Reforma política: exigência da sociedade brasileira
Eleição, pilar da democracia representativa, é um procedimento baseado em regras, segundo o qual membros de uma unidade política (país, estado ou município) escolhem um determinado número de pessoas para representá-las em um cargo público. Para caracterizar um processo eleitoral como democrático, alguns requisitos básicos devem ser cumpridos, tais como: a periodicidade das eleições, a natureza secreta do voto, a ausência de coação do eleitor e a publicidade das apurações.
Há ainda outro ponto crucial: a definição do sistema partidário, que pode favorecer a concentração ou pulverização de partidos. A falta de equilíbrio desse sistema está na origem de muitos dos problemas que o Congresso Nacional vem enfrentando. Infelizmente, nesse aspecto, os legisladores brasileiros estão em mora com a sociedade brasileira.
No livro Futuro da democracia, Norberto Bobbio ensina que a regra da maioria é apenas um de vários elementos utilizados para o cálculo dos votos em uma democracia real. Dada a impossibilidade de se instalar uma democracia direta nos Estados modernos por conta da complexidade da sociedade, a representatividade do poder é uma realidade inescapável.
Bobbio sustenta que os representantes eleitos não podem exercer mandatos imperativos, isto é, não podem estar vinculados a interesses particulares e constata que essa proibição é explicitamente violada, pois os representantes eleitos ficam vinculados aos interesses das agremiações partidárias às quais são filiados. Para Bobbio, não existe democracia representativa se o poder é escamoteado dos mandatários ou se não há cidadãos preparados para as regras do jogo democrático.
Em outras palavras, Bobbio convida a que prestemos especial atenção ao funcionamento dos partidos e à relação entre os representantes e os partidos que os elegeram. Não é isso que nosso Congresso tem feito.
As alterações na legislação eleitoral aprovadas nos últimos anos tratam apenas de questões tópicas, como adaptar o sistema eleitoral a novas tecnologias de comunicação nas campanhas – internet – ou regulamentar custos da propaganda eleitoral. As Leis 4737/1965 e 9504/1997 modificaram o Código Eleitoral e a Lei Eleitoral, mas não atacaram a raiz do problema, que é a enorme fragmentação partidária no cenário político brasileiro.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)
Um dos desafios para o legislador deriva do entendimento do STF em relação a alterações no sistema partidário.
Exemplo disso é a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) em que o STF decidiu que a perda do mandato em razão da mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor. A decisão foi tomada à luz dos dispositivos constitucionais vigentes, que não preveem norma expressa nesse sentido. Portanto, somente norma constitucional poderia determinar perda do mandato no caso de infidelidade partidária.
Quanto à cláusula de desempenho para fins de funcionamento parlamentar, embora o STF tenha declarado a inconstitucionalidade de lei ordinária anterior sobre o tema, aquela Corte manifestou-se não pela impossibilidade de adoção da medida, mas pela inadequação dos critérios estabelecidos naquela lei à luz do contexto histórico e político. A referida decisão reconhece, portanto, a constitucionalidade da instituição de cláusula de barreira para criação e funcionamento de partidos políticos, tal como legitimamente disciplinado em Constituições anteriores à de 1988, desde que a fórmula alcançada seja dotada de razoabilidade.
Afinal, como ficou registrado em julgamento no STF, são constitucionais as normas que fortalecem o controle quantitativo e qualitativo dos partidos, sem afronta ao princípio da igualdade ou qualquer ingerência em seu funcionamento interno. A jurisprudência do STF tem-se firmado, quanto a esse ponto, na direção da sustentação de dois pilares democráticos: o princípio da segurança jurídica e o da igualdade de participação.
O entendimento predominante está fincado na acepção garantista do devido processo legal eleitoral, como instrumento de efetividade do exercício dos direitos políticos pelo cidadão.
Ora, uma norma jurídica que limite ou afete sobremaneira o panorama de oportunidades em uma competição eleitoral constitui uma limitação à igualdade de participação.
Ao fechar a porta definitivamente a reformas no sistema partidário pela via da lei ordinária, o STF indica que o caminho a seguir é de emendar a Constituição. E é isso o que devemos fazer.
Proposta de Emenda à Constituição nº 36: uma luz no fim do túnel
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 36, de 2016, dos senadores Aécio Neves e Ricardo Ferraço introduz mudanças importantes. O texto tem o mérito de ajudar a reduzir a pulverização de partidos, sem descaracterizar a natureza pluripartidária do nosso sistema político.
a) cláusula de desempenho
É notória a necessidade de estabelecimento de cláusulas de desempenho para evitar que partidos sem apoio expressivo na sociedade se mantenham artificialmente ativos. Hoje, o acesso generoso de vários deles aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda no rádio e na televisão a todos os partidos leva vários deles a formar coligações para as disputas eleitorais apenas para lograr vantagens junto aos maiores partidos. Isso ocorre principalmente com os partidos carentes de ideologia e de princípios identificáveis.
Essa situação mudará com a fixação da cláusula de desempenho que limite o acesso desses partidos à estrutura própria e funcional nas casas legislativas, ao fundo partidário, à propaganda gratuita no rádio e na televisão, bem como ao direito de proposição de ações de controle de constitucionalidade. Essa sistemática levará a que somente permaneçam ativos no cenário político nacional os partidos que detenham legitimidade democrática, alcance em todo o território nacional e relevância sociológica e jurídica.
De acordo com a proposta de emenda constitucional, somente os partidos políticos com funcionamento parlamentar terão direito a estrutura própria e funcional nas casas legislativas. E só eles terão participação na distribuição dos recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.
Se aprovado, o novo sistema será introduzido em duas etapas. Na primeira, a vigorar a partir das eleições de 2018, somente terão funcionamento parlamentar partidos que obtiverem um mínimo de 2% dos votos válidos apurados nacionalmente, distribuídos em pelo menos 14 unidades da Federação, com um mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas.
Para a segunda etapa, a partir das eleições de 2022, a exigência passa a ser maior: obtenção pelo partido de 3% pelo menos dos votos válidos apurados nacionalmente, distribuídos em pelo menos 14 unidades da Federação, com um mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas.
b) cláusula de fidelidade
Outro dispositivo importante é a previsão de uma cláusula de fidelidade aplicável a todos os detentores de mandato eletivo (o que inclui vice-presidente, vice-governador e vice-prefeito) e respectivos suplentes. A norma estipula a perda de mandato para todos aqueles, titulares ou suplentes, que se desfiliarem dos partidos que os elegeram.
Porém, não ficam sujeitos a essa disciplina parlamentares eleitos por partidos que não tiverem alcançado o direito a funcionamento. Tampouco perderão seus mandatos os representantes eleitos filiados a partidos que sofrerem “mudança substancial”, “desvio reiterado do programa partidário” ou ainda que representantes que sofrerem “grave discriminação política pessoal” por parte do partido que os elegeu.
c) federação de partidos
Criou-se também a figura da federação de partidos. Assim, agrupamentos com afinidade ideológica e programática ganham o direito de formar essa federação, que terá os mesmos direitos e atribuições regimentais dos partidos políticos nas casas legislativas, por toda a legislatura, passando a atuar com identidade política própria, reproduzida, necessariamente, em todos os níveis, do federal ao municipal.
A federação poderá ainda ter funcionamento parlamentar, se preencher os critérios estabelecidos para a cláusula de desempenho, decorrentes da soma dos votos dos partidos que a compuserem. Isso implicará distribuição do fundo partidário e do tempo de propaganda eleitoral, proporcionalmente à participação, aos partidos que a integrarem.
d) fim das coligações
A proibição de coligações a partir das eleições de 2022 ajudará a eliminar uma distorção importante ao princípio básico da proporcionalidade. Na sistemática atual, o eleitor pode involuntariamente ajudar a eleger candidato com propostas opostas às do candidato sufragado. A coligação aumenta o risco de que o voto do eleitor favoreça a condução do candidato desconhecido ao poder. O resultado é a falta de compromisso entre eleitores e eleitos, e a descrença da atividade parlamentar, que tanto mal tem feito a nossa democracia.
Outro problema da coligação é sua natureza estritamente eleitoral. Como não envolve qualquer obrigação de atuação legislativa conjunta dos partidos coligados, a sistemática favorece a crescente fragmentação partidária, que assola a Câmara dos Deputados, com seus 28 partidos com representação nas eleições de 2014, sendo que 11 partidos elegeram entre um e cinco deputados apenas.
Estimativas de impacto
A fim de se estimar o percentual a ser exigido de cada partido para obtenção do direito ao funcionamento parlamentar, pela cláusula de desempenho proposta, consideramos o número de votos válidos nas eleições de 2014, no total de 104.023.802 de eleitores.
Caso mantido esse número nos próximos pleitos, seria exigida de cada agremiação a obtenção, nas eleições para a Câmara dos Deputados a partir do pleito de 2018, 2.080.476 de votos distribuídos em, no mínimo, 14 unidades federadas, desde que alcançado o mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas.
Por seu turno, a partir das eleições de 2022, o funcionamento parlamentar demandaria de cada partido a obtenção de 3.120.714 de votos, também distribuídos em, no mínimo 14 unidades federadas, desde que alcançado o mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas.
É hora de consertar o sistema partidário
Ao englobar três grandes modificações em nosso sistema político partidário – fim das coligações, cláusula de desempenho, com a possiblidade da federação de partidos, e a explicitação de que o mandato pertence ao partido, para qualquer detentor de mandato, estendendo-se aos vices e suplentes – a proposta de emenda constitucional pretende dar uma nova dinâmica à vida partidária, ao sistema representativo, à participação popular, com a cobrança e coerência de posições dos eleitos, pretende reduzir as legendas de “aluguel” e oxigenar a representação popular com novos talentos e renovação de ideias.
Enquanto não implementar medidas de fortalecimento da identidade e fidelidade partidária, o Congresso Nacional continuará caracterizado pela pulverização de partidos. Essa situação cria dificuldades para o funcionamento do Legislativo, perpetua o fracassado presidencialismo de coalizão e contribui para o distanciamento entre a população e seus representantes.
Não há como negar que tal cenário afeta a governabilidade e agrava as dificuldades de formação de maiorias que deem estabilidade institucional às políticas públicas. Entendo que não é a reforma ideal, mas a reforma possível na conjuntura atual. Não contempla, por exemplo, o voto distrital, de que sou um defensor entusiasta há décadas.
A Câmara dos Deputados, que deverá analisar a proposta, tem o desafio de manter a coerência do projeto, que busca zelar pelo bom funcionamento das instituições partidárias, pela redução dos custos das campanhas, pela aproximação dos políticos com os eleitores e pela busca de sintonia entre a população e o Parlamento.
Aloysio Nunes Ferreira, senador por São Paulo, é líder do PSDB no Senado.
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