. O “voto consciente e livre” do cidadão incentiva o controle recíproco entre os partidos, ajustando sua conduta às exigências da opinião pública e aos parâmetros legais.
Enfim, discutir financiamento eleitoral é discutir o próprio financiamento da democracia. Quem pode e como deve ser financiada a democracia? O caminho é sempre proteger a base democrática, a soberania popular, a liberdade de voto e a confiança e a integridade das políticas estatais.
Notas:
1 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2001. p. 45.
2 Idem, p. 101.
3 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 29.
4 Idem, p. 31
5 Idem, p. 34.
6 CARVALHO. op. cit. p. 36.
7 CÂMARA, anais, sessão de 25/05/1880, p. 234.
8 CÂMARA, anais, sessão de 19/06/1880, p. 36-37.
9 CARVALHO. op. cit. p. 39
10 CARVALHO. op. cit. p. 40.
11 NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 35.
12 CARVALHO. op. cit. p. 40.
13 ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco de. A democracia representativa na República; antologia. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983. p. 312.
14 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 157.
15 NICOLAU. op. cit. p. 37-38.
16 Idem, p. 38.
17 Idem, p. 42-43.
18 CARVALHO. p. 146.
19 Idem, p. 167.
20 Idem, p. 167.
21 Diário do Congresso Nacional, 15/05/1965, p. 3181.
22 SOUZA, Cíntia Pinheiro Ribeiro. A evolução da regulação do financiamento de campanha no Brasil (1945-2006). Resenha Eleitoral. n. 3, jan.-jun., 2013.
23 Idem.
24 SPECK, Bruno Wilhelm. Reagir a escândalos ou perseguir ideais? A regulação do financiamento político no Brasil. Cadernos Adenauer, v. VI, n. 2. Rio de Janeiro: Fundação KAS, 2005, p. 131.
25 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 44.
26 SOBRINHO, Barbosa Lima. Evolução dos sistemas eleitorais. Revista de Direito Público e Ciência Política. v. IV, n. 3. set./dez. Rio de Janeiro. 1961. p. 39.Desafios da quarta maior democracia do mundo
Em 1988, foi promulgada a atual Constituição brasileira, que refundou a Nação, com base no Estado Democrático de Direito e com forte verniz social. Desde então, o Brasil vive o maior período de estabilidade democrática de sua história: 26 anos ininterruptos de Democracia!
A soberania popular concretiza-se pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto do cidadão, com igual valor para todos. Alternância no poder; controle dos abusos dos poderes político, administrativo, econômico e dos meios de comunicação. Meios de participação popular como a iniciativa de leis, que geraram a lei de combate à compra de votos e a lei da ficha limpa. Com as urnas eletrônicas, o voto dado é o voto efetivamente computado. A identificação biométrica, como a garantia de que cada eleitor expresse uma única vez sua vontade nas urnas.
Com mais de 142,8 milhões de eleitores, somos a quarta maior democracia do mundo, após a Índia, os Estados Unidos e a Indonésia.
Mas, ainda há muito a refletir e a avançar no esforço constante de aprimorar o processo democrático de escolha dos nossos representantes políticos, mediante campanhas livres e equânimes que concretizem a genuína vontade popular.
Nosso processo de democratização ainda não foi capaz de evitar que, por meio do financiamento eleitoral, a cidadania seja capturada pelo poder econômico.
Somos uma sociedade capitalista. Na proporção em que aumenta a participação popular na base democrática, também aumentam as tentativas dos setores capitalistas de capturar esta voz. Quer antes, quer depois das eleições! É legítimo, se dentro das regras do jogo. Será ilegítimo se derivar para a corrupção, a fraude e o abuso.
Os dados são incontestes: a democracia brasileira tem sido financiada pelos grandes grupos empresariais.
A campanha eleitoral de 2014 para presidente da República foi a mais cara da nossa história. Foram gastos por todas as candidaturas mais de R$ 648 milhões. Nas campanhas dos candidatos que concorreram ao segundo turno, Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), foram gastos, respectivamente, R$ 350 milhões e R$ 223 milhões.
As contribuições de pessoas jurídicas a todos os candidatos somaram mais de R$ 579 milhões, o que corresponde a mais de 90% do total dos recursos gastos.
Sob outra ótica, a presença massiva das empresas privadas acaba por apequenar a participação do cidadão na disputa. As contribuições de pessoas físicas corresponderam a apenas 2% do montante utilizado. Uma contradição, pois é o cidadão, e não os grupos econômicos, a figura central do processo eleitoral.
O presente ensaio é o resultado de uma série de reflexões acerca do exercício da cidadania e da democracia no Brasil, e parte de uma perspectiva histórico-normativa sobre a influência do poder econômico na formação da cidadania nacional e na captura do nosso processo democrático por meio do sistema de financiamento eleitoral.
Os caminhos da cidadania e do voto no Brasil, um panorama histórico
O sistema eleitoral brasileiro é um reflexo da formação histórica e política do país. De 1822, ano da primeira legislação eleitoral brasileira, até as eleições gerais de 2014, foram 192 anos de vida eleitoral.
Desde o período colonial, já havia nas primeiras vilas e cidades uma tradição democrática expressa no direito do voto. As eleições eram reguladas pelas Ordenações do Reino e tinham caráter estritamente local. O sufrágio era universal, não havendo qualificações prévias1, e o povo elegia os eleitores, os quais escolhiam, entre os “homens bons”, os representantes das câmaras municipais.
Em 1821, foram realizadas as primeiras eleições gerais, regidas pelo Decreto de 7 de março, que adotava o método estabelecido na Constituição Espanhola de Cádiz (1812), inspirada na Constituição Revolucionária Francesa (1791). Tratava-se da eleição dos representantes do povo brasileiro nas Cortes de Lisboa e “o povo votava em massa, inclusive os analfabetos, não havendo qualquer restrição ao voto”2.
Em 19 de junho de 1822, José Bonifácio de Andrada e Silva expede a Decisão nº 57 Reino – considerada a primeira lei eleitoral brasileira –, estabelecendo as instruções sobre as eleições para a Assembleia Geral Constituinte de 1823. Exigia-se do eleitor ser casado ou ter a idade mínima de 20 anos, excluídos os assalariados (exceto os guarda-livros e primeiros caixeiros de casas de comércio, os criados da Casa Real que não fossem de galão branco, e os administradores de fazendas rurais e fábricas) e os mendigos. O voto passava a se assentar sobre bases econômicas, sendo privilégio daqueles mais abastados, como os proprietários de terras ou os altos assalariados.
A Constituição outorgada de 1824, na mesma linha, definiu quem teria o direito de votar. Eram eleitores os homens com pelo menos 25 anos de idade e com renda mínima de 100 mil réis por ano.
Durante o Império, as mulheres não tinham direito ao voto, e os escravos sequer eram considerados cidadãos. No entanto, permitia-se que os analfabetos votassem, ora com autorização expressa da legislação, ora com autorização indireta, permitindo-se a ausência de assinatura nas cédulas ou que elas fossem assinadas por outrem. Conjugava-se o voto censitário, baseado na renda, com o voto dos analfabetos, o que possibilitava uma maior participação política.
Segundo análise de José Murilo de Carvalho, “[para os padrões da época, a legislação brasileira era muito liberal”3, uma vez que a renda exigida era considerada baixa, permitindo que a maioria da população brasileira trabalhadora votasse. Conforme aponta o autor, “de acordo com o censo de 1872, 13% da população total, excluídos os escravos, votavam”4.
Nesse período, as eleições eram uma disputa pelo domínio político local e o voto, um ato de obediência forçada ou de lealdade ou gratidão. Vários eram os especialistas em burlar as eleições: o cabalista fornecia as provas para a comprovação da renda legal exigida, o fósforo fazia-se passar pelo eleitor fictício e o capanga eleitoral era o responsável pela proteção dos partidários e pela ameaça e pelo amedrontamento dos adversários5. Era o tempo das “eleições a bico de pena”, nas quais se incluíam nas atas fraudulentas o voto de eleitores falecidos ou fictícios.
O excesso de participação popular e o crescimento do movimento abolicionista começavam a preocupar. Para se ter eleições diretas, era importante “reduzir o eleitorado à sua parte mais educada, mais rica e, portanto, mais independente”6. Com a edição da Lei Saraiva, em 1881, adotou-se, pela primeira vez, o voto direto no Brasil. Uma vitória dos Liberais. Em contrapartida, o voto passou a ser facultativo, os analfabetos foram proibidos de votar e a renda exigida para ser eleitor aumentou para 200 mil réis, com critérios rígidos de comprovação.
Segundo se observa nos debates legislativos da época, a qualificação dos eleitores era uma forma de se promover a lisura das eleições. Nas palavras do parecer da comissão encarregada de examinar o projeto da reforma eleitoral, a participação “de uma massa de cidadãos mais fracos e menos civilizados fez progressivamente baixar o nível da capacidade do corpo eleitoral”7. Eis a defesa dos legisladores às restrições:
Sr. Teodoreto Souto: (…) o voto deve pertencer sómente aquelles que têm uma certa somma de conhecimento, de ilustração, assim como de independência para exercê-lo. (…) A ignorância é um obstáculo que cada um póde vencer, e da obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário resulta para o estado o direito inauferível de privar o voto do analphabeto.
Sr. Ruy Barbosa: (…) Eis o que o projecto arreda. Não é o elemento trabalho, o elemento probidade, o elemento povo; é o elemento arbítrio, o elemento corrupção, o elemento phosphoro.8
Com a exclusão dos analfabetos e critérios mais rígidos de comprovação da renda, “em 1886, votaram nas eleições parlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou 0,8% da população total. Houve um corte de quase 90% do eleitorado”9. Essa restrição teve efeito duradouro: a vedação do sufrágio pelos iletrados só deixou de existir mais de cem anos depois.
Com a República, os principais cargos de poder do país passaram a ser eleitos. Quanto à base democrática, algumas alterações foram feitas: aboliu-se o voto censitário, mas o direito de voto era assegurado apenas aos homens maiores de 21 anos que soubessem ler e escrever. Permaneciam excluídos os analfabetos, as mulheres, os mendigos.
Com essas restrições, acrescidas ao fato de o alistamento e o voto não serem obrigatórios, as eleições durante a Primeira República (1889-1930) tiveram baixa taxa de comparecimento. Nas eleições de 1894, para presidente da República, votaram 2,2% da população10. Em 1912, para a Câmara dos Deputados, o comparecimento foi de 2,6%11. Na última eleição para Presidência da Primeira República, em 1930, 5,6% da população foi às urnas12.
Permaneceram as restrições ao direito de voto implementadas com a Lei Saraiva, mas as fraudes e o controle do voto pelas oligarquias regionais continuaram. Ainda estavam presentes os cabalistas, os fósforos, os capangas e as “eleições a bico de pena”. Sobressai, nesse período, conforme retratado por Victor Nunes Leal, a chamada “política dos governadores”, cujo elo primário era a “política dos coronéis”. Com o coronelismo, e seu inerente sistema de reciprocidade, dá-se a manipulação do voto pelos chefes locais, em torno dos quais se arregimentavam as oligarquias locais.
Com o “voto a descoberto”, o eleitor apresentava duas cédulas eleitorais, as quais eram assinadas perante a mesa eleitoral e, depois, datadas e rubricadas pelos mesários. Uma cédula era depositada na urna e a outra ficava em poder do eleitor. Com isso, as lideranças tinham um controle absoluto do voto dos eleitores, pois bastava exigir a cédula como prova do voto dado.
Com a Revolução de 1930, ganhou força a voz de Assis Brasil, que, desde 1893, já defendia a busca pela “verdade do voto” e pela “verdadeira representação”, visando conferir maior legitimidade aos resultados das eleições e expurgar do processo eleitoral as práticas deletérias da velha política oligárquica brasileira. No Manifesto da Aliança Libertadora do Rio Grande do Sul ao País, Assis Brasil bem resumiu o caos do processo eleitoral na época:
Ninguém tem certeza de ser alistado eleitor;
Ninguém tem certeza de votar, se porventura foi alistado;
Ninguém tem certeza de que lhe contém o voto, se porventura votou;
Ninguém tem certeza de que esse voto, mesmo depois de contado, seja respeitado na apuração da apuração, no chamado terceiro escrutínio (…).13
Como resultado da Revolução de 1930, foi editado o Código Eleitoral (Decreto-lei 21.076, de 1932), o qual trouxe uma série de conquistas democráticas, como o voto secreto e o primeiro modelo de representação proporcional do país. Foi criada, ainda, a Justiça Eleitoral, que passou a ser o órgão da nação responsável pela organização, pela fiscalização e pelo julgamento das eleições. Tudo concentrado no Poder Judiciário! Seu desenho constituiu peculiar e criativo sistema de controle das eleições, conjugando a tecnicidade e a imparcialidade do Judiciário com a temporariedade do exercício da função eleitoral. Embora permanente a instituição, ela não tem quadro próprio. Seus magistrados não passam de quatro anos no exercício da função eleitoral e, assim, não atuam sucessivamente em duas eleições para os mesmos cargos. Fávila Ribeiro ressalta o modelo institucional da Justiça Eleitoral como eficiente “medida de sabedoria política”14.
Outra garantia histórica foi o direito de voto às mulheres. Ressalte-se que, na América Latina, o Brasil foi o segundo a reconhecer esse direito, após o Equador (1929), e o fez antes de países como a França (1944), a Itália (1946) e a Bélgica (1948)15.
A Constituição de 1934, mantendo a orientação de ampliar a participação política, reduziu a idade mínima do eleitor de 21 para 18 anos. Mas “o contingente de adultos cadastrados para votar na primeira eleição (1933) ainda foi baixo: 3,9% (1,438 milhão em uma população de 36.974 milhões)”16.
Com o golpe de 1937, interrompeu-se a incipiente experiência democrática da década de 1930. Foram dissolvidos os partidos políticos e fechados o Congresso Nacional e a Justiça Eleitoral. Onze anos se passariam sem eleições no Brasil. Como ressalta Jairo Nicolau, “foi o período mais longo, desde a Independência, sem eleições para a Câmara dos Deputados”17.
Com a redemocratização, foi editado, em 1945, o Decreto-lei 7.586, também conhecido como “Lei Agamenon”, que regulou as eleições de 1945 para presidente da República e para os Constituintes. O voto passou a ser obrigatório para os brasileiros alfabetizados de qualquer sexo, maiores de 18 anos, o que foi mantido na Constituição de 1946.
O pleito ocorreu em 2 de dezembro de 1945, sendo um grande marco da democracia no Brasil. Sob responsabilidade da Justiça Eleitoral – restabelecida pelo Decreto-lei 7.586/45 –, ocorreram as primeiras eleições da história brasileira com uma significativa participação popular. Pela primeira vez, 13,4% da população votou, ultrapassando-se a participação eleitoral de 1872, antes da Lei Saraiva. Esse contínuo crescimento do número de eleitores também ocorreu nas eleições de 1950 (15,9%) e de 1960 (18%)18.
Mas, a experiência democrática, mais uma vez, foi seguida de um período ditatorial, a partir de 1964. Durante o regime militar, foram mantidas as eleições diretas no âmbito dos legislativos federal e estaduais e, curiosamente, permaneceu a tendência de crescimento do eleitorado iniciada em 194519. Segundo José Murilo de Carvalho, “em 1960, nas eleições presidenciais, votaram 12,5 milhões de eleitores; nas eleições senatoriais de 1970 votaram 22,4 milhões; nas de 1982, 48,7 milhões”20.
Com o fim do regime militar, foi promulgada a Emenda Constitucional 25, de 1985, concedendo o direito de voto para os analfabetos. Essa medida acabou com a restrição fixada pela Lei Saraiva e que permaneceu no Brasil por mais de um século.
Com a Constituição de 1988, nossa base democrática foi consideravelmente ampliada. O princípio republicano de que o povo se autogoverna, escolhendo seus representantes, concretiza-se pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto do cidadão, com igual valor para todos, como posto no art. 14 da Constituição Federal. O voto é obrigatório para os maiores de 18 anos e facultativo para os analfabetos, para os maiores de 70 anos e para os que têm entre 16 e 18 anos.
Eis, então, o caminho tortuoso da cidadania brasileira: No Império, o Brasil teve um número de eleitores maior que durante a Primeira República. Embora o voto fosse censitário, os analfabetos votavam. Em 1881, vedou-se o voto dos iletrados – o voto passaria a ser direto e a abolição da escravatura era questão de tempo. Na primeira eleição da República, o voto deixou de ser baseado na renda, mas, com a impossibilidade de o analfabeto votar, só 3% da população votou para presidente da República. Até 1932, as mulheres não votavam. Somente em 1945, o eleitorado chegou a mais de 13% da população brasileira. Finalmente, nas eleições municipais de 1985, os analfabetos votaram pela primeira vez na história republicana do Brasil. No que tange à Presidência da República, a universalização ocorreu após a Constituição de 1988, nas eleições presidenciais de 1989. Atualmente, o percentual de votantes é de 75% da população brasileira.
Evolução normativa do financiamento eleitoral no Brasil
Se o direito de voto remete a uma tradição de séculos no Brasil, a preocupação normativa com o financiamento eleitoral é fato recente. As legislações eleitorais dos períodos do Império e da República Velha não regulavam o financiamento das campanhas eleitorais.
Somente após a redemocratização e a Constituição de 1946, é que foram editadas as primeiras normas dedicadas a regulamentar o financiamento dos partidos políticos. O Decreto-lei 9.258, de 1946, proibiu os partidos de receberem contribuições de procedência estrangeira (art. 26, a).
Já a Lei 1.164, de 1950, que instituiu o Código Eleitoral exigiu dos partidos a fixação de limites de gastos e de doações, além da obrigação de manter escrituração das suas receitas e despesas, precisando a origem e a aplicação dos recursos (art. 143). Foi, ainda, vedado aos partidos receber contribuição de procedência estrangeira; receber de autoridade pública recursos de proveniência ilegal; e receber contribuição de sociedades de economia mista ou das empresas concessionárias de serviço público (art. 144).
Na sequência, a Lei nº 4.740, de 1965 – Lei Orgânica dos Partidos Políticos – inovou em relação à legislação anterior, proibindo as doações de empresas privadas de finalidade lucrativa (art. 56, inc. IV). Essa restrição não constava na versão original do projeto de lei, mas foi inserida por emenda substitutiva apresentada pelo deputado Noronha Filho, com a seguinte justificativa:
A finalidade do art. 70 é velar pela pureza dos partidos políticos, impedindo a afluxo abusivo do poder econômico.
Entretanto, o projeto é vesgamente unilateral, eis que tenta barrar a investida de corrupção de origem estatal ou governamental, e deixa a porta aberta para a arremetida corruptora do poder econômico privado.
Os exemplos de corrupção eleitoral no Brasil aí estão a demonstrar a incontrastável influência das organizações e grupos capitalistas privados, nacionais e estrangeiros, na deformação da vontade popular e na fraudação da representatividade eleitoral.
O caso do Ibad é um desses exemplos.
Não se pode moralizar pela metade. Suprima-se a influência nefasta do poder econômico nos pleitos eleitorais, [em todos] os seus aspectos, graus, modalidades e latitudes.21
A vedação legal teve como fator determinante a ligação entre grupos empresariais estrangeiros e a criação de grupos de direita, organizados em conjunto com empresários nacionais, para apoiar eleitoralmente grupos anticomunistas, a exemplo do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), citado na justificativa do projeto.22
A Lei 4.740/65 também criou o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos. O fundo foi o mecanismo adotado para viabilizar o subsídio estatal direto aos partidos e às campanhas eleitorais, bem como para compensar a vedação das doações de empresas.
Em 1971, a Lei 5.682 revogou a lei anterior e instituiu uma nova Lei dos Partidos, a qual vedava, além das contribuições de empresas privadas, as doações de entidades de classe ou sindical. Note-se que essa restrição entrou em vigor num período de crescimento do partido de oposição – o MDB – nos centros urbanos, onde a sindicalização era mais forte23.
Em resumo, o financiamento das campanhas eleitorais ficou limitado, basicamente, às doações de pessoas físicas, aos recursos dos próprios candidatos e dos partidos políticos. Nesse período, ressalte-se, o Fundo Partidário, embora criado desde 1965, não movimentava recursos financeiros significativos.24
Com a redemocratização, a ampliação da base democrática pós-Constituição de 1988 e o pluripartidarismo, a competição eleitoral ficou mais acirrada e os custos das campanhas aumentaram consideravelmente. Com a Lei 8.713/93, adotou-se, então, uma posição mais maleável, permitindo-se que empresas privadas com fins lucrativos contribuíssem com o financiamento dos candidatos na campanha de 1994.
A alteração legislativa foi resultado dos escândalos envolvendo a campanha do presidente Collor de Mello (1989) e do seu impeachment (1992). As quantias gastas haviam sido “assombrosas” e, na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a legislação que proibia a doação de empresas foi caracterizada como “hipócrita”, “irreal e excessivamente rigorosa”.
Na mesma direção, foram as leis que se seguiram e que regem o financiamento político até hoje.
A Lei 9.096/95, atual Lei dos Partidos Políticos, admitiu o recebimento de doações de pessoas jurídicas, ficando vedadas as contribuições de entidades ou governos estrangeiros; de autoridades ou órgãos públicos, ressalvadas as dotações do Fundo Partidário; de entidades da administração indireta ou concessionárias de serviços públicos; e de entidade de classe ou sindical (art. 31). A referida legislação também reforçou o Fundo Partidário, que passou a receber dotações orçamentárias da União de forma permanente (art. 38, inc. IV).
A partir de 1997, os pleitos eleitorais passaram a ser disciplinados pela Lei 9.504, a Lei das Eleições, que regulou de forma definitiva as eleições no país, que, até então, eram reguladas por legislações temporárias e específicas para cada pleito. No mesmo sentido da lei de 1993, foram permitidas doações por empresas privadas, com algumas vedações tópicas (art. 24), como as relativas a entidades estrangeiras, concessionárias ou permissionárias de serviço público, sindicatos, entidades de utilidade pública e pessoas jurídicas sem fins lucrativos que recebam recursos do exterior. Em 2006 e em 2009, foram vedadas, também, as doações de entidades beneficentes, religiosas e esportivas, organizações não governamentais que recebam recursos públicos e organizações da sociedade civil de interesse público.
Foram mantidos, por seu turno, os tetos de doação fixados em 1993 de forma proporcional ao rendimento ou ao faturamento do doador no ano anterior às eleições. O limite de doação das pessoas jurídicas é de 2% de seu faturamento bruto e o das pessoas físicas é de 10% de seu rendimento (art. 81, § 1º, e art. 23, § 1º, da Lei 9.504/97). Uma distorção da igualdade de participação no processo eleitoral!
Note-se que não se estabeleceram limites legais para as despesas dos partidos e dos candidatos nas campanhas, remanescendo a mesma norma desde o Código Eleitoral de 1950: os partidos e coligações comunicam à Justiça Eleitoral os valores máximos de gastos que farão por candidatura em cada eleição (art. 18, da Lei 9.504/97). Em 2006, a Lei 11.300 estabeleceu que cabe à lei fixar o limite de gastos de campanha até o dia 10 de junho do ano eleitoral, mas, não sendo essa editada, caberá a cada partido fixar o limite de gastos, comunicando à Justiça Eleitoral (art. 17-A, da Lei 9.504/97). Como a lei nunca foi editada, no Brasil, são os próprios partidos políticos que têm definidos os limites de gastos nas campanhas.
O financiamento eleitoral nos EUA
e na França
Assim como no Brasil, em muitos países, as reformas mais profundas sobre financiamento eleitoral foram decorrentes de escândalos envolvendo doações ou corrupção.
Nos Estados Unidos, em 1904, acusações de que o então presidente Theodore Roosevelt estaria favorecendo grandes empresas doadoras da sua campanha presidencial resultaram na edição, em 1907, do Tillman Act, o qual proibia contribuições de empresas e de bancos nas eleições federais. Em 1947, durante a era do New Deal, foi editado o Taft-Hartley Act, o qual estendeu a proibição aos sindicatos. Os sindicatos passaram então a organizar comitês independentes de apoio a candidatos, mediante financiamento de seus próprios membros, surgindo, assim, os chamados PAC (Political Action Committees). A essa prática, posteriormente, também aderiram as empresas.
Na década de 1970, após relatos de abusos financeiros na campanha de Nixon (1972) e a eclosão do escândalo Watergate, foi criada, em 1974, a Federal Election Commission (FEC), uma agência federal independente, com a atribuição de regular e fiscalizar o financiamento eleitoral.
Nos EUA, o tema do financiamento político também tem sido objeto de decisões da Suprema Corte. Em 2010, a Suprema Corte americana proferiu polêmica decisão no caso Citizens United vs. FEC, no qual reverteu entendimentos anteriores para declarar que as corporações e os sindicatos têm o direito constitucional de realizar gastos independentes visando apoiar determinados candidatos. Com essa decisão, abriu-se caminho para o surgimento dos superPAC, assim denominados porque podem realizar gastos independentes sem limitação e levantar recursos ilimitadamente junto a empresas, bancos, sindicatos, associações ou indivíduos.
Mais recentemente, no caso McCutcheon vs. FEC, em abril de 2014, a Corte declarou inconstitucional a limitação (agregada) de contribuição que uma pessoa física pode fazer em determinado período, por entender como violadora da proteção à liberdade de expressão. Foi mantido como válido o limite de US$ 2.600,00 que um candidato pode receber por cada contribuinte particular.
Na França, foi instituído um rígido sistema de controle, a partir de 1988, após denúncias na campanha de François Mitterrand. Em 1990, estabeleceu-se teto de contribuições e, em 1995, a proibição da participação de pessoas jurídicas no financiamento eleitoral e partidário.
A França conjugou um programa de financiamento público com um rígido sistema de controle, baseado na definição de limites de gastos e de contribuições por pessoas físicas, na fiscalização da utilização dos recursos e na publicidade da contabilidade dos partidos. O limite de gastos dos candidatos à Presidência da República, por exemplo, é de € 13,7 milhões, podendo aqueles que concorrem no segundo turno elevar seus gastos até € 18,3 milhões. O programa de financiamento público opera por intermédio de um mecanismo de ressarcimento parcial das despesas realizadas em campanha. Ademais, são admitidas as contribuições de pessoas físicas para candidatos no limite de € 4.600 por eleição. No caso de doações a partidos políticos, o teto é de € 7.500 por ano.
No Brasil, apesar dos escândalos a opção foi inversa. Como já mencionado, após o impeachment do presidente Collor de Mello (1992), em 1993, passou-se a permitir as doações de pessoas jurídicas, sob o fundamento de se acabar com o chamado “caixa 2” (doações não declaradas) e de se permitir um maior controle da prestação de contas.
Esse tema também está em discussão no STF. A Corte iniciou o julgamento da ADI 4.650, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Já há maioria de votos favoráveis à inconstitucionalidade da participação de pessoas jurídicas no financiamento eleitoral, mas faltam os votos de quatro ministros para a conclusão do julgamento, que se encontra suspenso em razão do pedido de vista formulado pelo ministro Gilmar Mendes.
A captura da democracia pelo poder econômico
A relação entre Estado, política e poder econômico tem sido uma constante no exercício da cidadania e nas práticas eleitorais no Brasil, da escravidão à sua abolição, passando pelo domínio da política pelas oligarquias regionais, até o momento atual, no qual o processo democrático é financiado pelos grandes grupos econômicos do país.
No período colonial e no Império, o acordo tácito entre a monarquia e os escravocratas, com a criação do exército nacional, garantiu a unidade e a paz nacionais, mantendo a unidade da América Portuguesa. Os escravos – força de trabalho do país – não votavam e não eram sequer considerados cidadãos.
No final do Império, com o avanço dos movimentos abolicionistas, a liberdade dos escravos era iminente. Os analfabetos, por seu turno, com a conquista do voto direto, haviam-se tornado um problema no processo eleitoral. Era preciso, urgentemente, excluir “a massa dos cidadãos fracos e não civilizados”. Coincidência? Sete anos depois da Lei Saraiva (1881) e a proibição do voto dos iletrados, foi abolida a escravidão no Brasil (1888). E, após a abolição, vem a queda do Império (1889).
A influência econômica também estava institucionalizada na política do voto censitário, no qual o exercício do voto era condicionado pela condição econômica. A renda também estava presente nos requisitos de elegibilidade. Para ser senador, por exemplo, o cidadão tinha de ter uma renda anual de no mínimo 800 mil réis (art. 45, IV, da Constituição de 1824).
Com o advento da República, afastou-se o voto censitário, mas os analfabetos continuavam afastados do processo eleitoral. Surgiu, contudo, na República Velha, a chamada “política do café com leite”, resultado da aliança entre as elites oligárquicas dos estados de São Paulo e de Minas Gerais, a qual tinha como base o “coronelismo”, que se manifestava, nas eleições, na forma do “voto de cabresto”.
Victor Nunes Leal já ressaltava, com perspicácia, a natureza desse fenômeno histórico. Nas suas palavras, o coronelismo era “antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa”.25
Como anota Barbosa Lima Sobrinho, com a criação da Justiça Eleitoral e a preocupação, cada vez maior, de se impedirem as fraudes eleitorais e de se garantir o voto secreto, “[a]s técnicas eleitorais do passado perdem sua eficácia, diante da nova realidade política. (…) O poder político, obediente aos novos tempos, esquece a antiga brutalidade dos processos policiais e adota as luvas de pelica do poder econômico”26.
Nesse contexto, percebe-se que o financiamento eleitoral pelos grandes grupos econômicos nada mais é do que uma reminiscência dessas práticas oligárquicas e da participação hipertrofiada do poder privado na nossa realidade eleitoral. Sem o voto censitário, sem o voto de cabresto, restou às forças econômicas do país atuar no financiamento das campanhas. Antes, as elites agrárias – os produtores de cana-de-açúcar e de café –, hoje, as elites empresariais – as instituições financeiras, as empreiteiras e as grandes indústrias.
Nesse novo modelo, a captura do processo democrático é resultado principalmente da conjugação da falta de limites efetivos para despesas e doações eleitorais com o financiamento por empresas privadas de partidos e campanhas eleitorais.
Na França, diz-se com frequência que “a democracia não tem preço, mas tem um custo”. Mas, eu pergunto: precisam ser tão caras? Naquele país, por exemplo, o limite de gastos dos candidatos à presidente da República é de € 18,3 milhões (com segundo turno).
No Brasil, a cada eleição, quem estabelece o teto de gastos é o próprio partido político. Como consequência, temos uma corrida desenfreada por recursos, com custos de campanha cada vez mais altos, ficando partidos e candidatos reféns das contribuições e de seus doadores.
Ademais, os limites de doações baseado na renda do doador perpetuam a decisiva influência econômica sobre o pleito eleitoral, já que não impedem que a desigualdade de recursos entre os concorrentes seja fator preponderante para o sucesso na disputa.
Por outro lado, um olhar atento sobre a participação de pessoas jurídicas no processo eleitoral, talvez, atinja o cerne de muitos dos problemas que hoje vivenciamos.
Ora, as empresas não têm ideologia, tanto que fazem doações simultâneas para candidatos adversários. Sendo assim, qual o interesse de as empresas realizarem doações para campanhas eleitorais?
Eis o método vicioso: de um lado, partidos e candidatos buscando fontes para custear suas dispendiosas campanhas; de outro, empresários de setores dependentes ou fortemente regulamentados pelo Estado.
Qual a relação?
Um grande grupo econômico, com interesses em algum setor de atuação do Estado, financia as campanhas eleitorais dos principais concorrentes. O candidato eleito, no exercício do seu mandato, favorece os interesses daqueles que o financiaram, que, recebendo essas benesses, financiarão novamente as eleições seguintes, e assim por diante. O dinheiro investido nas doações acaba retornando para as empresas na forma de contratos, empréstimos subsidiados, defesa de seus interesses, enfim: lucro. É um investimento!
Uma proposta: o financiamento democrático das eleições
No Brasil, o debate acerca do financiamento eleitoral foi muitas vezes reduzido a uma solução bifurcada entre o financiamento público exclusivo e o financiamento privado por parte de pessoas naturais e jurídicas, sem distinção.
Exatamente por isso já me pronunciei no STF, no julgamento ainda em andamento da ADI 4.650, no sentido de não ser admitida pela nossa Carta a vedação da participação do indivíduo na manutenção e no apoio financeiro aos partidos e às candidaturas de sua preferência. O cidadão tem, assim, o direito, como detentor por excelência da soberania popular, de contribuir financeiramente para a vida democrática, desde que dentro de limites.
Dessa forma, afastado o financiamento por empresas privadas e fixados limites uniformes de gastos e de doações por pessoas físicas, o cidadão retomará seu imprescindível papel no exercício da soberania, estimulando-se a reaproximação entre partidos políticos, candidatos e eleitores.
É o que chamo de financiamento democrático das eleições: o financiamento privado de partidos e candidatos, com limites isonômicos, pelos próprios eleitores aliado à manutenção do Fundo Partidário, com recursos do Tesouro Nacional, conforme já previsto na lei partidária brasileira, observando-se a proporcionalidade da representação política expressa nas urnas pela vontade popular.
Outra proposta que merece reflexão é a redução do tempo de campanha eleitoral de 90 para 45 dias, com mais duas semanas para o segundo turno. Além do evidente benefício de reduzir os custos das campanhas, a duração atual tem-se mostrado dispersiva e desgastante, gerando gastos elevados e pouco contribuindo para pôr em relevo temas de real interesse da população, além de deixar o país inerte por meses com a paralisação do Legislativo e do Executivo. Nessa mesma linha, é importante reduzir-se, ainda, o tempo da propaganda gratuita no rádio e na televisão de seis para três semanas, de modo a aprimorar o formato dos programas – que devem focar as propostas dos candidatos e seus planos de governo – e a limitar os efeitos tecnológicos e pirotécnicos.
De toda sorte, há sempre o risco de que os partidos e os candidatos busquem a via das doações proibidas e acima dos limites legais ou que retomem o chamado “caixa 2”.
Para mitigar esses riscos, a Justiça Eleitoral, a quem cabe fiscalizar o aporte de recursos para o jogo político democrático, tem buscado evoluir para fiscalizar e reprimir, de modo mais eficiente, os ilícitos eleitorais. São medidas simples, tais como: (i) exigência de os partidos informarem as doações para os candidatos, indicando os doadores originários, evitando assim a chamada doação oculta, quando empresas doam para candidatos por meio dos partidos; (ii) a assinatura das contas de campanhas por profissional de contabilidade, sendo obrigatória a constituição de advogado; (iii) apresentação de contas de campanhas parciais com a indicação dos doadores, viabilizando sua análise antes das eleições; (iv) maior eficácia, celeridade e eficiência na análise das contas, com a cooperação e o compartilhamento de informações com instituições financeiras e autoridades fiscais; e (v) imposição de penas severas como a perda do mandato ou dos recursos do fundo partidário e a proibição de contratar com o poder público, sem prejuízo de eventual responsabilização em ação penal.
Destaque-se, por fim, a importância da divulgação das contas de campanha na internet, a qual possibilita uma maior transparência e um maior conhecimento pelo eleitor dos financiadores do seu candidato, além do constante e relevante acompanhamento da imprensa. O “voto consciente e livre” do cidadão incentiva o controle recíproco entre os partidos, ajustando sua conduta às exigências da opinião pública e aos parâmetros legais.
Enfim, discutir financiamento eleitoral é discutir o próprio financiamento da democracia. Quem pode e como deve ser financiada a democracia? O caminho é sempre proteger a base democrática, a soberania popular, a liberdade de voto e a confiança e a integridade das políticas estatais.
Notas:
1 FERREIRA, Manoel Rodrigues. A evolução do sistema eleitoral brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2001. p. 45.
2 Idem, p. 101.
3 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 29.
4 Idem, p. 31
5 Idem, p. 34.
6 CARVALHO. op. cit. p. 36.
7 CÂMARA, anais, sessão de 25/05/1880, p. 234.
8 CÂMARA, anais, sessão de 19/06/1880, p. 36-37.
9 CARVALHO. op. cit. p. 39
10 CARVALHO. op. cit. p. 40.
11 NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 35.
12 CARVALHO. op. cit. p. 40.
13 ASSIS BRASIL, Joaquim Francisco de. A democracia representativa na República; antologia. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983. p. 312.
14 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 157.
15 NICOLAU. op. cit. p. 37-38.
16 Idem, p. 38.
17 Idem, p. 42-43.
18 CARVALHO. p. 146.
19 Idem, p. 167.
20 Idem, p. 167.
21 Diário do Congresso Nacional, 15/05/1965, p. 3181.
22 SOUZA, Cíntia Pinheiro Ribeiro. A evolução da regulação do financiamento de campanha no Brasil (1945-2006). Resenha Eleitoral. n. 3, jan.-jun., 2013.
23 Idem.
24 SPECK, Bruno Wilhelm. Reagir a escândalos ou perseguir ideais? A regulação do financiamento político no Brasil. Cadernos Adenauer, v. VI, n. 2. Rio de Janeiro: Fundação KAS, 2005, p. 131.
25 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 44.
26 SOBRINHO, Barbosa Lima. Evolução dos sistemas eleitorais. Revista de Direito Público e Ciência Política. v. IV, n. 3. set./dez. Rio de Janeiro. 1961. p. 39.

É presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Foi vice-presidente do STF de 2016 a 2018. Ministro do STF desde 23 de outubro de 2009. Presidente da comissão de juristas incumbida, pelo Senado Federal, de elaborar anteprojeto do Novo Código Eleitoral (a partir de 10 de junho de 2010). Professor colaborador do curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Relator da Comissão de Desburocratização da Administração Pública (a partir de 2 de setembro de 2015). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo (USP) – 1986 – 1990.

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