01 outubro 2008

Razões Afirmativas: Relações Raciais, Pós-Emancipação e História

Os autores argumentam que a questão racial ocupou, ainda que veladamente, lugar central na agenda da construção do Estado brasileiro desde o século XIX. Aos negros, as elites teriam reservado um lugar subordinado nos projetos de modernização do país. O crescimento econômico e a adoção de políticas sociais universais não seriam suficientes para libertá-los desse lugar ideologica e socialmente construído. Para tanto, os autores defendem a necessidade de políticas de ação afirmativa.

A perspectiva da adoção de ações afirmativas em prol da população afrodescendente brasileira vem causando grande polêmica. Para muitos críticos dessa proposta, tais medidas poderiam comprometer o princípio do mérito no acesso à universidade e cargos públicos via concursos e até mesmo,no limite,colocar em xeque a unidade e a identidade nacionais.Nessa linha,o tema seria alheio à nossa realidade, ingenitamente pacífica no plano das relações entre pessoas de grupos raciais distintos.O ponto de vista dos autores do presente artigo caminha em direção contrária a essa interpretação negativa das ações afirmativas.Fazemos uma reflexão sobre como se deu a abolição da escravidão e a incorporação da população de ex-escravos e seus descendentes à sociedade brasileira no pós-emancipação,e sobre as narrativas que se construíram sobre esse processo.Pretendemos com isso responder a algumas perguntas:será que o tema das relações raciais é propriamente uma novidade em nosso meio? Seria correto dizer que na construção do moderno projeto de Estado-nação essa questão esteve ausente ou ela esteve,sim,presente, embora de forma muitas vezes oculta? Se assim foi, como se deu esse ocultamento, ou seja, que tipos de utopia ou ideário foram mobilizados pelos pensadores das elites brasileiras, de e Flávio Gomes modo a tornar,atualmente,tão difícil de entender o óbvio,isto é,a realidade das assimetrias raciais? Essa reflexão levará,na parte final do artigo,a um argumento em favor de políticas de ações afirmativas para os afrodescendentes. Elas nos parecem essenciais para estabelecer um novo projeto de país, alternativo ao que prevaleceu no século XX,um projeto fundado em parâmetros democráticos e eqüitativos no plano social.

Raça e nação após a abolição

A escravidão marcou a sociedade brasileira de várias formas. Foram quase 400 anos de trabalho compulsório para indígenas e africanos. Como aponta Joaquim Nabuco, no seu clássico O Abolicionismo,“a escravidão procurou,por todos os meios, confundir-se com o país, e,na imaginação de muita gente, o conseguiu”.O fim da escravidão para várias sociedades nas Américas começou nas primeiras décadas do século xIx. O Brasil – que recebeu cerca de 40% de todos os africanos escravizados enviados para as Américas – foi o último país a abolir a escravidão. No alvorecer do século xx, setores das elites,intelectuais,cientistas e literatos já falavam da escravidão como coisa de um passado muito distante. A idéia era apagar a “mancha” da escravidão e eliminar a memória das lutas abolicionistas do século XIX. Escravos e libertos foram transformados em “negros” e “pretos”, numa perspectiva racial de classificação estigmatizadora das novas hierarquias sociais do século xx.

A abolição não foi acompanhada de políticas públicas que garantissem terras, educação e direitos civis plenos aos descendentes de escravos e libertos. Pelo contrário, políticas públicas urbanas e higienistas refundaram as diferenças sob novas bases sociais e étnicas.Até a década de 1930, o 13 de Maio era feriado nacional, comemorado com festas cívicas, além de populares.Apesar da manutenção de faces da desigualdade, descendentes de escravos e mesmo libertos comemoravam – se não a cidadania plena – a liberdade conquistada com a Lei Áurea.

Escravidão: um passado próximo

O passado da escravidão não era e continua a não ser muito distante. Um homem ou uma mulher negra, hoje com 70 anos, pode ser neto de escravos, filho de uma filha de libertos no  3 de Maio. Senão vejamos: alguém com 70 anos, nascido portanto em  938, cuja mãe tivesse à época de seu nascimento 40 anos, e os avós maternos 72 anos, é neto de escravos nascidos em  866, cinco anos antes da Lei do Ventre Livre de  87. Seus avós podem ter sido escravos até os 22 anos de idade. Ou seja, a geração mais idosa de pardos e pretos, identificada hoje nos censos modernos e abrangentes do IBGE, pode ser filha e é predominantemente neta de ex-escravos dos 13 de maio de 1888.

Apesar da proximidade histórica, o fato é que ainda conhecemos pouco sobre o período pós-emancipação no Brasil. O que representaram – em áreas rurais e urbanas – as primeiras décadas da liberdade para milhares de homens e mulheres – e seus filhos, netos e sobrinhos

Antropologias da Pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro, FGV, 2007, pp. 9- 5.

– que conheceram a escravidão? A cena final da telenovela Sinhá Moça, exibida anos atrás, é ilustrativa dessa realidade. Nela, apareciam duas gigantescas filas – paralelas e em sentidos contrários. Uma, chegando à fazenda, era formada de imigrantes europeus que rumavam em direção ao trabalho livre, supostamente racional e capitalista. Todos brancos. Na fila de saída, surgiam ex-escravos e libertos negros, ao mesmo tempo expulsos, indesejados, ingratos ou obtusos, que rumariam para as cidades à procura de emprego. Imagens caricatas, muitos diriam, mas também indicativas de como a intelligentsia (literatos e intelectuais) percebeu o que muitos estudos chamariam de “transição”.

Caricaturas ou não, tais imagens indicam projetos de nação presentes ontem e ainda hoje.De um lado, os imigrantes inventando a história do trabalho e do progresso e, de outro, o seu oposto: milhares de negros analfabetos, miseráveis, despreparados, a indicar problemas sociais no futuro. Desqualificaram-se assim, de saída,possibilidades de pensar, após a emancipação,experiências e expectativas que articulassem fronteiras econômicas e agrárias abertas a micro-sociedades camponesas (roceiros,libertos,negros e mestiços).Possibilidades históricas alternativas foram silenciadas, assim como um mar de progresso e civilização afogaria indivíduos e sujeitos históricos tidos como socialmente despreparados.Como esse silêncio foi construído,como um passado sem alternativas foi inventado?

Tentativa de apagar o passado

O silêncio começa pela tentativa de apagar o passado. Por um lado, para fazer vistas grossas às promessas feitas aos fazendeiros, e não cumpridas, de indenizá-los pelos escravos libertos. Por outro, para colocar panos quentes nas expectativas de acesso à terra e autonomia nutridas pelos libertos e pela população negra,em geral, nas cidades e no interior. Numa carta enviada a familiares em Valença, em abril de  889, uma tal Pequetita Barcelos já se referia ao  3 de Maio como o “malfadado dia”, afirmando que os libertos preparavam “balas para os republicanos” e que só pensavam em “política e raça”. O contexto era o temor da Guarda Negra, da propaganda republicana e de uma suposta retaliação política. Enquanto a população negra adulta era apelidada de os “13 de Maio”, os fazendeiros insatisfeitos eram chamados de “republicanos do 14 de maio”,ou seja,aqueles que aderiram à campanha republicana e se tornaram críticos ferrenhos da monarquia justamente após a Abolição e por causa do não pagamento das indenizações. 

Memória seletiva da Abolição

O esforço para esquecer um passado incômodo também foi acompanhado pela construção de uma memória seletiva do processo de emancipação, que apresentava a Lei Áurea como uma dádiva concedida pela romântica figura da princesa Isabel, amparada pela ação apenas dos abolicionistas brancos e dos parlamentares da época. Essa imagem idealizada do  3 de Maio produziu uma série de silêncios sobre as batalhas pela Abolição, marcadas pela edição de jornais que reivindicavam o fim da escravidão, fugas coletivas,participação da classe trabalhadora organizada em associações,meetings abolicionistas, refregas nas ruas etc.Tentava-se,assim,desmobilizar os cenários,desqualificar os personagens,enfraquecer a força política e os desdobramentos da Abolição, remetendo a escravidão e os ex-escravos para um passado distante.

Na verdade, o debate sobre participação política no período de pós-independência foi profundamente marcado por tensões, com expectativas de libertos e homens de cor livres. Os debates sobre o fim do tráfico e a legislação antiescravista foram igualmente marcados pelas expectativas de controle, de um lado, e de autonomia, de outro. Houve ainda – portanto não se trata apenas de um problema contemporâneo – um debate sobre o sistema de classificação racial. Ou seja, quer no mundo da grande política, quer no mundo das práticas sociais, a questão racial esteve presente, ainda que não abertamente.

O mito do paraíso racial

É bem conhecida a montagem de uma ideologia da desracialização no século XIX, que silenciava sobre a raça e cada vez mais excluía com base na raça.Tal prática não se tornou incompatível com as narrativas da miscigenação.Mistura e discriminação – em termos raciais – sempre andaram juntas no caso brasileiro.A raça não era evocada – já exaltavam Nabuco e outros abolicionistas – mas as tensões raciais preocupavam sobremaneira. Em outras sociedades pós-coloniais não foi diferente, especialmente em Cuba .Sob silêncios estrondosos, os projetos de nação eram apresentados,escolhas feitas e políticas governamentais desenhadas.
A imagem de paraíso racial não foi criada por maquiavelismo das elites. Desde o século xIx, viajantes estrangeiros chamavam atenção para a miscigenação, principalmente em cidades como Rio de Janeiro e Salvador. Mesmo os abolicionistas norte-americanos, na década de  840, pontuavam a sua propaganda antiescravista com a reafirmação da crueldade da escravidão nos EUA, à diferença do suposto paternalismo senhorial e das relações harmoniosas entre brancos e negros no Brasil . Sob a imagem idealizada, porém, definiam-se hierarquias sociais com base na raça, na cor e na origem social, correspondentes a posições de classe e prestígio, bem como possibilidades de mobilidade social.  Na engenharia da identidade nacional brasileira, definiu-se um lugar para o negro (nesse sentido, inventou-se o “negro”):um lugar de subordinação.

Culturalismo e desenvolvimento

O debate atual sobre as políticas de ações afirmativas para a população negra acendeu uma controvérsia, de certo modo esquecida em nosso país, acerca da maneira pela qual o tema da raça foi sendo incorporado no moderno projeto de Estado-nação. Nos primeiros tempos pós-abolição, era patente a contradição entre um país que entendia ter praticado um modelo de escravidão benigna, mas que vivia em constante tensão, amedrontado pela possível reação dos antigos escravizados, agora em condição de homens livres, mas portadores de uma cidadania parcial e assim, muito provavelmente, ansiosos por uma profunda distribuição de ativos econômicos, políticos e sociais. Já no decorrer de todo o século xx, salta aos olhos a angústia das elites eurodescendentes acerca do futuro do país, justificadas por uma interpretação que atribuía a uma suposta tara étnica inicial e ao seu legado uma virtual incapacidade do país de desenvolver-se econômica e socialmente com um povo de origens supostamente tão medíocres. Em ambos os momentos históricos,por diferentes que tenham sido,é possível encontrar uma persistente questão: qual a influência que os descendentes dos antigos africanos escravizados,e secundariamente dos indígenas,teriam na constituição do povo brasileiro e, por conseguinte, para o Brasil enquanto nação?

O culturalismo de Freyre, valorizando a especificidade cultural brasileira e a mestiçagem, teve um papel estratégico em termos da construção de um ambiente ideológico e cultural propício ao desenvolvimento econômico e institucional do Brasil, segundo um modelo forjado na década de 1930 e aprofundado em 1964. A interpretação culturalista trouxe para o projeto desenvolvimentista duas contribuições no plano ideológico:

1) o legado lusitano ancestral, na medida em que favorecia o contato entre raças diferentes, suavizara o processo de modernização do país em termos de seus eventuais impactos sociais,permitindo que no Brasil a modernidade pudesse se dar sem a presença de conflitos raciais abertos;

2) a miscigenação racial e cultural forjaria um povo homogêneo,com características próprias, lembrando-se ser este um dos principais condicionantes para a formação de um projeto moderno de nação.

Desse modo, o próprio mito da democracia racial foi posto a serviço,como motor ideológico, do modelo desenvolvimentista. Ou seja, as elites utilizaram o ideário mítico da mestiçagem,ou da morenidade, produto sincrético da fusão das três raças originárias formadora do povo brasileiro, como instrumento mobilizador do desenvolvimento e do progresso. Nesse sentido,tendo em vista o debate sobre as ações afirmativas nos dias atuais, parece que os autores mais fortemente vinculados a uma concepção desenvolvimentista elegeram as reivindicações do movimento negro como especialmente impróprias para o contexto nacional.A grande questão,por conseguinte, passa a ser: tal fórmula, dados os abismos sócio-raciais existentes, pode ser considerada progressista nos dias atuais?

Ao consagrar o princípio da mestiçagem, o pensamento culturalista evidentemente valorizou o legado das três raças formadoras do povo de nosso país. Essa valorização, entretanto, não diz tudo acerca dos papéis sociais que cada um dos brasileiros teria no país do futuro. A mestiçagem idealizada não prova a inexistência de sistemas de classificações raciais em nosso país.Eles existem e obedecem a critérios hierárquicos que associam cor e raça a distintos e estigmatizados graus de prestígio social. É nisso que reside o problema. Existindo pessoas classificáveis como brancas, negras e mestiças (ora mais claras,enquadradas como “brancas sociais”,ora mais escuras,enquadradas como “negras sociais”), a questão é saber justamente o papel social que cada uma delas desempenhará a partir de lugares sociais que lhes são atribuídos.

Sobressai na história brasileira do século xx uma lamentável dissociação entre progresso e modernidade, de um lado, e populações afrodescendentes e indígenas, de outro. Estas estariam condenadas a espaços sociais, ocupações profissionais e pontos do território socioeconomicamente subdesenvolvidos e culturalmente simplórios no plano cultural,religioso e simbólico (neste âmbito, suas contribuições somente seriam consideradas válidas quando filtradas pelo crivo branqueador da cultura de classe média; vide a relação existente entre o samba de raiz e a bossa-nova), Afinal, negros e índios seriam portadores de uma mentalidade não cartesiana, pré-lógica. Já brancos e mestiços mais claros, estes sim portadores de uma mentalidade cartesiana, e capazes de agir estrategicamente,estariam automaticamente associados ao progresso econômico, ao dinamismo sociocultural, ao Brasil do futuro, em suma.

Dito de outro modo: capitalismo = branqueamento e cultura européia (ou eurodescendente). A presença negra ficaria a léguas das universidades, laboratórios de pesquisa, grandes empresas, alta cultura e qualquer outro espaço que denotasse boas condições socioeconômicas e prestígio social. Ao contrário do que ocorria no século xIx,quando,a despeito da escravidão,encontravam-se afrodescendentes nas mais diversas esferas do pensamento cultural, artístico,político e científico.

Como,então,pensar em um novo projeto de país sem desfazer as imagens social e historicamente construídas e associadas às raças, como construir um projeto democrático-republicano,em que as marcas físicas deixem de ser causa eficiente da realização profissional, política e pessoal de diversas pessoas, sem desconstruir essas imagens? É preciso, pois, fazer a crítica da ideologia da mestiçagem. Não porque ela falseie propriamente a visível pluralidade de origens que formam o povo brasileiro. A objeção reside, isso sim, na forma pela qual esse fato é incorporado à mentalidade dos setores dominantes, como forma de ocultação e preservação das injustiças sócio-raciais presentes em nosso meio.

As imagens social e historicamente construídas sobre as raças têm incidência sobre as políticas públicas, embora as estratégias do poder público no Brasil raramente tenham assumido uma perspectiva abertamente racialista.Nem por isso deixaram de ter efeitos bastante perversos do ponto de vista das disparidades raciais. O racismo institucional, de que falam autores como Fernando Lopes, assumiu pelo menos as seguintes formas:
    
•    escolha desigual, por parte das autoridades competentes, das áreas habitadas primordialmente por brancos e negros para fins de investimentos em serviços públicos (rede escolar e hospitalar, serviços públicos coletivos como coleta do lixo, abastecimento de água potável e rede de esgoto);
•    postura leniente diante das práticas racial-mente preconceituosas e discriminatórias no interior das agências públicas fornecedoras desses serviços;
•    ação seletiva do aparato judicial e policial em relação aos afrodescendentes, seja pelo que deixa de ser feito (oferta insuficiente de serviços de segurança pública (policiamento ostensivo,iluminação de ruas,acesso aos serviços jurídicos, controle da ação dos grupos de extermínios e quadrilhas organizadas),seja pela pelo que é feito (ação racial-mente seletiva da ação judiciária, carcerária e policial, com drásticos efeitos sobre a população negra, mormente a jovem do sexo masculino);     
•    as ideologias vigentes legitimam a ausência dos negros e negras dos espaços da vida social de maior prestígio social ou que permitam acesso mais favorável aos mecanismos de em poderamento econômico ou político,tornando assim natural as assimetrias sócioraciais existentes,bem como sua permanente perpetuação.

Razões Afirmativas

Como dissemos antes, no decorrer de todo o século xx, as angústias das elites euro-descendentes acerca do futuro do país se associaram com uma interpretação dos males decorrentes de uma suposta tara étnica inicial e o seu legado em termos de uma virtual inca-pacidade do Brasil de desenvolver-se econômica e socialmente com um povo de origens supostamente tão medíocres.Não deixa de ser irônico perceber que muitos dos que argumentam contra as propostas de ações afirmativas para os afrodescendentes o fazem porque vêem em tais medidas uma racialização de nossa sociedade, assim compro-metendo a nossa suposta democracia racial. O interessante é que tais atores sociais não per-cebem a armadilha em que caem. Afinal, uma democracia somente pode receber a adjetivação de racial caso esteja toda ela embebida em uma perspectiva racializada. Mesmo o termo mestiçagem ajuda pouco aos defensores da idéia de democracia racial. É que,mais uma vez,os significados ideológicos que são atribuídos ao mestiço somente fazem sentido quando remetidos às supostas raças originárias que formariam a Humanidade. Ou seja, trata-se de uma concepção racializante. Tal aspecto da questão não pode ser tomado como secundário, pois faz parte do sentido mais profundo do drama que tentamos expor ao longo dessas páginas. Ou seja: o problema das relações raciais sempre foi o elemento central da formação da sociedade brasileira.Em seus diversos contextos históricos.

Tendo em vista o conjunto de observações expostas, a questão que remanesce é de ordem normativa, ou prática. Afinal, o que fazer? Em síntese, podemos salientar os seguintes pontos:

 •    a problematização do tema da (falta de) cidadania da população afrodescendente no Brasil não pode ser tida como uma questão estranha à nossa sociedade tendo em vista que ela sempre esteve presente, conquanto até poucos dias atrás pela sua variante negativa, marcando nossa história pregressa,moderna e contemporânea. O pior modo de encarar o tema do racismo, do preconceito e da discriminação racial, e suas seqüelas,é pura e simplesmente tentar escamoteá-lo,como se essas práticas não fossem correntes em nossa sociedade. Recorrendo a Joel Rufino, é preciso insistir em que, no Brasil, o negro é um lugar, representando uma condição social subalterna,mal remunerada e de baixo prestígio. Mudar esse quadro é uma tarefa para toda uma geração, ponto de partida para que nosso país se torne uma nação próspera e democrática em múltiplos sentidos;

•    as ações afirmativas representam o princípio do tratamento desigual aos desiguais visando superar crônicas situações de desvantagem para pessoas de grupos histórica, e estruturalmente discriminados, situações que, na falta de mecanismos corretivos adotados deliberadamente com esse fim, prorrogar-se-ão indefinidamente.É pouco crível que as forças cegas,seja do mercado,seja das elevadas taxas de crescimento econômico, seja da efetiva universalização de determinados serviços públicos, possam gerar tal resultado.Isso porque o motor dinâmico das assimetrias raciais é um modelo de relações raciais baseado no princípio da preservação das desigualdades entre os diferentes,que opera por intermédio do preconceito e da discriminação racial. A maior ou menor explicitação ou verbalização de ambas as práticas sociais é uma característica pura-mente formal, embora formem modelos de relações raciais distintos. O essencial é que, onde e como quer que incidam, o preconceito e a discriminação racial são um mecanismo de preservação de injustiças sociais. Em suma, a efetivação da agenda da eqüidade étnico-racial requer uma ativa presença do Estado e do conjunto de atores que formam a sociedade civil;
    
•    o ceticismo expresso quanto à capacidade de a universalização dos serviços públicos efetivar o princípio da eqüidade racial não equivale à discordância quanto à validade dessa perspectiva. Em primeiro lugar, não há contradição necessária entre a universalização de um determinado serviço público e a simultânea escolha de prioridades, ou alvos, entre o público mais carente, afetado ou prejudicado por um determinado problema social. Tal como é o caso dos afrodescendentes brasileiros. Quem seria capaz de negar que,por exemplo,hoje,jovens negros,residentes em favelas ou em periferias, não precisam de imediatas e urgentes ações de proteção social com características e esforços acentuados? Assim, o importante é uma combinação de agendas que potencialize o universalismo justamente pelo combate ao obstáculo que o impede de se efetivar, ou seja, a exclusão primordial dos afrodescendentes das ações do poder público;
    
•    a extensão dos serviços públicos a toda a população é necessária dentro de um espírito republicano de compartilhamento, por parte de todos os cidadãos e cidadãs,dos espaços sociais comuns, assim vivenciando e comungando idênticos problemas e questões. A qualidade dos serviços públicos demanda inclusive que os setores mais abastados demandem os mesmos, evitando se que os bens públicos se tornem políticas pobres para pobres, isto é, de baixo perfil. O universalismo dos serviços públicos, por outro lado,deve estar enquadrado dentro de uma agenda distributiva que abranja rendimentos,acesso às oportunidades e a direitos sociais, e não entendida como uma espécie de cala-boca aos que lutam pela causa da promoção da igualdade racial;
    
•    as ações afirmativas não implicam a negação do princípio republicano da igualdade dos indivíduos perante a lei e o Estado. Ao contrário, são a única via para a realização desse objetivo. Por outro lado, parece mesmo estranho que o princípio republicano do universalismo seja dificilmente invocado diante das nítidas situações nas quais os negros se vêem especialmente excluídos de algum serviço público ou afetados por alguma mazela social, tal como o acesso à escola, ao sistema de saúde, ao mercado de trabalho formal, e às universidades, isso além da exposição à violência urbana e policial;
    
•    o tratamento desigual aos desiguais, fundamento das políticas de ações afirmativas,forma um princípio normativo já bastante conhecido, e aprovado, em nossa sociedade.Vide o que ocorre com as filas para idosos e portadores de necessidades especiais em bancos e o princípio da progressividade no pagamento dos tributos e as cotas para mulheres nas listas partidárias quando das eleições. O mesmo pode ser dito das políticas industriais, que ainda hoje formam uma aspiração de amplos setores da sociedade brasileira,e cujo principal órgão de fomento, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES),oferece tratamento desigual a desiguais,dando preferência à indústria localizada no Brasil às localizadas em outros países mais avançados, em termos de acesso a mercados, crédito e tecnologias. Assim, no debate, o que costuma estar em jogo não são tanto as políticas afirmativas, mas, sim, as voltadas para os negros considerados não merecedores de semelhante estratégia;

•    a introdução de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas brasileiras constitui uma importante proposta de reversão das desigualdades étnico-raciais de acesso ao ensino superior. Essa medida se justifica por: 

1) representar a adoção do princípio da diversidade no interior das universidades públicas brasileiras;
2) representar uma importante medida de democratização do acesso às universidades públicas, especial-mente nas carreiras mais prestigiadas e disputadas,hoje freqüentadas,na sua maioria,por pessoas brancas;
3) potencialmente trazer para o interior das universidades novas preocupações temáticas derivadas do perfil social do público beneficiado pelas medidas;
4) contribuir para a consolidação de novos quadros intelectuais e políticos no interior dos grupos historicamente discriminados,que podem servir de exemplos, em suas comunidades, para outros e outras jovens;
5) tensionar positivamente a elite intelectual do Brasil, no sentido da sua diversificação;
6) permitir que negros, indígenas e pessoas de menos recursos, com evidente vocação para o pensamento científico, possam dar pleno curso aos seus talentos e não venham a se desviar para outras atividades.

É Professor Adjunto do Instituto de Economia da UFRJ. flávio gomes é Professor Adjunto do Departamento de História do IFCS/UFRJ.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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