03 janeiro 2012

Reforma do Judiciário, PEC dos Recursos e Desenvolvimento

O Conselho Nacional de Justiça (cnj) tem se revelado instrumento essencial para o aperfeiçoamento do sistema judiciário brasileiro e a concretização do ideal de uma Justiça célere e eficiente, diz o presidente do stf. Ele avalia que houve avanços significativos na área de planejamento estratégico do Judiciário, como a geração de dados estatísticos e o estabelecimento de metas nacionais de produtividade e de modernização tecnológica, a edição de atos normativos de abrangência nacional, as ações da Corregedoria e os projetos direcionados à promoção da cidadania, como o Mutirão Carcerário, que, agora como programa permanente, resultou na liberação, entre 2010 e 2011, de mais de 21 mil pessoas ilegalmente presas.

O Brasil atravessa um intenso processo de transformação, com impactos positivos sobre a realidade social interna e sobre o perfil da inserção do país no plano internacional. Muitos fatores contribuíram para essas mudanças. Um deles, porém, não tem merecido a devida atenção dos analistas. Refiro-me à consolidação do estado democrático de direito e ao fortalecimento do Poder Judiciário sob a égide da Constituição de 1988.

Pensadores, como os Nobel Amartya Sen e Douglas North, há anos nos ensinam que as instituições jurídicas são “instrumentos” do desenvolvimento, e não meros “resultados” ou “consequências” desse processo.

Um sistema legal sólido e eficaz garante a segurança jurídica e a rápida solução de controvérsias. A democracia fundada no estado de direito assegura a transparência das decisões do governo, a accountability das autoridades e a melhor alocação dos gastos públicos e dos investimentos sociais. Instituições jurídicas funcionam, assim, como fator indutor de investimentos produtivos, com geração de renda e melhoria das condições sociais.

A experiência indica que países com robustas estruturas constitucionais e democráticas conseguem encapsular a dimensão política dos conflitos econômicos e sociais na sede própria – a da representação política, de consensos provisórios e discussões permanentes – e encontrar soluções legítimas e eficientes para seus problemas.

É o que ocorre no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988. O estado democrático de direito está a consolidar-se como o modelo de organização do poder político no país. Nessa forma específica de arranjo fundamental do Estado, democracia e Constituição legitimam-se mutuamente, definindo, nas palavras de Norberto Bobbio, um conjunto de normas de procedimento – as “regras do jogo” – para a formação de decisões coletivas.

Em contraste com um passado não muito remoto, democracia e constitucionalismo representam atualmente os “pilares fundamentais” do processo político brasileiro, garantindo a legitimidade tanto do processo decisório, quanto dos resultados (output legitimacy, no jargão técnico anglo-saxão) da operação do sistema político.

Além de assegurar os direitos e princípios fundamentais, a Carta de 1988 tem permitido a formulação de demandas por políticas públicas pela maioria da população e a adoção de medidas eficazes no interesse dessa mesma maioria. A combinação desses dois fatores forma a base de sustentação social da nossa Constituição democrática (ou da nossa democracia constitucional), que jamais contou com grau tão elevado de legitimidade.

Como na famosa piada de Mark Twain ao ler notícias sobre sua própria morte, a experiência brasileira parece confirmar que eram prematuras as previsões de alguns teóricos que viam o papel tradicional das Constituições reduzir-se diante de fenômenos históricos como a globalização, a perda da autonomia decisória dos governos, a unificação dos mercados num só sistema econômico de amplitude global (a “economia-mundo” de que falava Braudel) e o advento de novas ordens normativas ao lado do tradicional direito positivo.

Antes, a crise financeira, que ainda nos ameaça, parece dar novo relevo ao conceito, elaborado pelo professor português José Gomes Canotilho, da chamada “Constituição dirigente”. Trata-se, como se sabe, daquele tipo particular de texto constitucional que, além de constituir estrutura organizatória definidora de competências e reguladora de processos no âmbito de determinado Estado Nacional, atua também como espécie de estatuto político, estabelecendo o que, como quando os legisladores e os governantes devem fazer para concretizar as diretrizes programáticas e os princípios constitucionais.

Nesse contexto, pretendo analisar os principais aspectos do fortalecimento institucional do Poder Judiciário advindo do texto constitucional. Para tanto, creio serem relevantes algumas breves considerações sobre a evolução do constitucionalismo nas democracias contemporâneas e o protagonismo das cortes supremas e dos tribunais constitucionais nesse modelo, para, em seguida, considerar especificamente a situação brasileira, antes e depois do amplo processo de debate e avaliação do desempenho do sistema de Justiça que culminou, em 2004, na aprovação da Emenda Constitucional nº 45.

Constitucionalismo liberal e neoconstitucionalismo

A evolução do constitucionalismo liberal, que concebia o estado de direito a partir das limitações do poder estatal – garantias negativas –, o que se pode denominar neoconstitucionalismo, consolidando a Constituição como instrumento central de proteção à democracia e definindo novos parâmetros de proteção aos direitos fundamentais, traz em si o protagonismo das Justiças constitucionais.

Na tradição jurídica europeia, continental e não continental, o constitucionalismo esteve submetido à supremacia política do poder legislativo. De fato, apesar de posturas isoladas, os liberais do século XVIII não conferiam ao Judiciário o poder de questionar muito a lei em si. Cabia ao juiz, como papel teórico, a aplicação de seus termos, sem interpretá-los. Foi nos Estados Unidos da América, onde há muito se assentou a supremacia do texto constitucional, que, a partir do famoso julgamento Marbury vs. Madison, a Suprema Corte se constituiu em ingrediente essencial do sistema de freios e contrapesos pensados pelos pais fundadores. A necessidade de garantir a autonomia e independência entre os poderes, bem como de administrar os conflitos entre os interesses da união e das ex-colônias, exigiu que os limites de cada um “estivessem bem delineados em um documento vinculante” , cuja proteção é crucial para a preservação dos valores originais.

. G. F. Mendes & P. G. G. Branco, Curso de Direito Constitucional, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2011, p. 56.

Não é de admirar, portanto, tenham sido os juízes da Suprema Corte dos EUA os primeiros a desenvolver e aplicar a doutrina da judicial review, que reconhece e confere ao Poder Judiciário a competência para, em última instância, julgar inaplicáveis normas contrárias à Constituição, não obstante aprovadas pelo Parlamento. Ora, a Constituição, enquanto documento vinculante que delineia os limites dos poderes, deve ser “insuscetível de alteração pelas mesmas maiorias contra as quais as limitações eram dispostas” . Daí ter o constitucionalismo por valor fundante a proteção às minorias, a qual leva as cortes constitucionais a tomar, frequentemente, nessa função, decisões contramajoritárias. Trata-se de componente básico do estado democrático de direito.

Nas democracias contemporâneas, portanto, os fundamentos e princípios constitucionais não apenas regulam e limitam o exercício do poder estatal, mas também estabelecem os critérios que permitirão ao intérprete ponderar e sistematizar as regras jurídicas. Com tal conformação institucional, não é possível superestimar a importância reservada ao Poder Judiciário e, mais especificamente, às cortes constitucionais. Para ilustrá-la, basta referir, ainda que rapidamente, a difícil perspectiva constitucional dos critérios da razoabilidade (ou racionalidade) e da proporcionalidade, ou seja, a dimensão do controle, pela corte constitucional, da “compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou […] de se proceder à censura sobre a adequação, a utilidade e a necessidade do ato legislativo” . Trata-se de questão delicada, que avança sobre o alcance da discricionariedade do Poder Legislativo, e, portanto, sobre o próprio mérito do ato de legislar.

Surgem, daí, as inúmeras referências à “judicialização da política”, ou ao ativismo judiciá­rio, geralmente com o propósito de denunciar invasão das competências reservadas aos outros Poderes. Com efeito, a atuação recente do Supremo Tribunal Federal em questões de interesse político suscitou certa surpresa no meio acadêmico e político. Não estaria o Poder Judiciário, e a corte constitucional em particular, a exceder-se no exercício de suas funções?

Tal questionamento, na verdade, tampouco é novo. Já tive a oportunidade de mencionar o desenvolvimento da doutrina da judicial review pela Suprema Corte dos EUA. Desde então, o controle judicial dos atos legislativos contém em si um conflito latente, pois, no limite e como última assertiva básica articulada pela doutrina do controle judicial, “a interpretação judicial é final e prepondera sobre a avaliação dos demais Poderes” . Em caso de conflito entre lei infraconstitucional e a Constituição, cabe ao Judiciário, em última análise, zelar pela integridade desta, afastando os efeitos daquela.

Após tantos anos de teoria democrática, o conceito de controle judicial como elemento central do sistema de freios e contrapesos está consolidado na doutrina política e jurídica. Mas, no exercício rotineiro da atividade judicial, o estranhamento é recorrente, ainda que na grande maioria das vezes sejam os partidos políticos que buscam, no STF, a rediscussão de matérias em que foram derrotados no debate parlamentar. De todo modo, devemos ter em mente que, no constitucionalismo contemporâneo, é difícil fixar de antemão as fronteiras e limites de cada um dos Poderes, e entre as diferentes formas legítimas de representação política está a decisão judicial, que “é, na verdade, criadora de normas. É uma criação de normas segundo regras, segundo princípios interpretativos disponíveis […], regulada pelo código específico do direito, que, em última instância, deriva sua lógica e sua legitimidade da Constituição” .

O STF na Constituição de 1988

Não surpreende, portanto, o papel de relevo cometido ao Supremo Tribunal Federal pelo constituinte de 1988. O Tribunal perdeu parte de sua competência recursal – o julgamento de recursos fundados no descumprimento de lei federal passou a ser atribuição do então recém-criado Superior Tribunal de Justiça –, mas viu ampliada a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade. Assim, reforçou-se o particular modelo misto de controle de constitucionalidade no país, em que somente o STF pode pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade de leis em tese, mas vários juízes e tribunais – incluindo o próprio STF, ao julgar um recurso – decidem questões constitucionais em casos concretos. Na primeira hipótese, a decisão tem efeito geral, mas, na segunda, o resultado do julgamento da causa não aproveita a terceiros.

Tal descrição parece trivial, mas não é. O caso da Suprema Corte brasileira é particularíssimo no mundo ocidental. Ao modelo misto de controle de constitucionalidade soma-se a regra da inafastabilidade da jurisdição, o que nos distingue marcadamente do modelo norte-americano: não podemos escolher processos com base apenas em “motivos convincentes” – o certiorari. Cada caso é sempre apreciado, ainda que seu mérito não seja conhecido, diante de alegação de descumprimento de norma constitucional.

Além disso, a Constituição deu ao Supremo diversas “portas de entrada”. O relatório “Supremo em Números”, publicado pela FGV Direito Rio, identificou 52 classes processuais de acesso à mais alta corte do país, desde 1988, e das quais 36 permanecem ativas até hoje – das ações de constitucionalidade, passando pelos recursos extraordinários e habeas corpus, às reclamações, suspensões de liminar e de tutela antecipada. Segundo o relatório, “das grandes cortes judiciais do mundo ocidental, o Supremo é provavelmente a que oferece a maior multiplicidade de acesso” . Algumas dessas competências são centrais no concerto político dos Poderes da República, como o julgamento de inquéritos e ações penais contra deputados federais, senadores e ministros de Estado.

A criação de um novo Tribunal superior foi tida como solução para a “crise do STF”, expressão que pode ser encontrada em obras publicadas já na década de 1960 para descrever o excesso de processos no Supremo . Mas talvez não fosse possível prever a explosão de recursos extraordinários, conquanto restritos a questões constitucionais, a partir da promulgação da nova Carta. A característica analítica do novo texto constitucional permite que, na prática, qualquer litígio possa comportar alegação de questões constitucionais.

Supremo em números

De 1988 até 2009, mais de 1,2 milhão de processos tramitaram no STF, e dos quais 92% são recursos ou agravos de instrumento – que nada mais são do que pedidos para que a Corte aceite um recurso considerado inviável pelo tribunal inferior. O relatório “Supremo em Números” analisou o crescimento dos números dos recursos e agravos no tribunal, e, entre 1988 e 1992, identificou crescimento médio de mais de 70% ao ano, com pico de 189%, e crescimento acumulado de quase 290%. Após alguma estabilidade até 1996, o número de recursos voltou a crescer “entre 30% e 60% ao ano, terminando por gerar um crescimento acumulado de quase 460% desde 1988, ou mais de cem mil processos ao ano” . Novo crescimento em 2004 levou ao auge histórico no número de recursos no STF: “mais de 111 mil processos em um único ano. Para ilustrar, estamos falando de quase 39 processos por dia útil por ministro, ou quase cinco processos novos por hora […]. Se fossem julgar todos esses processos na mesma proporção em que entravam, cada um dos onze ministros teria de julgar mais de dez mil recursos por ano, ou aproximadamente um recurso a cada dez minutos” .

O cenário desenhado levou à necessidade absoluta de se implantarem mecanismos de contenção do acesso e do número de julgamentos do STF. Tais mecanismos foram incorporados ao debate da chamada “Reforma do Judiciário”, que já tramitava por mais de uma década no Congresso Nacional. Aprovada em 2004, representou o primeiro grande momento de avaliação do Poder Judiciário na nova ordem constitucional.

A Reforma do Judiciário

A Emenda Constitucional nº 45 tinha como principal objetivo aumentar a eficiência da administração judiciária com o fim de combater a morosidade na prestação jurisdicional – problema que, em maior ou menor grau, atinge a Justiça de todos os países.

As principais inovações da Emenda buscaram atingir o objetivo de modernização a partir de duas frentes: 1) a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como instância máxima de coordenação das ações de administração do Poder Judiciário; 2) a criação de novos instrumentos de uniformização jurisprudencial – a possibilidade de edição de súmula com efeitos vinculantes e o estabelecimento do requisito da repercussão geral para o conhecimento e o julgamento de recursos extraordinários. O objetivo de tais medidas foi devidamente reconhecido como direito inscrito no art. 5º, inc. XVLIII, da Constituição: o direito fundamental à celeridade dos processos.

O CNJ foi concebido como órgão central de integração e coordenação dos diversos órgãos jurisdicionais do país com atribuições de controle e fiscalização de caráter administrativo, financeiro e correicional. O CNJ é integrado por representantes da Magistratura, do Ministério Público, da advocacia e da sociedade civil. Tem a missão de definir a estratégia de atuação do Poder Judiciário, mas sem interferir no exercício da função jurisdicional, que, por norma constitucional expressa, continua sendo atribuição de cada tribunal ou juiz em particular.

O Conselho tem se revelado instrumento essencial para o aperfeiçoamento do sistema judiciário brasileiro e a concretização do ideal de uma Justiça célere e eficiente. Ainda há muito por fazer, mas avanços significativos já foram alcançados na área de planejamento estratégico do Judiciário, como a geração de dados estatísticos e o estabelecimento de metas nacionais de produtividade e de modernização tecnológica, a edição de atos normativos de abrangência nacional, as ações da Corregedoria e os projetos direcionados à promoção da cidadania, como o “Mutirão Carcerário”, que, agora como programa permanente, resultou na liberação, entre 2010 e 2011, de mais de 21 mil pessoas ilegalmente presas.

Já com relação aos novos instrumentos processuais, a reforma concedeu ao Supremo Tribunal Federal a autorização para editar súmulas vinculantes, que constituem precedentes vinculativos de observância obrigatória por parte dos demais órgãos judiciais e administrativos. A institucionalização da obrigatoriedade de respeitar a orientação firmada pela cúpula do Judiciário significa forte desestímulo à procrastinação dos feitos judiciais e à judicialização de conflitos sobre temas repetitivos.

O requisito da repercussão geral introduziu alteração significativa no recurso mais importante do sistema processual brasileiro: o recurso extraordinário. Trata-se de filtro preliminar, em que os ministros avaliam se a questão constitucional submetida à apreciação do tribunal possui relevância econômica, política, social ou jurídica que justifique seu conhecimento e julgamento pelo órgão máximo do Poder Judiciário.

A repercussão geral foi concebida, sob clara inspiração do writ of certiorari norte-americano, como requisito prévio que separa, por juízo discricionário e irrecorrível do Supremo Tribunal Federal, as causas constitucionais relevantes que merecerão a análise da Corte, e as outras causas constitucionais que, por serem destituídas de repercussão geral, serão indeferidas liminarmente e não terão o mérito analisado. Assim, o instituto da repercussão geral tem o propósito de assegurar que a Corte Suprema brasileira, desafogada dos mais de cem mil recursos que lhe eram dirigidos anualmente, possa debruçar-se com mais acuidade sobre os casos de reconhecido impacto sobre a sociedade como um todo.

Em outras palavras, a Reforma do Judiciário constituiu passo importante na direção de conferir ao Supremo Tribunal Federal o papel de corte constitucional. Mas, infelizmente, tais esforços ainda não foram suficientes.

Em primeiro lugar, embora os recursos e agravos no STF tenham experimentado acentuada queda desde 2007, os números se estabilizaram em patamares ainda alarmantes – cerca de 20 mil recursos e agravos por ano. Além disso, o volume de processos ainda não permite que o tribunal dê preferência ao julgamento dos temas dos recursos admitidos. Isso significa que, embora os recursos deixem de subir ao STF, eles permanecem parados nos tribunais de origem, enquanto o seu tema não é julgado pelo Plenário. Em outras palavras, a diminuição do número de processos no STF não significa necessariamente redução de tempo de julgamento para as partes.

Assim, creio ser necessário dar o passo seguinte, e isso não pode ser feito sem enfrentar a difícil questão do sistema recursal brasileiro.

A PEC dos recursos

Muito se discutiu na imprensa especializada sobre a proposta de emenda constitucional conhecida como PEC dos Recursos, apresentada pelo senador Ricardo Ferraço no início de 2011, e cuja inspiração o nobre parlamentar atribuiu a diversas manifestações que fiz sobre o tema. A proposta consiste, em resumo, na antecipação do marco que define o trânsito em julgado de um processo judicial para a decisão dos tribunais estaduais ou dos Tribunais Regionais Federais – em outras palavras, uma demanda judicial se dará por encerrada e será, assim, passível de execução, logo após a decisão do juízo de primeiro grau e do tribunal competente de segundo grau.

Hoje, um processo comum pode ser apreciado em quatro graus de jurisdição – juízo, tribunal local, tribunais superiores e Supremo Tribunal Federal – até ser concluído, somente após o que a decisão é suscetível de ser executada. Podem-se levantar alguns graves problemas que decorrem desse sistema. Além do mais evidente, que é contribuir para a eternização dos processos, a quádrupla possibilidade de apreciação das causas judiciais reduz o papel e a responsabilidade dos juízes e tribunais locais, que se convertem, muitas vezes, em meros guichês de distribuição. Ao mesmo tempo, a explosão de demandas individuais que chegam aos tribunais superiores faz com que estes se afastem de sua função principal – o controle de constitucionalidade pelo STF, e a interpretação da lei federal, no caso do STJ e do TST.

A sobrecarga dos tribunais superiores, que perdem a capacidade de organização das demandas pelos instrumentos de unificação da jurisprudência e limitam-se a julgar demandas individuais repetidas, simboliza uma questão mais profunda, que é a incapacidade do modelo recursal atual de lidar com a litigância de massas. Para o cidadão comum – e para a Justiça, como prestadora de serviço – é extremamente custoso, por exemplo, levar ao STF uma discussão tão trivial quanto a cobrança de pulsos excedentes por empresa de telefonia móvel. E, por incrível que pareça, mais de oito mil processos de uma única empresa com esse tema foram recebidos pela corte constitucional brasileira. É que o custo do processo para os grandes litigantes é menor quanto maior for o volume, e, assim, “para uma empresa com dezenas, talvez centenas de milhares de processos, levar esse tipo de processo até último grau tem um custo apenas marginal” .

Também não é preciso muito para indicar os reflexos negativos não apenas da demora, mas da incerteza decorrente de um sistema que permite quatro ou cinco julgamentos de mérito sobre a mesma demanda. Uma controvérsia sobre incentivo fiscal a determinada indústria, por exemplo, acrescenta considerável risco ao empreendimento, o que atinge decisivamente a formação do preço final do produto. É, sem dúvida, mais um elemento que compõe o chamado “Custo Brasil”.

Nos últimos anos, inúmeras propostas legislativas e práticas processuais tiveram o condão de atacar de forma lateral o problema do trânsito em julgado: prisões preventivas, execuções provisórias, antecipações de tutela etc. O exemplo mais célebre foi o da chamada Lei da Ficha Limpa, que, ao cassar o direito político passivo do candidato condenado por tribunal colegiado, tende, na prática, a antecipar-se ao pronunciamento definitivo do Judiciário. Tudo isso deixa claro que a situação atual é muito problemática, merecendo maior atenção dos analistas.

Críticas

A proposta de tornar definitiva a decisão dos Tribunais locais foi alvo de muitas críticas, que podem ser resumidas em três grandes grupos: os efeitos no sistema processual penal, o problema da violação à coisa julgada e o comprometimento do direito de defesa e do duplo grau de jurisdição. Aproveito o espaço para contribuir para o debate, apresentando dados da realidade judicial que talvez permitam que as discussões se deem de forma menos apaixonada e mais racional, à luz do interesse público.

A crítica mais contundente é a relativa à justiça criminal. De fato, se o processo se encerrará depois da decisão do tribunal local, e a partir daí uma sentença condenatória poderá ser executada, como reparar o dano na hipótese de a decisão ser reformada pelos tribunais superiores? Como devolver ao injustamente condenado o tempo em que passou na prisão?

Para além do debate teórico quanto ao uso dos instrumentos recursais e do habeas corpus – mais célere, mais amplo e com menos formalidades – como forma de reverter uma condenação ilegal, é interessante a análise dos números que refletem a prática processual penal no Brasil. Ao apreciar todos os 64 185 recursos extraordinários e agravos de instrumento interpostos no STF em 2009 e 2010, chega-se a 5 307 feitos criminais (cerca de 8% do total), dos quais 145 foram providos (2,7% dos recursos criminais, ou 0,22% do total de recursos no período). Desses, 59 são pedidos formulados após o trânsito em julgado da condenação, relativos à execução de pena, e 77 foram interpostos pela acusação – a reforma da decisão do Tribunal se deu, pois, nesses casos, em prejuízo do réu. Em outras palavras, caso a proposta de emenda constitucional já estivesse em vigor, nenhum desses 136 recursos resultaria na soltura do réu e, portanto, seria indiferente o momento de seu provimento, se antes ou depois do trânsito em julgado.

Mas é possível avançar na particularização dos números. Dos nove recursos criminais da defesa que foram providos antes do trânsito em julgado (0,16% dos recursos criminais, ou 0,014% do total de recursos no período), um tratava do prazo máximo de medida de segurança, um questionava decreto de prisão sem entrar no mérito da ação penal e outros três reconheceram nulidades em ações penais cuja eventual condenação resultaria em penas restritivas de direito. Chega-se, como sobra, a quatro recursos que, no período, discutiram a condenação por crimes passíveis de prisão, e, em três deles, o STF reconheceu nulidade para devolver o processo à origem. Em apenas um único caso houve efetiva reforma do mérito da condenação. Daí que a crítica fundada em preocupação com a justiça criminal apoia-se, no máximo, em 0,006% dos recursos extraordinários!

Por outro lado, contam-se, no mesmo período, 188 decisões que reconheceram a prescrição do fato.

Donde, tirante o sem-número de recursos que não são sequer apreciados diante da falta de requisitos mínimos para análise, mas que ainda assim impedem o trânsito em julgado, ou bem se manteve a decisão do Tribunal local, ou o recurso tornou-se sem efeito pela concessão de habeas corpus, cujo alcance permaneceria inalterado ainda após o trânsito em julgado.

Os dados apresentados demonstram nitidamente que o recurso extraordinário não é, embora sob as regras atuais, instrumento efetivo para corrigir situações de prisão ilegal. É essa a realidade sobre a qual deve debruçar-se a crítica relativa ao efeito da proposta no sistema recursal criminal.

Coisa julgada

Outra crítica alega violação, pela proposta, do que se chama coisa julgada, ou seja, a definição de que decisão judicial definitiva é aquela contra a qual já não se admita recurso. Nessa linha, mantidos inalterados pela proposta os recursos especial e extraordinário, seria impossível afirmar que o processo termina após o julgamento do recurso em segundo grau, uma vez que a matéria ainda estaria sujeita a recurso.

Não é possível responder a essa crítica sem recorrer a conceitos jurídicos, pelo que peço desculpas ao leitor não especializado. O conceito de coisa julgada – decisão contra a qual já não cabe recurso algum – guarda íntima relação com o conceito de trânsito em julgado, cuja definição legal se encontra no Código de Processo Civil e que encontra suas bases na tradição jurídica luso-brasileira. Logo se vê, pois, que, em primeiro lugar, definição constitucional diversa do termo do trânsito em julgado permitiria nova perspectiva do que seja a coisa julgada, e, em segundo lugar, não é novidade, nos sistemas jurídicos de matriz europeia continental ou romano-germânica, a existência de recursos posteriores ao final do processo – basta fazer referência ao direito processual português e ao italiano, que, fonte de inspiração de nosso sistema, contempla recursos com caráter de revisão da decisão final, isto é, transitada em julgado.

A coisa julgada significa, em resumo, que a decisão é definitiva e, pois, capaz de produzir seus efeitos típicos. O que a proposta faz é somente mudar o momento em que isso ocorre. Não se está a propor, como sustentam algumas críticas, que se possa executar uma decisão provisória. Ela será definitiva e, como tal, definitivamente executável. Tal crítica advém, portanto, mais de resistências ligadas a mero apego doutrinário do que a limitações constitucionais.

Ademais, a possibilidade de reforma ou anulação de uma sentença já transitada em julgado não é inédita em nosso ordenamento. Tampouco, a hipótese consequente de que alguém estivesse preso e, posteriormente, fosse solto, após o trânsito. A respeito, são velhíssimos, entre nós, os institutos da revisão criminal (prevista na legislação brasileira desde 1890) e da ação rescisória, na esfera civil. Desta forma, as mesmas soluções dadas ao provimento dessas velhas ações seriam aplicáveis sob a vigência da proposta.

Por fim, algumas críticas concentraram-se no fato de que, ao limitar o direito ao recurso, a proposta reduziria o direito de defesa e o próprio duplo grau de jurisdição, violando cláusulas pétreas da Constituição.

Também é importante aqui retomar a origem dos conceitos jurídicos, cuja utilização fora de contexto não ajuda a enriquecer o debate. O princípio do duplo grau de jurisdição, como se pode depreender de seu próprio nome, significa a garantia individual de ver uma decisão judicial ser revista por órgão judicial diverso e hierarquicamente superior, como, aliás, já assentou o STF em diversas ocasiões. Não se trata de um direito infinito a recursos, o que tornaria o sistema injusto por inviabilizar a prestação jurisdicional, que se frustra quando não seja pronta e efetiva.

Aqui, vale reproduzir interessante diálogo presenciado pelo prof. Joaquim Falcão, diretor da FGV Direito Rio, entre um ex-presidente do STF e a juíza da Suprema Corte americana, Sandra Day O’Connor. Ao ser questionado sobre quantos processos o STF julgava por ano, o ministro brasileiro, orgulhoso, respondeu: “cerca de cem mil processos!” A juíza franziu a testa e, com ar de reprovação, retorquiu: “não façam isso, senhor ministro! O duplo grau de jurisdição é suficiente para o estado de direito”.

De fato, não se pode confundir o direito ao duplo grau de jurisdição – que está plenamente garantido pela apreciação judicial sucessiva pelo juiz e pelo tribunal, em grau de apelação – com suposto direito subjetivo a ver sua demanda apreciada pelo Supremo. Não há experiência conhecida no mundo em que a Suprema Corte seja acionável em qualquer caso, com base em alegação de descumprimento de norma constitucional. Em regra, as Supremas Cortes reservam-se o poder de apreciar apenas alguns casos por ano, designadamente aqueles que cada tribunal supremo entenda relevantes pela matéria ou pelo impacto judicial ou político da decisão. A própria Suprema Corte americana da juíza O’Connor, perante população bem maior do que a brasileira e uma sociedade reconhecidamente litigante, recebe cerca de oito mil processos por ano, e, em 2009, optou por julgar apenas 77 deles, deixando, deliberadamente, de analisar o resto.

Quatro instâncias de julgamento

Não é o caso de, neste curto espaço, discorrer sobre o funcionamento dos sistemas judiciários em todo o mundo. Mas basta notar que, dos países que compõem a Comissão de Veneza – que reúne representantes de Supremas Cortes de 56 países – apenas o Brasil apresenta quatro instâncias diversas e sucessivas de julgamento de um processo individual. Na maioria deles, os processos são submetidos à apreciação do juízo de primeiro grau, com possibilidade de um recurso. Também se deve ressaltar que a Declaração Americana de Direitos Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, faz referência expressa ao direito de revisão das decisões por uma instância superior.

Não é por outro motivo que o Conselho da Europa, já em 1995, identificou o “problema do aumento do número de apelações e da duração dos procedimentos de apelação” e, reconhecendo que “procedimentos ineficientes e inadequados e o abuso do direito de apelar provocam demoras injustificáveis e podem levar ao colapso do sistema judicial”, recomendou aos países-membros que o direito de recorrer a uma terceira instância, quando esta exista, seja restrito a casos excepcionais.

Dizer que a necessidade de apreciação de todas as demandas por quatro graus distintos de jurisdição é direito inalienável parece-me, a um só tempo, desconsiderar a construção histórica do conceito de duplo grau de jurisdição como inerente ao estado de direito, supor que em nenhum outro país do mundo se assegura o amplo direito de defesa e, o que é central no debate, ignorar que a duração razoável do processo também constitui direito fundamental garantido pelos textos internacionais e pelo art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição do Brasil.

Aliás, tal suposta “limitação” de acesso já foi instituída e vige com a criação dos institutos da repercussão geral e dos processos repetitivos, ao quais conferem ao STF e ao STJ o poder de eleição dos temas que julgarão, deixando claro que nem todas as matérias serão submetidas à sua análise, prevalecendo aí as decisões dos tribunais de segundo grau.

A proposta não limita o direito das partes de produzir todas as provas admissíveis em seu favor, pois, no sistema atual, só podem ser produzidas e analisadas no juízo de primeira instância e pelos tribunais, em grau de apelação, cujas competências ao propósito não serão alteradas. Não cerceia o direito a um advogado e à possibilidade de oferecer suas razões ao juiz, em contraposição às alegações da outra parte. Nem sequer restringe o direito de quem, não vendo sua demanda acolhida pelo tribunal, submete a matéria aos tribunais superiores, que, também como já acontece hoje, estarão circunscritos a analisar a questão ou as questões jurídicas da causa (quaestio iuris), não podendo examinar provas e fatos (quaestio facti). De modo que, no contexto, não há como nem por onde conceber que o direito à defesa estaria sendo mitigado pelo projeto.

Os rumos tomados pelo debate inicial sobre a proposta acabaram desviando a atenção do diagnóstico do problema. Ao focar-se a questão criminal, que, como vimos, é mais teórica do que prática, esquece-se que 92% de todos os recursos extraordinários e agravos de instrumento são cíveis, e que as decisões dos tribunais de segundo grau são mantidas em 95% dos casos. E ignora-se, ainda, que, de todos os recursos, o Estado está envolvido em 90% deles, e que, nesses casos, não se pode executar a decisão antes da conclusão definitiva da demanda.

Tudo isso demonstra que o atual sistema de quatro instâncias serve apenas para favorecer ínfima quantidade de decisões que, com a proposta, poderiam, sem os graves danos ocasionados à maioria absoluta das causas e à sociedade como um todo, ser eventualmente reformadas após o trânsito em julgado, pondo fim à angústia dessa massa enorme dos injustiçados que, vencedores em processos cuja decisão será confirmada pelo STF, pelo STJ e pelo TST, têm hoje de esperar décadas para fazer valer seus direitos reconhecidos. Os únicos prejudicados pela proposta seriam aqueles que se aproveitam da insuportável morosidade atual para lucrar com o adiamento do pagamento das dívidas ou para se furtar à aplicação das penas.

Conclusão

É importante que o debate sobre as bases gerais da proposta se dê em termos racionais, mediante críticas e diagnósticos sérios, incompatíveis com arroubos retóricos, que não contribuem para uma solução governada pelos interesses superiores da sociedade. E isso só é possível a partir da premissa incontroversa de que a situação atual é gravemente atentatória ao direito fundamental de acesso ao Judiciário. A busca urgente da celeridade nos processos e da transformação do STF em verdadeira corte constitucional pode contribuir para a efetiva realização dos princípios democráticos do constituinte de 1988.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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