01 abril 2023

Relações entre o Estado e o Soldado: um desafio para o país

O general Otávio do Rêgo Barros cita em seu artigo o pensador italiano Norberto Bobbio em suas ponderações sobre o futuro da democracia. Depreende dali que “somente o respeito ao ser difuso conhecido como democracia fará a sociedade avançar na autoproteção e consequente sobrevivência da tribo da qual cada indivíduo livre é parte”. Para ele, a estrutura política e social do Brasil foi abalada por um presumido enfrentamento dos estamentos militar e civil, cuja causa tangencia a origem militar do ex-presidente. Mas, acrescenta que, com o novo governo, “abre-se a possibilidade de retorno das águas ao curso normal do rio nas relações entre civis e militares”.

Otávio do Rêgo Barros é general de Divisão da Reserva, graduado em Ciências Militares e Administração pela Academia Militar das Agulhas Negras, pós-graduado pela Escola Superior de Guerra e doutor pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Foi chefe do Centro de Comunicação do Exército e porta-voz da Presidência da República

“A democracia não goza no mundo de ótima saúde, mas não está à beira do túmulo.” (Norberto Bobbio)

Com otimismo contido, Bobbio afirmou que o fim da democracia era apenas uma conjectura e que o respeito às normas e às instituições democráticas era o primeiro e mais importante passo para a renovação progressiva da sociedade (Bobbio 2020).

Quando se traz à discussão o relacionamento entre civis e militares no mundo contemporâneo é sobre democracia que estamos falando.

Da leitura de “O futuro da democracia”, um resumo de palestras do filósofo italiano, depreende-se que somente o respeito ao ser difuso conhecido como democracia fará a sociedade avançar na autoproteção e consequente sobrevivência da tribo da qual cada indivíduo livre é parte.

Recentemente, a estrutura política e social do Brasil foi abalada por um presumido enfrentamento dos estamentos militar e civil, cuja causa tangencia a origem militar do ex-Presidente da República na última quadra (2019-2022).

Os movimentos do incumbente no sentido de fazer prevalecer sua visão de mundo e de país com suposto apoio “incondicional” das Forças Armadas brasileiras assustou e dividiu a sociedade, incluam-se militares, no apoio ou rechaço ao projeto de poder.

Com a assunção do novo governo, abre-se a possibilidade de retorno das águas ao curso normal do rio nas relações entre civis e militares. Todavia, é preciso manter atenção sobre eventuais desvios, em ambos os lados, que possam, ao revés de trazer equilíbrio e paz sociais, trazer mais desavenças e instabilidades.

Procurando contribuir com as discussões sobre o tema, aceitei o convite do embaixador Rubens Barbosa, editor responsável pela Revista Interesse Nacional, na esperança de fortalecer o atributo da serenidade que deve imperar na interlocução entre o Soldado e o Estado.

As relações entre civis e militares no mundo moderno

Há uma tendência de nossos analistas de política, quando tratam das relações entre civis e militares, de nos compararem com os Estados Unidos da América. É bom parâmetro, mas é transparente reconhecer as diferenças entre as Forças Armadas brasileiras e as americanas. 

O general da Reserva Maynard Marques de Santa Rosa, ex-Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, assim confrontou os dois perfis:

As Forças Armadas americanas são aristotélicas e belicistas. As Forças Armadas brasileiras são idealistas e humanistas.

No tema relações entre militares e agentes políticos, as diferenças entre nós e os americanos diminuem e, em muitos casos, os problemas se assemelham como se conclui da análise do artigo Guardians of the republic, dos articulistas Joseph F. Dunford, Graham Allison e Jonah Glick-Unterman, publicado no site Foreign Affairs (Joseph F. Dunford 2023).

The central institutions of American democracy are under assault, as deepening divisions and poisonous politics paralyze Washington and tug at the seams of society. The U.S. military is not immune to this threat. The nonpartisan ethic of the armed forces is at greater risk today than it has been in our lifetimes, and maintaining it is essential for the survival of American democracy.

As Forças Armadas mais poderosas do mundo, que desde os pais fundadores se submetem ao controle civil e fogem da política e do partidarismo, foram envenenadas pelo ambiente político?

Em artigo publicado no site War on the Rocks com o título Don’t drag the militarys into politics, Kori Schake confirma esse envolvimento e aponta o dedo para os responsáveis: os políticos (Schake 2022).

Presidents Barack Obama and Donald Trump both nominated record numbers of high-ranking veterans into senior civilian appointments. Like his predecessor, President Joe Biden nominated a recently retired veteran to be secretary of defense. More recently, Biden placed uniformed marines beside him as he gave a highly political speech about the threat to democracy in the country. All of these actions are shaping public perceptions of the military as a partisan political force.

Na Europa, a onda de contestação e envolvimento de militares na política não é menos gritante. Em seu livro Command, Laurence Freedman aborda as relações entre o nível político e as operações de guerra, e quando estuda as operações francesas da Indochina e da Argélia revela a contemporânea indisciplina de velhos comandantes franceses contra o Presidente Macron (Freedman 2022).

This did not completely eliminate the idea that there could be circumstances in which members of the armed forces could and should defy the civilian authorities. On 21 April 2021, 60 years after the attempted putsch against de Gaulle, a letter published in Valeurs Actuelles, a right-wing journal, signed by current and former officers, complained about the failure of the authorities to take action to stop the spread of radical Islamist ideas and warned of the possible need for our ‘active comrades’ to intervene ‘in a perilous mission of protecting our civilisational values’.

O controle civil se enfraqueceu nos últimos anos?

O conceito do controle civil sobre o estamento militar não é novidade, tendo sido formulado há mais de 60 anos pelo professor Samuel P. Huntington e apresentado no livro O Soldado e o Estado (Huntington 2016). À medida que ganhava força nas democracias ocidentais de primeiro mundo era contestado pelos fatos.

A crise dos mísseis de Cuba, a guerra do Vietnam, Somália, Beirute, Bósnia, Iraque, Afeganistão são eventos que mostraram divergências entre o decisor político e o executor militar, revelando atritos perigosos na manutenção da subordinação dos fardados ao poder civil.

Criar bolhas desconectadas entre esses dois atores, onde cada um acredita-se detentor da verdade inquestionável, é caminho para a fragilização da sociedade e reforço da fuga das regras consuetudinárias da democracia.

A meu juízo, e em uma visão atual, o que Huntington defendeu é uma relação mais fluida e equilibrada.

Dos políticos, o reconhecimento dos militares como assessores que apresentam suas demandas e oferecem soluções aos desafios da política de segurança e defesa de uma nação.

Dos militares, atores cidadãos, o acatamento da decisão da maioria quando da escolha de quem os governará e assumirá o cargo de Comandante em Chefe, subordinando-se à essa autoridade, agindo como gestor da ação militar do Estado para promover segurança lato sensu.

Os militares e a sociedade brasileira

A República nasceu do cansaço de um Império que perdeu prestígio junto à sociedade, à igreja e aos militares, estes chacoalhados pelos ideais positivistas defendidos por Benjamin Constant.

O 15 de novembro de 1889 foi um marco nas relações entre paisanos e fardados, dominadas na época pelos militares, mas em uma República sem identidade clara e propósito definido para o país.

Referenda essa assertiva o professor Edmundo Campos Coelho, em seu livro Em busca de identidade, alegando que faltava aos militares qualquer concepção clara, seja do papel do Exército na sociedade pós-monárquica, seja do regime que haveria de substituir a monarquia (Coelho 2000).

Essa ausência de identidade se deveu à fraqueza dos civis em conduzir a política de governo e de Estado, o que perdurou ao longo do século XX. À medida que essa debilidade se mostrava presente, os fatos históricos foram se sucedendo com maior ou menor influência da espada sobre as pelejas políticas.

Veem-se esses envolvimentos em 1922, com o tenentismo, em 1924, com repúdio a Bernardes, em 1930, com a ascensão de Vargas, em 1932, com a revolução constitucionalista, em 1935, com a intentona comunista, em 1937, com o Estado Novo, em 1946, com a eleição de Dutra, em 1954, com a morte de Vargas, em 1961, com a queda de Jânio e a impostura do parlamentarismo, e em 1964, com a revolução militar. 

Paradoxalmente, foi o governo militar, mesmo com ranger de dentes, que conduziu a renovação democrática, ao transferir de forma controlada o poder ao estamento civil, com o nascimento da Nova República.

Nessa nova fase, somos presenteados com a Constituição de 1988 e eleições livres e democráticas por mais de 35 anos, com alternância saudável de poder e de ideologia em um Estado adolescente em suas convicções.

Desde então, as Forças Armadas afastaram-se do cenário político, aumentando suas capacidades técnicas e operacionais, reformulando ensino e pesquisa, adaptando o material militar aos desafios do novo milênio, aproximando-se da população mais carente por meio das operações subsidiárias, além de projetar-se internacionalmente nas operações de paz da ONU e em intercâmbios com outros países por meio da diplomacia militar.

Destaco: nesse interregno, pouco se discutiu o Artigo 142 da Constituição Federal que trata das missões atribuídas às Forças Armadas.

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Em uma estratégia comunicacional conhecida como “O Grande Mudo”, os militares foram ganhando confiança da população, alçando-se ao patamar de instituição das mais respeitadas junto à opinião pública.

Os governos que se sucederam à Assembleia Constituinte se preocuparam em enfrentar as crises mundiais e nacionais, assegurando estabilidade econômica e social, além de construir madureza política para governabilidade sensata do país.

Apesar de o processo construído pelo ex-Presidente Ernesto Geisel, caracterizado por uma transição lenta e segura, ter culminado com anistia ampla, geral e irrestrita, alguns atores ligados à esquerda e que estiveram envolvidos na luta armada do período militar exigiam punição aos agentes do Estado que atuaram contra esses grupos.

No governo da ex-presidente Dilma Rousseff, instalou-se a Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório final ofereceu uma denúncia protocolar contra algumas pessoas, em particular militares na reserva ou até falecidos, que abriu feridas em um processo quase cicatrizado.

Nesse mesmo tempo, viu-se os anos 2010 como a década das contestações sociais, um contraponto às dificuldades que o governo da ex-Presidente teve com a economia e o seu partido com o envolvimento em denúncias de corrupção nas relações entre governos e empresas.

O resultado desse período foi o impeachment da mandatária, assunção do vice-Presidente Michel Temer e, como saldo dos sentimentos que vicejavam na sociedade, a eleição de um chefe do Executivo, com tendências ao populismo de direita, surfando a onda mundial dos governantes de viés autoritário.

À medida que os problemas de governabilidade se avolumaram, o mandatário envolveu mais e mais militares na administração. Governos enfraquecidos, por vezes, escoram-se na farda para sobreviver, enquanto respiram entre um mergulho e outro das instabilidades institucionais.

Encerrada a mais dura eleição dos últimos anos, a vitória apertada da oposição gerou uma onda de protestos dos derrotados, alguns em dissonância com a legalidade, e fez emergir, do lado vencedor, críticas acerbas ao militares.

As arruaças no dia da diplomação, a tentativa de explosão de um caminhão tanque no aeroporto de Brasília e a invasão no dia 08 de janeiro de 2023 da sede dos três Poderes, em afronta aos princípios mais saudáveis de uma democracia, acendeu um rastilho de pólvora.

Ele pode levar a um confronto irracional entre civis e militares e desarranjar a instável balança em que se acomodaram responsavelmente as lideranças sensatas.

Um futuro de estabilidade

Vivemos um mundo com características distintas do século passado. Fim da Guerra Fria, novos polos de poder, questões climáticas e ambientais a definir a geopolítica mundial, migração impactando o equilíbrio social dos grandes países e guerras westfalianas.

No Brasil, não sendo pouco enfrentar esses desafios, ainda olhamos o retrovisor da história acreditando no fantasma de um intervencionismo militar.

Chefes militares nos últimos dias, sob extrema pressão de interesses pessoais e políticos, deram provas incontestáveis da compreensão do papel de Estado das Forças Armadas e da sua subordinação à Constituição ao agirem alinhados com os preceitos legais vigentes em nosso país.

O professor Denis Rosenfield em recente artigo destacou:

Se não houve golpe no Brasil, é porque os militares não quiseram embarcar numa aventura inconstitucional. Golpes são atos de violência que requerem o uso da força, sem a qual suas chances de sucesso, se existentes, são mínimas (Rosenfield 2023).

Todavia, a luta contra o partidarismo dentro das Forças Armadas se torna objetivo principal das lideranças fardadas.

As Forças Armadas não são parteiras de nova ordem social. Não são o tal Poder Moderador tão propalado. Nem a sociedade dela deverá servir-se para soluções temporárias de seus problemas perenes.

O fato de que todos os grupos interessados na atuação política dos militares tenham utilizado o conceito de Poder Moderador para instigar, justificar ou reprimir intervenções indica que o conceito se presta a interpretações as mais contraditórias em função de interesses, dos mais diversos (Coelho 2000).

A ação política, quando necessária, deverá ser liderada pelos Ministros da Defesa e os Comandos de cada uma das Forças Armadas, com foco nas missões impostas à Instituição pela Constituição e outros dispositivos legais.

Como salientou José Murilo de Carvalho em sua obra “Forças armadas e a política no Brasil” (Carvalho 2019):

Se a sociedade brasileira aspira a transição da categoria dos “desordeiros” para o seleto membro do clube dos desenvolvidos e se ela precisará para tal conviver com as Forças Armadas, a receita não é a do controle civil objetivo em totalidade, tampouco da subordinação militar. Possivelmente, a de um diálogo responsável e generoso que integre o soldado na sociedade e ponha um fim à sua secular orfandade.

Nesse diálogo, a esquerda, em sua visão do mundo, precisa aprender a debater as questões militares e evitar discursar contra o militarismo em termos utópicos, aproveitando-se de momentos confusos para inserir suas proposituras.

A direita em sua sanha de acreditar-se infalível precisa deixar de se assumir como protetora da ética e da moral do povo e, portanto, única patrocinadora dos bons valores a vigorarem na sociedade.

O Comandante em Chefe das Forças Armadas, o Presidente da República, precisa ser claro em seu papel de definidor da política militar consoante com as necessidades do Estado brasileiro.

Os políticos nas casas legislativas federais precisam tratar com seriedade os assuntos que envolvam defesa e segurança nacionais, pois o controle externo lhes pertence.

Os militares não almejam o papel de alternativa a um governo legítimo e eleito democraticamente. Reafirmo, demonstraram isso há pouco. Eles vêm dedicando esforços significativos para dar curso à estabilidade, legalidade e legitimidade.

Reconhecem que o Artigo 142 da Constituição Federal de 1988 é trilha a ser perseguida pelas lideranças nas Forças Armadas, tanto quanto pelas lideranças civis, considerando o espírito do tempo no qual estão acorrentadas.

Respeitando aqueles que defendem a interpretação de que o Artigo 142 traz em sua redação o conceito de Poder Moderador por parte das Forças Armadas. Não traz!

Respeitando aqueles que acreditam que mudar a redação do Artigo 142 trará quietude e transparência nas relações entre civis e militares. Não trará!

A vontade do povo, fortalecida pelo voto livre, soberano e incontestável, é o verdadeiro Poder Moderador. E, para isso, não se precisa reinterpretar nem reescrever a Constituição. Basta, honestamente, servi-la. É sobre democracia que estamos falando.    ■

Bibliografia

Bobbio, Norberto. 2020. O futuro da democracia. Sao Paulo: PAZ & TERRA.

Carvalho, José Murilo de. 2019. Forças armadas e política no Brasil. Sao Paulo: TODAVIA.

Coelho, Edmundo Campos. 2000. Em busca de identidade. Rio de Janeiro: RECORD.

Freedman, Laurence. 2022. Command, the politics of military operations from Korea to Ukraine. New York: OXFORD.

Huntington, Samuel P. 2016. O soldado e o estado. Rio de Janeiro: BIBLIEX.

Joseph F. Dunford, Graham Allison e Jonah Glick-Unterman. 2023. “Foreign Affairs.” Foreign Affairs. 5 de Janeiro. Acesso em 27 de Fevereiro de 2023. https://www.foreignaffairs.com/united-states/guardians-republic.

Rosenfield, Denis. 2023. “Os militares e a Constituição.” Estado de São Paulo.

Schake, Kori. 2022. “Don’t drag the militarys into politics.” War on the rocks. 13 de Dezembro. Acesso em 27 de Fevereiro de 2023. https://warontherocks.com/2022/12/dont-drag-the-military-into-politics/.

Stepan, Alfred. 1975. Os militares na política. Rio de Janeiro: ARTENOVA.

Stepan, Juan J. Linz & Alfred. 1996. A transiçao e consolidaçao da democracia. Rio de Janeiro: PAZ E TERRA.


Otávio do Rêgo Barros é general de Divisão da Reserva, graduado em Ciências Militares e Administração pela Academia Militar das Agulhas Negras, pós-graduado pela Escola Superior de Guerra e doutor pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Foi chefe do Centro de Comunicação do Exército e porta-voz da Presidência da República

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