16 julho 2012

Quosque Tandem Abutere Argentina

Uma conhecida anedota diz que os países do mundo poderiam ser divididos em quatro categorias: os países ricos, os países pobres, o Japão e a Argentina. Os ricos tinham tudo para dar certo e deram certo. Os pobres, tudo para dar errado e deram errado. O Japão, tudo para dar errado e deu certo. E a Argentina, tudo para dar certo e por alguma razão ainda não deu.

Uma conhecida anedota diz que os países do mundo poderiam ser divididos em quatro categorias: os países ricos, os países pobres, o Japão e a Argentina. Os ricos tinham tudo para dar certo e deram certo. Os pobres, tudo para dar errado e deram errado. O Japão, tudo para dar errado e deu certo. E a Argentina, tudo para dar certo e por alguma razão ainda não deu. Independentemente de quem tenha sido o autor de tal chiste – alguns atribuem a RaúlPrebish, outros ao prêmio Nobel de Economia e sociólogo Paul Samuelson –, o fato é que, apesar de certo mau gosto da anedota, qualquer um é capaz de diferenciar um país rico de um país pobre. No entanto, permanece o enigma sobre como um país praticamente inviável, como o Japão, se tornou a potência que é, ao mesmo tempo em que a Argentina, com todo seu potencial econômico e humano, perdeu o bonde da história. É notável como a Argentina tem sido capaz de tomar decisões erradas de forma sistemática. Os resultados dessas decisões têm levado o país ao empobrecimento, ao descontrole de sua economia, à queda de sua credibilidade internacional, além de dificultar o projeto de integração regional.

Em 16 de abril de 2012, a presidente Cristina Kirchner decidiu expropriar 51% das ações da empresa petrolífera YPF, então pertencentes à empresa espanhola Repsol. Em ação cinematográfica, característica de regimes populistas, e com discurso nacionalista carregado de simbolismos, a presidente autorizou que funcionários do governo entrassem na sede da empresa e obrigassem todos os executivos espanhóis a se retirar do edifício-sede sem que tivessem ordem legal para fazê-lo. Além de se tratar de explícito desrespeito aos direitos dos acionistas da YPF, a ação foi uma clara violação à Constituição do país. Apoiada pela maioria da classe política, Kirchner ignorou a ordem legal e confiscou a empresa de capital espanhol, apesar do que está estabelecido no artigo 17 da Constituição argentina que “a propriedade é inviolável, e nenhum habitante da nação pode ser privado dela senão em virtude de sentença fundamentada em lei. A expropriação por motivo de utilidade pública deve ser qualificada por lei e previamente indenizada”. Assim, tecnicamente, a medida foi e continua sendo ilegal.

Em vários países, a ação demagógica foi qualificada como bárbara, autoritária, ilegal e fruto de “pirataria”. O ambiente de negócios e a segurança jurídica do país foram feridos de morte. A ação foi arquitetada pelo vice-ministro da economia, Axel Kicillof, jovem prodígio que caiu nas graças da presidente. O Estado argentino se apropriou das ações da Repsol, mas manteve a parcela de 26,5% do Grupo Petersen que pertence à família Ezquenazi. O resto permaneceu com ações abertas na bolsa de valores, e a Repsol manteve 6% das ações. Não se sabe em que princípio jurídico se baseia a flagrante discriminação.

A decisão da dirigente maior argentina acabou por punir o maior investidor estrangeiro no país, além de rasgar o acordo bilateral de promoção e proteção de investimentos, aprovado por lei no Congresso argentino. Mais do que isso, ao usar a justificativa da má gestão da Repsol na exploração de petróleo e gás na Argentina, usurpou os direitos dos acionistas tanto da Repsol quanto da YPF. É importante registrar que a redução dos investimentos em relação à distribuição de dividendos foi prática adotada por todas as empresas exploradoras de petróleo na Argentina, inclusive a brasileira Petrobras. E isso ocorreu justamente como consequência da desastrada política energética adotada por seu predecessor e marido, o ex-presidente Néstor Kirchner.

A Política energética e o modelo econômico da Argentina dos Kirchner

Antes do que ocorreu na Argentina, já se conhecia o risco de uma retomada no processo de nacionalizações da indústria de petróleo, que ocorreu depois de 1970. Antes desta fase, os principais países que nacionalizaram a produção de petróleo foram União Soviética (1918), Bolívia (1937 e 1969), México (1938), Irã (1951), Brasil (1953), Iraque (1961), a própria Argentina (1963), Indonésia (1963), e Peru (1968). Destes, apenas México e Irã tinham alguma importância como exportadores no momento da nacionalização. Até o início dos anos 1970, a exploração de petróleo nos principais países exportadores era realizada por empresas estrangeiras. À medida que novas jazidas foram encontradas em países em desenvolvimento, o nacionalismo impulsionado e vinculado à ideia de exploração das multinacionais, junto ao aumento dos preços e às oportunidades de uso dos recursos oriundos do petróleo para cumprir funções dos Estados nacionais, provocou uma nova onda de nacionalizações.

O risco de que governos pudessem se apropriar da administração e da renda oriunda do negócio do petróleo para promover projetos sociais e outras funções que não a busca da eficiência e a exploração de novos poços tornou-se realidade. Venezuela, Rússia e Irã foram casos típicos de países cujas empresas foram nacionalizadas e tornaram-se estatais com produção declinante e com baixa performance. Focaram em congelamentos de preço dos combustíveis e utilização dos lucros em projetos sociais ao invés de investimento em tecnologia e produtividade. Ao mesmo tempo, afugentaram o investidor estrangeiro, contribuindo para o aumento dos preços internacionais da matéria-prima que criou uma falsa sensação de prosperidade.

Quando Néstor Kirchner assumiu o governo, em 2003, a Argentina era exportadora líquida de petróleo. No entanto, os antigos poços estavam secando e a economia retomava o crescimento, o que provocou uma crise energética. Em 2012, a Argentina já consome aproximadamente 15% de petróleo a mais do que produz. A primeira causa da redução de investimentos foi o esquema para nacionalização de 25% da YPF promovido pelo presidente Néstor Kirchner em 2007, quando o banqueiro Enrique Ezkenazi foi escolhido a dedo por Kirchner para comprar esta parcela da companhia com cerca de US$ 3,5 bilhões emprestados por um grupo de bancos. Com a anuência de Kirchner, a YPF acabou concordando em receber o pagamento mediante dividendos futuros. A outra razão para o fracasso da política energética dos Kirchner foi que, quando a economia argentina caminhava para o colapso no final dos anos 1990, o governo iniciou congelamento de preços da energia. Depois que a moeda foi desvalorizada e desvinculou-se da paridade com o dólar, o governo fixou preços em pesos, corrigindo-os de forma artificial. Tanto a eletricidade quanto o gás natural ficaram significativamente mais baratos do que deveriam. Além disso, o governo também começou a taxar as exportações de petróleo. O investimento caiu e o consumo subiu. Racionamentos de energia forçados começaram a ocorrer. Importações de combustíveis começaram a arruinar o superávit comercial e fiscal do país, estratégia econômica que ajudou a dar legitimidade aos Kirchner durante anos.

A redução do superávit limitou o gasto em infraestrutura, então usado para garantir a lealdade de governadores de província. Impedida de buscar recursos no mercado por falta de crédito, em função da moratória de 2001, a Argentina de Néstor Kirchner voltou-se para os recursos internos e passou a taxar as exportações de grãos. Em 2008, Cristina tentou aumentar os impostos sobre as exportações de grãos ainda mais, porém, quase provocou uma revolução no país e teve que recuar.No mesmo ano, nacionalizou os fundos de pensão e se reelegeu. Em 2010, passou a pagar dívidas com as reservas do Banco Central, até que, em 2012, o crescimento caiu ainda mais e as restrições a todo tipo de importação tornaram-se frequentes, com especial efeito sobre o comércio com o Brasil.

Estatizações dos Kirchner

Curiosamente, os Kirchner não só apoiaram a entrada de um sócio argentino na YPF, sem tradição no negócio do petróleo e sem dinheiro para pagar suas ações, como aplaudiram a oferta pública de ações da empresa em 1993. A Repsol tornar-se-ia majoritária em 1999. Tudo indica que a Repsol acreditou que estaria blindada de agressões governamentais populistas em função da presença de Ezkenazi no grupo. No entanto, com a morte de Néstor em 2010, Cristina se afastou do grupo de assessores originários da Patagônia que tomaram o poder em 2003 e voltou-se cada vez mais para o grupo de jovens de esquerda nacionalista, conhecido como “La Campora”, e liderado por Máximo Kirchner, seu filho.

Em um país com escassez de investimento, é surpreendente o movimento do governo de Cristina Kirchner. Néstor Kirchner já havia nacionalizado os serviços postais em 2003, na ocasião de um ataque direto ao Grupo Macri, que detinha a concessão do serviço. O filho de um dos dirigentes deste grupo tornou-se opositor político do governo. Nos anos seguintes, Néstor nacionalizou também ferrovias, estaleiros e empresas de saneamento básico. Ao assumir em 2007, Cristina foi mais longe: estatizou fundos de pensão privados e a empresa aérea nacional. As privatizações realizadas nos anos 1990 estariam resgatadas e os setores estratégicos recuperados depois de um período de ineficiência e corrupção causado por outros e não pelas próprias políticas do Estado argentino. E, então, veio a YPF.

Quando se busca compreender o objetivo da intervenção na YPF, descrito no projeto enviado ao Congresso, verifica-se que a intenção oficial é garantir a autossuficiência de petróleo. A história recente da Argentina demonstra que o país alcançou a autossuficiência justamente após o Plano Houston, implementado por Raúl Alfonsín, em 1985. Ao propor a desregulamentação do setor e abrir a exploração de 165 campos petrolíferos por empresas privadas, o Plano Houston operou com incentivos e permitiu o investimento estrangeiro. Foi em 1990 que o engenheiro José Estenssoro, nomeado interventor na YPF, conduziu os trabalhos de reestruturação e privatização da YPF com êxito. A YPF passou a ser uma empresa competitiva e o país atingiu a autossuficiência energética justamente como consequência do investimento estrangeiro. Na visão de Estenssoro, a parte majoritária das ações do Estado na YPF deveria ser preservada, mas seu sucessor entendeu que a necessidade de caixa da empresa justificava a venda das ações do Estado à Repsol, o que foi feito em 1999.

O confisco realizado por Cristina Kirchner procura resgatar um erro cometido em 1999, mas da pior forma possível. A continuação da atual política energética enterra a possibilidade de retomada da autossuficiência energética por perda absoluta de credibilidade e segurança jurídica. A imagem do país no exterior piorou significativamente, e o governo ganhou feição arbitrária, autoritária e mais próxima do bolivarianismo.

A ocupação da YPF poderá até trazer benefícios políticos e financeiros à presidente Kirchner. Seu governo poderá se apropriar de bilhões de pesos por ano em lucros, sobrecarregar acionistas minoritários com as perdas de importação da política energética, além de distribuir empregos e escolher fornecedores. O governo pode estar apostando na manutenção dos bons preços das commodities minerais, assim como no símbolo de soberania nacional, como faz com a reivindicação das Ilhas Malvinas. Mas as consequências em médio e longo prazos não têm como ser favoráveis. O governo tenta reduzir a importância das perdas resultantes das nacionalizações, argumentando que foram feitas para garantir serviços públicos, e não para lucrar, mas o histórico de desempenho da companhia aérea, do sistema de saneamento básico e do sistema previdenciário não deixa dúvidas de que a gestão do petróleo e gás não deverá ser exceção.

Consequências da expropriação

Os custos da decisão demagógica já estão surgindo. As novas jazidas de petróleo e gás descobertas no país demandarão investimento de tecnologia avançada para serem explorados e não deverão encontrar parceiro capitalista com facilidade. Como consequência, o déficit comercial energético deverá aumentar. O maior risco, no entanto, é a já manifestada repreensão da comunidade das nações civilizadas. A Espanha decidiu não limitar ou suspender a importação de produtos como forma de retaliação à decisão do governo argentino. No entanto, iniciou trabalho de grande amplitude e intensidade para levar os argentinos ao maior número de tribunais possíveis. No dia seguinte à aprovação do Senado argentino à expropriação da YPF por maioria – 63 votos dos 70 possíveis – o vice-ministro espanhol de cooperação internacional e para a América Latina, JesúsGracia, veio pedir ajuda ao Brasil para que a Argentina pagasse pelos ativos da empresa espanhola. O ministro espanhol para as relações com a União Europeia, Mendes de Vigo, alertou para a transformação da Argentina em um “pária internacional”. A compensação de US$ 10,5 bilhões de dólares foi rechaçada pelo governo argentino e o caso deverá ir para arbitragem internacional, o que deve levar anos.

Dias após a expropriação da YPF, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, fez questão de anunciar ao mundo que naquele país as regras eram estáveis e que ali não há expropriações. Enquanto Chile, Colômbia e Brasil buscam garantir ao mundo condições mínimas de segurança jurídica para o investidor estrangeiro, a Argentina optou definitivamente pelo caminho oportunista e populista praticado por Venezuela, Equador e Bolívia. No discurso oficial, explicita-se o engodo de que a administração do Estado possa gerar uma condução mais profissional. Curiosamente, os profissionais escolhidos pelo governo foram o ministro Julio de Vido, responsável pelo fracasso da política energética de Néstor Kirchner, e o prodígio Axel Kicillof, que dirigiu a empresa aérea Aerolíneas Argentinas após a nacionalização, responsável por um prejuízo diário de US$ 2 milhões desde a estatização, em 2008.

Nas palavras do ministro das Relações Exteriores das Espanha, José Manuel García-Margallo, ao diário chileno “El Mercurio”, seria injusto que a expropriação da YPF afetasse o resto dos países do Mercosul. Margallo foi direto ao manifestar sua discordância de uma eventual retirada das preferências tarifárias aos quatro membros, se apenas um não respeita as regras internacionais. A Espanha passou a considerar a retirada da Argentina do sistema geral de preferências antes do previsto para janeiro de 2014. Além disso, estuda entrar contra a Argentina na OMC e continuar as negociações birregionais União Europeia-Mercosul sem a Argentina, embora não se saiba como isso seria possível. A decisão argentina prejudicou não só o seu maior investidor estrangeiro como também seu maior aliado nas negociações birregionais. O ministro ainda recordou que a Argentina representa um quarto de todos os casos que são levados ao CIADI (Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos, sob a égide do Banco Mundial, criado para garantir segurança jurídica e arbitrar questões relacionadas a investimentos estrangeiros) e metade dos casos latino-americanos. Apesar de discordar de processos de expropriação, o órgão não discute decisões soberanas, contanto que sigam as normas do direito internacional e os compromissos internacionais adquiridos, evitando o confisco. Explicitando a comparação, o ministro espanhol fez questão de destacar a inequívoca defesa da segurança jurídica e a necessidade de respeitar as leis e os acordos internacionais manifestada pelo governo chileno, ressaltando o momento especial das relações bilaterais entre Espanha e Chile e a inexistência de contenciosos bilaterais pendentes. E foi mais longe: elegeu, além do Chile, Colômbia e Peru como países que entenderam que a comunidade internacional exige segurança jurídica para investir.6 A reação de indignação também veio do diretor geral de Empresas e Indústria da Comissão Europeia, Daniel Calleja, que advertiu sobre a perda de confiança da Europa no Mercosul diante da expropriação argentina. Calleja destacou que as principais autoridades da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu expressaram solidariedade com a empresa espanhola.

A comunidade internacional começou a cogitar a exclusão da Argentina do G-20, bloco de países que reúne as maiores economias e os principais emergentes, até que o governo argentino voltasse a agir de forma civilizada e decidisse acatar qualquer tribunal internacional. Há um acúmulo de razões para sugerir a expulsão da Argentina do G-20: o descumprimento de compromissos com o CIADI; o descumprimento do artigo IV da Carta do FMI; as distorções oficiais das estatísticas econômicas; as pendências com o Clube de Paris; as travas às importações comandadas pelo todo-poderoso ministro do comércio interior, Guillermo Moreno, que geraram carta de protesto assinada por mais de 40 países no final de março de 2012; e, finalmente, a expropriação da YPF.

A percepção de que aqueles que governam os argentinos não respeitam a lei está, infelizmente, disseminada e o sentimento de que outras expropriações como a da YPF podem vir a ocorrer já chegou também ao Brasil. A Vale, empresa de mineração brasileira, decidiu reavaliar o projeto de exploração de potássio Rio Colorado na região de Mendoza. Orçado em cerca de US$ 6 bilhões, o projeto passou a ser muito arriscado depois da nacionalização da YPF. A empresa já temia que os índices inflacionários, as constantes mudanças fiscais e o perfil político do governo de Cristina Kirchner pudessem dificultar seus investimentos no país. A Petrobras também teve problemas na Argentina e foi surpreendida pelo governo da província de Neuquén, que cancelou autorizações já concedidas para exploração de três áreas da região. A Petrobras havia cumprido o plano exploratório e iria iniciar as perfurações no segundo semestre de 2012.

Posição da Petrobras

Em um ato pouco usual, o ministro De Vido foi recebido em Brasília pela presidente Dilma Rousseff, pelo ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, e pela presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, na semana seguinte à expropriação da YPF, para pedir que a estatal brasileira aumentasse seus investimentos no país. Havia expectativa de que pelo menos esclarecesse o que foi decidido em Neuquén, mas o ministro limitou-se a dizer que a questão “estava bem encaminhada”, sem explicar o que isto significava.8 Em uma típica atuação diplomática como as que têm marcado a atuação do governo do PT, a presidente Dilma Roussef manifestou que a decisão da Argentina era soberana e que o Brasil não iria interferir. Para não contrariar a decisão argentina, manifestou que o Brasil nunca se negou a ajudar os demais vizinhos. Felizmente, para os acionistas da Petrobras e para o Brasil, Graça Foster garantiu que os recursos da empresa não seriam usados em novas ações internacionais de interesse de parte do governo e em nome de uma diplomacia anacrônica e terceiro-mundista. A empresa seguirá fielmente o plano de investimento para o período de 2011-15.

A violação de contratos por governos latino-americanos com a Petrobras e outras empresas brasileiras, como empreiteiras, não é privilégio argentino. Em 2006, o governo de Evo Morales fez ocupação militar nas instalações da Petrobras, após nacionalizar a indústria de petróleo. Ainda em 2006, o governo venezuelano obrigou a empresa a reduzir de 100% para 40% sua participação em projetos no país. Até hoje o Brasil aguarda o investimento que a Venezuela garantiu quando se tornou parceira na Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco, por decisão do então presidente Lula. A postura passiva e exageradamente tolerante com todo tipo de aventura nacionalista e protecionista dos governos vizinhos da Bolívia, Venezuela, Equador e Argentina é algo que ainda está para ser compreendido pela sociedade brasileira. Infelizmente, cada vez mais longe do mundo da diplomacia e da política, as empresas e os cidadãos dos dois lados sofrem as consequências.

Não apenas grandes grupos de energia e mineração estão alertas ao movimento nacionalista-populista argentino, mas empresas de produtos de consumo, como, é o caso da brasileira Natura, de cosméticos. Ela foi impedida de assumir compromissos acordados com revendedores e clientes naquele país por causa das impeditivas restrições comerciais da Secretaria Especial de Comércio que limita a entrada de toda sorte de produtos. O protecionismo e o comércio administrado para manter superávits também afetam e se aplicam ao setor calçadista, aos produtos da linha branca e ao setor de alimentos. Para a indústria e o consumidor argentinos, o quadro é ainda mais aflitivo. Segundo o próprio governo argentino, 97% das indústrias do país utilizam insumos importados. O regime de contenção de importações já é uma das causas evidentes do “frenazo” da economia argentina, registrado nos primeiros quatro meses de 2012. O país teve crescimento zero neste período e a produção de automóveis, máquinas e equipamentos, têxteis e energia teve queda de 2% a 8% no primeiro quadrimestre de 2012.

Brasil deve repensar relação com Argentina

A política de alinhamento incondicional à Argentina adotada pelo Brasil desde que o ex-presidente Lula assumiu, em 2003, e mantida pela presidente Dilma Rousseff completa quase uma década e seus resultados são, no mínimo, questionáveis. Foi precisamente em outubro de 2003, após a Cúpula de Miami, que tratava das negociações da Área de Livre Comércio das Américas – ALCA, que o governo brasileiro determinou que a última palavra em política comercial brasileira seria definida pelo Ministério das Relações Exteriores. A política externa voltada à intensificação das relações com os países da América do Sul, da África e com “parceiros estratégicos” como China e Índia se sobreporiam a uma agenda focada nos principais centros de poder e maiores mercados do mundo – os Estados Unidos e a União Europeia. Junto à ênfase na necessidade de reformulação dos organismos multilaterais, como a ONU, e a determinação em levar a agenda comercial à OMC, abandonando acordos bilaterais relevantes, os governos Lula/Dilma deixaram interesses políticos se sobreporem a interesses econômicos, com destaque para a América do Sul. Baseando-se em questionável apoio eleitoral, as diretrizes em relação aos países sul-americanos tornaram-se claramente político-ideológicas. Uma simpatia explícita por regimes “bolivarianos”, seja lá o que o termo signifique, tornou-se praxe nas relações do Brasil com Venezuela, Equador e Bolívia. Em relação à Argentina, a tolerância com todo o tipo de pirotecnia econômica e comercial passou a ser a prática diária da diplomacia contra os interesses de parcela majoritária da produção brasileira.

Por imposição geográfica, Brasil e Argentina estão fadados a viver juntos e cooperar. É inegável que, historicamente, fizeram grandes avanços desde a reaproximação entre os dois países, em meados dos anos 1980, mas o retrospecto do Mercosul a partir do final da década de 1990 é de desilusão. As mudanças nos regimes cambiais dos dois lados e as exceções na Tarifa Externa Comum afetaram o comércio entre os dois países. Vivemos quase 15 anos de frágeis ajustes e demagógicos “relançamentos” nas relações. Se, até 2003, o Brasil acumulou déficits comerciais com a Argentina, agora é a Argentina que acumula déficits comerciais com o Brasil. Não está escrito em nenhum manual de integração que as relações comerciais devam ser sempre equilibradas. O que aconteceu foi que a produção argentina ficou menos competitiva no período. E isso não se deve a qualquer ação brasileira. Note-se que na última década as importações totais argentinas aumentaram mais do que as importações argentinas de produtos brasileiros. Se o governo argentino julga de seu interesse reduzir o comércio com o Brasil e, em alguns setores, reduzir a presença brasileira em relação à importação de outros países, há que se repensar o objetivo da integração. O governo brasileiro já ultrapassou qualquer limite de tolerância com o nacionalismo e o protecionismo do nosso mais importante vizinho. É hora de mudar. Com serenidade, repensar o valor que a União Aduaneira imperfeita traz ao país. Cada um dos países tem sua história de desenvolvimento e seus destinos, infelizmente, parecem se distanciar. Os modelos político e econômico são diferentes e há um esgotamento nas tensões comerciais.

A Argentina passou parte significativa de sua história econômica na alternância de endividamentos sistemáticos e moratórias. Suspendeu o pagamento de suas dívidas em 1890, 1982, 1989 e 2001, quando passou a não ter mais crédito internacional. O historiador Félix Luna afirma que “(…) a Argentina foi, quase permanentemente, um país devedor, e isso caracteriza bastante nosso modo de ser. Mas podem-se contrair dívidas boas e dívidas ruins e nós tivemos ambos os tipos. (…) o que é certo é que a ‘grande devedora do sul’, como parodiou Sarmento o hino nacional argentino – e esquecendo que ele mesmo havia sido um dos grandes geradores da dívida – é algo que atravessa nossa história com todos os seus matizes”.10 O Brasil também foi durante toda a sua história um grande contratante de dívidas, mas, nas devidas proporções, o país vem se distanciando deste mal desde meados dos anos 1990, quando alcançou a estabilidade monetária.

Quando os termos de troca voltaram a seu favor a partir de 2003, a Argentina buscou alternativas exóticas para administrar as contas públicas. Além de as autoridades econômicas iniciarem a adoção de índices de inflação abaixo da realidade, no segundo semestre de 2004, as autoridades comerciais criaram uma maneira de conter a importação de produtos brasileiros por meio do instrumento conhecido como Mecanismo de Adaptação Competitiva (MAC), que tinha como objetivo manter uma balança comercial favorável para seguir com alguma estabilidade, já que o crédito havia sido perdido.

Superávit brasileiro

Desde aquela época, a então diretora da União Industrial Argentina, Débora Giorgi, que viria a ser nomeada ministra da Indústria de Cristina Kirchner, passou a criticar o favorecimento do Brasil no comércio bilateral com a Argentina. De fato, e como citamos anteriormente, o Brasil passou a ter superávits comerciais sucessivos com a Argentina, o que gerou cada vez mais descontentamento do lado portenho. Casos de contenção de produtos da linha branca, calçados, têxteis e cosméticos na fronteira argentina passaram a ser uma constante. Após sucessivas negociações, que nunca foram plenamente cumpridas, no início de 2012, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil, Fernando Pimentel, afirmou que a Argentina tornara-se um problema permanente, manifestação que convergia com a opinião da maior parte dos exportadores para aquele país.
A reação argentina foi imediata, lembrando que o Brasil registrara um superávit comercial de cerca de US$ 30 bilhões em 2011 e que a Argentina teria sido responsável por aproximadamente 20% desse saldo. Também alegou que, em 2011, as exportações do Brasil para a Argentina aumentaram 23% em relação ao ano anterior. Dos US$ 22 bilhões exportados pelo Brasil à Argentina, 95% eram de produtos manufaturados.

As medidas de contenção da Argentina não cessariam e são hoje um contrassenso para qualquer processo de integração regional. Ao longo dos últimos oito anos, os governos de Néstor e Cristina Kirchner usaram de forma maciça as licenças não automáticas de importação e, em boa parte dos casos, liberando os produtos após 180 dias de espera nas alfândegas, contrariando frontalmente os prazos máximos definidos pela Organização Mundial de Comércio. Como tudo isso ainda não foi suficiente para conter a demanda do consumidor argentino por produtos com melhor preço e qualidade, novas medidas foram adotadas em novembro de 2011: os importadores tiveram que passar a apresentar toda a documentação bancária envolvida na transação para análise da Afib, Administração Federal de Ingressos Públicos, a Receita Federal argentina. A partir de fevereiro o processo foi ainda mais restrito. A aplicação da resolução número 3252 da Afib determinou que todas as empresas que desejassem importar deveriam entregar relatório detalhado denominado “Declaração Juramentada Antecipada de Importação” às autoridades tributárias para análise e autorização – ou não – do ministro do Comércio Interior, Guillermo Moreno, com prazo indefinido. Nos primeiros dois meses de aplicação das novas restrições, as importações argentinas caíram mais de 10%, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Sensos, o Indec.

Não se pode prever que fim terá a presidência de Cristina Kirchner e seus seguidores. Por enquanto, é evidente o enfrentamento do problema de caixa do governo, mantido por um crescimento econômico que se beneficiou dos preços internacionais das matérias-primas e de um comércio menos dependente de Estados Unidos e Europa do que de China, Brasil e Chile. O saldo de US$ 10,5 bilhões, alcançado em 2011, não se repetirá em 2012. Uma economia que pode crescer perto de 3% (a estimativa oficial para 2012 é de 5%), com uma demanda crescente de importação de energia – apenas a compra de eletricidade e gás deverá demandar US$ 7 bilhões – encontrou, em parte, a solução mágica e populista da reestatização da YPF. O discurso entusiasmado com a imagem de Evita não foi o mais apropriado. Ela foi a esposa do presidente que estatizou a telefonia, os portos e as ferrovias nos anos 1940. Os resultados são conhecidos: a tensão social gerou violência e acabou com o golpe militar que depôs Perón e o levou ao exílio.

O governo de Cristina Kirchner resgatou um fantasma do passado e criou um círculo vicioso no qual adota medidas extremas para solucionar problemas que suas próprias políticas criaram. O aumento dos riscos se refletirá no Brasil? Assim como a Colômbia, o Chile e o México foram claros nas suas posições e se distanciaram das políticas de Kirchner. O Brasil faz um jogo duplo sem sentido e provoca a desconfiança nos observadores internacionais. Estes suspeitam que os dois países estão de tal forma vinculados que os erros de um podem afetar o outro. O Brasil deveria se posicionar claramente contra o populismo e a demagogia. O momento de rever as relações bilaterais e a integração regional está colocado. Há oportunidades que não podem ser perdidas em função de uma política doutrinária de aliança incondicional.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter