Número 71

Ano 18 / Out - Dez 2025

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Relações Brasil-EUA na era Trump

Darren Beattie, subsecretário de diplomacia pública do Departamento de Estado dos EUA, recentemente chamou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moares de “coração pulsante” da “perseguição” e da “censura” ao ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro.Essas palavras, que foram republicadas no X pela Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, em 24 de julho de 2025, capturam o impasse que existe atualmente entre os governos dos EUA e do Brasil.

Em 9 de julho de 2025, o presidente Donald Trump publicou uma mensagem em sua conta do Truth Social, criticando a “caça às bruxas” contra Jair Bolsonaro e ameaçando impor tarifas sobre as exportações de produtos brasileiros de 40% acima da base universal de 10%, totalizando 50%, apesar do superávit comercial dos EUA com o Brasil. Essas tarifas entraram em vigor em 6 de agosto de 2025 e afetam 36% das exportações brasileiras para os EUA, incluindo carne, café, frutas, açúcar e máquinas agrícolas (quase 700 produtos foram isentos da tarifa de 40%). O Brasil tem a distinção nada invejável de sofrer as maiores tarifas americanas entre todos os países do mundo, junto com a Índia. As tarifas prometem prejudicar e distorcer seriamente a relação comercial entre o Brasil e seu segundo maior parceiro comercial, o destino de 12% do total das exportações de bens do Brasil.

Em 29 de agosto de 2025, o Tribunal Federal de Apelações dos EUA decidiu que muitas das tarifas impostas por Trump, incluindo aquelas impostas ao Brasil, não eram legalmente autorizadas pela Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (IEEPA). No entanto, o presidente Trump tem até 14 de outubro para recorrer à Suprema Corte dos EUA, adiando a implementação da decisão da instância inferior. Em outras palavras, as tarifas impostas às importações brasileiras ainda estão em vigor.

Neste contexto, um dos piores períodos das relações bilaterais entre os dois países em duzentos anos, o que pode ser feito para promover o entendimento e fortalecer a cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos? Tal projeto está fadado ao fracasso desde o início, dada a posição do governo Trump em relação ao Brasil?

O governo Lula vem sinalizando que quer negociar, mas parece não ter um canal de comunicação com a Casa Branca de Trump. A questão do julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal é inegociável – o presidente Lula deixou claro que o Judiciário é um poder separado e autônomo no sistema constitucional brasileiro. No entanto, o governo brasileiro poderia oferecer tarifas mais baixas sobre as exportações de etanol dos EUA, por exemplo. Não há muito espaço para negociação, mas há algum.

Em defesa de uma aliança não escrita

Há quase um ano, os autores deste artigo analisaram a relação Brasil-EUA em seu bicentenário, e defendemos uma nova “aliança não escrita” entre as duas nações, relembrando o termo cunhado pelo historiador E. Bradford Burns. Parece que já faz muito tempo. No início do outono de 2024, havia um ambiente propício e promissor para tal ideia, baseado na cooperação e no engajamento ativo entre os governos Biden e Lula em diversas frentes.

A cúpula de Washington entre os presidentes Lula e Biden, em 10 de fevereiro de 2023, produziu um plano ambicioso para maximizar o potencial do relacionamento, com o fortalecimento da democracia, a promoção dos direitos humanos internacionais e a união de forças para enfrentar a crise climática no centro da agenda. Houve também o compromisso de revigorar o Plano de Ação Conjunta Brasil/EUA para Eliminar a Discriminação Racial e Étnica, bem como de avançar os objetivos da UNFCCC (Acordo Climático de Paris de 2015).

De acordo com a Declaração Conjunta da Casa Branca, ambos os líderes “expressaram sua determinação em combater a fome e a pobreza, fortalecer a segurança alimentar global, fomentar o comércio e remover barreiras, promover a cooperação econômica e fortalecer a paz e a segurança internacionais”, inclusive em relação ao conflito Ucrânia-Rússia, ao G20 e à reforma do Conselho de Segurança da ONU, com a possibilidade de expandir o número de assentos permanentes para as nações da África e da América Latina. Biden também se comprometeu a doar US$ 500 milhões ao Fundo Amazônia.

E em 20 de setembro de 2023, em Nova Iroque, Biden e Lula inauguraram a Parceria Global Conjunta EUA-Brasil pelos Direitos dos Trabalhadores — a primeira vez que ambos os países lançaram uma iniciativa ambiciosa de direitos trabalhistas em nível presidencial para o benefício dos trabalhadores no Brasil, EUA e restante do mundo.

A vitória eleitoral de Trump em novembro de 2024, seguida por sua posse presidencial em 20 de janeiro de 2025, certamente não eram os resultados desejados pelo presidente Lula. Elas interromperam abruptamente os esforços para maior aproximação entre os governos brasileiro e americano. Como Lula disse ao jornalista Kennedy Alencar em fevereiro do ano passado, “embora eu não seja um eleitor americano, obviamente acho que Biden é mais uma garantia para a sobrevivência do regime democrático no mundo e nos Estados Unidos”. E, depois que Biden desistiu da corrida presidencial, sucedido por Kamala Harris, indicada pelo Partido Democrata, Lula teria dito a aliados em setembro de 2024 que “se Deus quiser, Kamala vencerá as eleições americanas”.

Após a vitória de Trump, o presidente Lula publicou nas redes sociais que “o mundo precisa de diálogo e trabalho conjunto para ter mais paz, desenvolvimento e prosperidade” e desejou “sorte e sucesso” ao novo governo americano. No entanto, não telefonou para o presidente Trump para parabenizá-lo. Embora ambos os líderes tenham comparecido ao funeral do papa Francisco, no Vaticano em abril, não se encontraram nem conversaram pessoalmente naquela ocasião.

Trump mantém laços estreitos com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que foi citado por seu suposto envolvimento em conspiração para assassinar o presidente Lula, o vice-presidente Alckmin e outras autoridades brasileiras, além de ter sido indiciado por traição ao incitar um golpe de estado e uma insurreição em Brasília, em 8 de janeiro de 2023. Tais realidades complicam a dinâmica das relações imediatas entre Brasil e EUA, sem mencionar o que havia sido a ligação oficial do governo Trump com Elon Musk, que é um crítico implacável do STF e do ministro Alexandre de Morais, dado o escrutínio do judiciário brasileiro e a suspensão anterior, embora temporária, da plataforma social “X” do próprio Musk.

O novo governo Trump inspira os oponentes de extrema-direita a Lula no Brasil. E os aliados da extrema-direita aliados de Bolsonaro nos Estados Unidos tentam tirar vantagem da situação, denunciando o atual governo brasileiro e suas instituições, alegando que o STF, incluindo o ministro Morais, estaria violando os direitos humanos ao levar à Justiça os responsáveis pela insurreição de 8 de janeiro de 2023.

Eduardo Bolsonaro, deputado federal e um dos filhos do ex-presidente, está morando nos Estados Unidos devido à licença temporária do Congresso brasileiro. Ele é defensor da imposição de sanções americanas ao Brasil, para forçar as autoridades do país a interromper o processo contra os responsáveis pela violenta insurreição de 8 de janeiro, além de buscar pressão dos EUA sobre o Brasil para, em última instância, anular a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, que impediu seu pai de concorrer a cargo eletivo até 2030.

Considerando a ordem geopolítica e econômica global, Lula e Trump parecem ser diametralmente opostos. Lula continua a defender o multilateralismo e a redução das barreiras protecionistas ao comércio internacional, enquanto Trump diz e faz exatamente o oposto. O governo Lula levou as tarifas americanas sobre o Brasil à Organização Mundial do Comércio. As tarifas propostas por Trump podem ter impacto devastador nos setores agrícola e energético do Brasil, potencialmente minando os esforços de Lula para revitalizar a economia, além de afetar o resultado das eleições no país em 2026.

O efeito imediato do anúncio do tarifaço foi aumentar modestamente o índice de aprovação do presidente Lula e de seu governo. Segundo pesquisas, a grande maioria dos brasileiros desaprova a política de Trump. No entanto, os efeitos econômicos e políticos das tarifas são difíceis de avaliar. Se, como parece provável, o governo Lula eventualmente impuser tarifas recíprocas de retaliação aos EUA, isso poderá aumentar as pressões inflacionárias no Brasil. Alguns analistas, no entanto, argumentam que o resultado poderia reduzir a inflação e ajudar o presidente Lula politicamente. 

Apesar das profundas diferenças e tensões entre os governos Lula e Trump, pode haver algumas circunstâncias atenuantes, mesmo que inadvertidas, dada a atual conjuntura global. O Brasil poderia servir como alternativa à China, como fonte de minerais e terras raras essenciais de que os EUA necessitam. O país possui capacidade industrial e infraestrutura para torná-lo um parceiro crítico dos EUA em outras cadeias de suprimentos estratégicas, como a farmacêutica. Se o governo Trump se concentrasse tanto no aumento da produção de combustíveis fósseis quanto em fontes alternativas de energia, poderia haver um diálogo estratégico contínuo entre os dois países. Da mesma forma, em relação à guerra na Ucrânia, tanto Lula quanto Trump parecem apoiar uma solução diplomática e negociações sobre a escalada militar.

Relações para além do poder executivo

Além disso, como argumentou o ex-embaixador americano Shannon, “a parceria que define o relacionamento” entre o Brasil e os EUA  “não é apenas de governos, mas também de sociedades”. A observação dele sobre a força dos laços entre a sociedade civil brasileira e americana é mais crucial agora do que nunca. Laços incluem aqueles entre os movimentos trabalhistas, ambientalistas, defensores dos direitos humanos, dos imigrantes, da igualdade de gênero e racial, além de acadêmicos e outros.

Neste momento, o foco nas relações entre governos não deve se limitar apenas aos poderes executivos em nível federal. As conexões e os intercâmbios entre os membros dos poderes legislativo e judiciário de ambos os países, que existem há anos, são agora mais importantes do que nunca. Além disso, os vínculos entre os governos estaduais e locais são muito estratégicos para o futuro do relacionamento como um todo.

Por exemplo, dada a saída do governo Trump do Acordo Climático de Paris, é provável que não haja apoio ou presença dos EUA à COP30, sediada, em novembro, em Belém do Pará. Mas certamente há potencial para o envolvimento e representação dos EUA, dado o interesse em fontes alternativas de energia e no combate às mudanças climáticas por parte de governadores estaduais e prefeitos, bem como de membros do Congresso dos EUA. A sociedade civil, especialmente o movimento ambientalista do país, deve estar presente com força total.

Os vínculos entre organizações da sociedade civil, membros do Judiciário, membros do Legislativo, bem como governos estaduais e municipais, quando considerados em conjunto, constituem uma dinâmica promissora para o futuro da relação Brasil/EUA, mesmo com as profundas diferenças e hostilidades de nível presidencial. Tal dinâmica  pode servir como força de equilíbrio eficaz para o futuro da relação Brasil/EUA, servindo até mesmo como contrapeso aos excessos do atual regime Trump, incluindo sua política tarifária nociva e destrutiva, suas ameaças à democracia e ao Estado de Direito, seu desrespeito deliberado à proteção ambiental e à sustentabilidade, sua rejeição ao multilateralismo e às instituições globais, e a guerra que está travando contra imigrantes, incluindo brasileiros, que vivem e trabalham nos EUA.

Fortalecer alianças entre a sociedade civil brasileira e americana, neste momento crítico, certamente não está isenta de desafios, incluindo a política deliberada do governo Trump de cortar o financiamento e incapacitar o apoio americano anterior a tais iniciativas. Por exemplo, não há apoio contínuo do governo americano à PWR (Parceria Global Brasil/EUA pelos Direitos dos Trabalhadores), uma vez que todo o financiamento que vinha do Departamento do Trabalho dos EUA foi eliminado. As organizações da sociedade civil brasileira e americana precisam enfrentar esses desafios tomando a iniciativa elas mesmas. Os movimentos sindicais precisam restaurar a PWR e buscar outros aliados, incluindo aqueles no programa multilateral MPOWER para o avanço da liberdade sindical e dos direitos de negociação coletiva. O MPOWER conta com a participação de governos amigos e pró-trabalhadores, incluindo Espanha e África do Sul.

As alianças culturais e sociais entre o Brasil e os Estados Unidos são essenciais para manter e promover o relacionamento crítico entre as duas maiores potências das Américas.


Notas

.Beatty, ex-acadêmico e redator de discursos de Trump, é a mesma pessoa que tuitou em 2024: “Homens brancos competentes devem estar no comando se você quer que as coisas funcionem. Infelizmente, toda a nossa ideologia nacional se baseia em mimar os sentimentos de mulheres e minorias e desmoralizar homens brancos competentes.” Citado em Iyer, 2025.

A lógica aqui é que as exportações não vendidas de produtos como carne e frutas seriam desviadas para o mercado interno brasileiro. O aumento da oferta derrubaria os preços e reduziria a taxa de inflação.

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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