República das Bets: riscos e silêncios no jornalismo esportivo
O gráfico animado mostra os países de onde vieram os maiores números de acessos a sites de apostas entre 2010 e 2023. É como se fosse uma corrida, ainda que seja difícil entender quem vence nesse jogo. Reino Unido e Estados Unidos se alternam na liderança e a situação se mantém estável até que surge um ator novo, que não aparecia na lista até 2018. É o Brasil.
A trajetória ascendente não pode ser chamada de curva, lembra mais o traçado de um foguete. Menos de um ano após o decreto de dezembro de 2018, que abriu a possibilidade de operação de sites de apostas on-line no Brasil, o país saltou do 12º para o 2º lugar em acessos às plataformas. Em 2020, assumia a liderança absoluta.
Se essa fosse uma corrida, o Brasil seria um vencedor inconteste. O conjunto de sites de apostas registrados sob o domínio .bet.br, de uso exclusivo das casas de apostas legalizadas aqui, ocupa hoje a 2ª posição no ranking de acessos do país. Está atrás apenas do Google. Dados da SimilarWeb mostram que, no último mês de julho de 2025, foram 2,1 bilhões de acessos às plataformas de jogo on-line1.
Nessa corrida, no entanto, há pouco a comemorar. Menos de cinco anos após o início da temporada de apostas virtuais, os resultados são alarmantes: redução no consumo das famílias2, endividamento3, diminuição da entrada de jovens no ensino superior em função de gastos com apostas4, indícios de uso de bets para lavagem de dinheiro pelo crime organizado5, aumento de transtornos psicológicos como vício em jogos, ansiedade e depressão em apostadores6.
Com todos estes problemas seria razoável crer que as casas de apostas digitais estivessem no topo da lista de prioridades do debate público, mas não é o que se percebe. O governo federal optou por uma legislação tímida, focada em regulamentar as casas e na arrecadação de impostos, sem considerar os impactos sociais negativos do setor. Já a CPI das Bets, instalada na Câmara dos Deputados, em novembro de 2024, não entregou resultados significativos, sendo lembrada mais por depoimentos pitorescos de subcelebridades do que por sua apuração.
Enquanto o mundo político se move na direção de outros interesses, a esfera pública parece alheia aos impactos negativos das bets. Aqui e ali, circulam nas plataformas digitais conteúdos que alertam para o seus malefícios, mas a repercussão desses materiais é inversamente proporcional à quantidade de influenciadores que as divulgam.
Na imprensa, menos dependente dos humores dos algoritmos, tampouco o cenário é melhor. Reportagens críticas aparecem pontualmente, na maioria dos casos, amparadas em estudos divulgados por terceiros. Uma cobertura reativa, sem um fluxo sistemático de investigação e denúncia. Ainda que não se possa caracterizar a cobertura como uma espiral do silêncio, nos termos definidos pela cientista de dados Noelle-Neumann em função de matérias episódicas, é certo que há uma assimetria clara entre a promoção massiva e a denúncia eventual de seus efeitos sociais.
Uma vaca sagrada esculpida em ouro
A relação entre o jornalismo e seus financiadores é tema recorrente desde que a imprensa se consolidou como ator central da conversação pública. As tensões entre interesse público e dependência econômica atravessam a história da atividade jornalística e permanecem evidentes em sua prática contemporânea. Exemplo dessa reflexão aparece na peça O Mercado de Notícias, escrita por Ben Jonson em 1625, que de forma alegórica já denunciava as ambiguidades entre informação, poder e mercado.
Ainda no que as teóricas sociais da imprensa Christa Berger e Beatriz Marocco chamaram de a era glacial do jornalismo, e Edward Ross descrevia a supressão de notícias importantes, há um processo no qual temas relevantes ao debate público deixavam de receber cobertura midiática em função do poder exercido pelos anunciantes, que mantinham os veículos de imprensa.
No ensaio The Suppression of Important News, Ross apontava que determinados atores sociais, por deterem poder político e econômico, tornavam-se verdadeiras vacas sagradas do jornalismo, imunes à crítica e à exposição pública. A imprensa, ao invés de cumprir plenamente sua função fiscalizadora, acabava por ocultar fatos ou suavizar abordagens quando os interesses em questão coincidiam com aqueles que sustentavam sua própria sobrevivência. Essa denúncia precoce já revelava a tensão estrutural entre a promessa democrática da informação e a lógica mercadológica que condiciona sua circulação.
O paralelo entre a tímida cobertura da imprensa esportiva dos malefícios das apostas on-line e a supressão de notícias importantes está posto. De acordo com a Kantar Ibope Media7, o setor de jogos e apostas é o que mais tem ampliado seus investimentos em publicidade, com crescimento de 47% entre 2023 e 2024. Apenas entre janeiro e agosto de 2024, sites de apostas investiram R$ 2,3 bilhões em compra de mídia no Brasil, distribuídos entre 58% em televisão e 42% em digital. Esta é uma vaca sagrada que garante o silenciamento do jornalismo esportivo com pesados investimentos.
Tamanho aporte de recursos transformou as bets em atores onipresentes na cobertura esportiva. Da propaganda no show do intervalo, passando pelas placas à beira do campo, brilhando nos bonés e camisetas de apresentadores e comentaristas, as casas de apostas são presença garantida em praticamente todo o conteúdo massivo sobre esportes no país, com as odds cantadas em prosa e verso em programas de rádio e televisão.
O protagonismo é ainda mais evidente no futebol. Atualmente, todos os 20 clubes da Série A do Campeonato Brasileiro possuem contratos de patrocínio com bets, de acordo com um levantamento da Foothub8. O mais impressionante deles foi firmado pelo Flamengo neste ano: O acordo com a Betano vai durar três anos e quatro meses e prevê um valor entre R$ 250 milhões e R$ 268,5 milhões por ano.
Isso vale para as emissoras detentoras dos direitos de transmissão do Brasileirão (aliás, Brasileirão Betano, uma casa de apostas comprou o direito de dar nome ao certame) na televisão aberta e fechada no YouTube. Globo, Record e CazéTV têm, entre os seus principais anunciantes, as maiores bets em operação no Brasil.
Se a presença de bets é constante nos espaços mais nobres do esporte brasileiro, a mesma tendência se espalha para a imprensa local e para pequenos canais nas redes sociais. Pequenos e médios veículos de imprensa encontram no dinheiro abundante dos jogos on-line uma fonte de receita que subsidia coberturas dos maiores aos menores campeonatos.
Enquanto o dinheiro dos apostadores paga pelas coberturas esportivas, matérias investigativas passam ao largo da editoria de esportes. Tradicionalmente, a seção de esportes pende mais ao entretenimento do que ao jornalismo informativo. A cobertura esportiva, especialmente no Brasil, adota cada vez mais estratégias de espetáculo, privilegiando emoção, narrativa e dramatização em detrimento da investigação.
Com essa característica preponderante, o jornalismo esportivo deixa de enfrentar temas sociais mais complexos, enquanto especula sobre a queda de treinadores ou possíveis contratações dos clubes. O professor e pesquisador Gavin Weedon faz uma revisão crítica e sistemática sobre como os manuais e guias de jornalismo esportivo muitas vezes omitem orientações para cobertura de temas sociais, mostrando uma negligência com o jornalismo de qualidade que vá além do entretenimento esportivo.
Nessa esteira, pautas fundamentais perdem espaço na imprensa. Escândalos de manipulação de apostas ganham espaço apenas a partir de investigações policiais, nunca por obra do jornalismo investigativo. Os problemas econômicos e psicológicos gerados em um país que viu nas apostas uma solução rápida para a falta de dinheiro são negligenciados, enquanto as escalações são dadas com exclusividade e alarde.
Nas plataformas digitais, mais dinheiro e mais silêncio
Se no jornalismo profissional os problemas gerados pelas apostas aparecem em pautas ocasionais, nas plataformas digitais a lógica de seu funcionamento garante que o potencial apostador não seja incomodado por dúvidas quanto aos riscos de usar o pouco dinheiro que se tem em jogos de azar. O investimento em influenciadores digitais é massivo e tem mostrado resultados altamente positivos para as casas.
Estudo sobre o tema, que analisou a circulação de conteúdos relacionados ao Jogo do Tigrinho no YouTube brasileiro, compreendeu a dinâmica dessa circulação, os seus autores coletaram e examinaram mais de 7,5 mil vídeos, cerca de 159 mil comentários e 4 mil canais, publicados entre janeiro de 2023 e julho de 2024, para classificar os comentários em posições favoráveis, contrárias ou neutras em relação ao jogo.
Os resultados revelaram uma assimetria expressiva na circulação de opiniões. Comentários favoráveis foram majoritários, mais repetitivos, com vocabulário limitado e alta similaridade lexical, sugerindo indícios de promoção coordenada ou até automatizada. Já as manifestações contrárias foram numericamente menores e a partir de contas de menor alcance. Os autores concluem algo visível a quem usa as redes sociais: o YouTube atua como amplificador da normalização das apostas on-line, favorecendo a promoção massiva em detrimento da visibilidade das vozes críticas.
Essa forma de atuação não é exclusividade do YouTube. Plataformas como TikTok e Instagram também se consolidaram como vitrines privilegiadas para as bets esportivas e para jogos de azar como o Tigrinho. Ali, influenciadores digitais, amparados por milhões de seguidores e por contratos milionários, transformam-se em peças-chave da engrenagem promocional. Suas narrativas de ganhos fáceis encontram eco em uma população marcada por baixa educação midiática e financeira, criando um ambiente fértil para a expansão do jogo e para o agravamento de seus impactos sociais.
Nas redes, as grandes estrelas são os cassinos virtuais. Segundo o Banco Central, brasileiros destinaram até R$ 30 bilhões por mês para apostas no 1º trimestre de 20259. Esse volume impressiona não apenas pelo impacto direto na renda das famílias, mas também pelo perfil do gasto: segundo a própria instituição, cerca de R$ 3 bilhões mensais têm origem em beneficiários do Bolsa Família, o que revela a penetração do jogo em camadas sociais mais vulneráveis.
Entre jornalistas a atuação não é menos questionável. As bets se tornaram as principais impulsionadoras do que, no senso comum, tem sido chamado de jornalismo identificado, aquele em que profissionais de imprensa declaram sua torcida por um determinado clube e passam a atuar de forma híbrida entre jornalista, comunicador e torcedor especializado. Essas coberturas são realizadas, principalmente, em plataformas de mídias sociais, na maioria das vezes, oferecidas por casas de apostas.
Especialistas alertam que a força desse mercado digital, ancorado em narrativas de ganhos fáceis e na publicidade agressiva, contribui para o endividamento crescente, a retração do consumo em outros setores e a normalização cultural do jogo como forma de entretenimento cotidiano. Nesse cenário, a imprensa brasileira enfrenta o dilema de noticiar de forma crítica um setor que, ao mesmo tempo, tornou-se um de seus principais financiadores por meio de volumosos contratos publicitários.
Retorno aos códigos deontológicos do jornalismo
A regulamentação das casas de apostas no Brasil é um fenômeno recente, ainda que o país conviva pacificamente há muito tempo com jogos de azar considerados ilegais. A conivência naturalizada com o Jogo do Bicho é um exemplo de nossa tradição em ajustar interesses e silenciar ao que deveria escandalizar. Países com um histórico mais amplo de discussões sobre os perigos das apostas apresentam elementos que podem inspirar iniciativas que mitiguem os danos.
O Reino Unido adota limites rígidos para publicidade, exigindo avisos claros sobre os riscos do jogo e restringindo campanhas que possam atingir menores de idade10. Os clubes da Premier League acordaram com a retirada voluntária das casas de apostas dos espaços nobres de suas camisetas, mostrando um caminho consciente para os grandes clubes mundiais.
Na Espanha, a publicidade de casas de apostas foi fortemente limitada em 2021, passando a ser permitida apenas de madrugada e proibida em camisas de clubes de futebol11. Já a Austrália12 avançou com regras para identificar jogadores problemáticos e impor limites de perda, em uma tentativa de conter a escalada do vício em jogos. Esses modelos mostram que a regulação não se limita à arrecadação, mas precisa incluir políticas de saúde pública e de comunicação responsável.
Aqui, a legislação ainda é recente e tímida. Pouco se avançou em restrições publicitárias, em mecanismos de proteção ao consumidor e em políticas específicas para jovens e populações vulneráveis, algo já visto em outras situações anteriormente não apenas no Brasil. Um caminho possível seria inspirar-se nas experiências internacionais, impondo limites claros à propaganda, principalmente em horários nobres e em plataformas digitais, além de criar instrumentos de prevenção, como limites automáticos de gastos e campanhas permanentes de conscientização. A responsabilização das plataformas de mídias sociais digitais também é indispensável para que se coíbam abusos.
Ao jornalismo, cabe um retorno aos princípios deontológicos que norteiam as boas práticas da imprensa. É fundamental discutir códigos de conduta, blindagens editoriais e mecanismos de autorregulação que permitam à imprensa noticiar com rigor e independência, mesmo quando seus maiores anunciantes são objeto da cobertura. A credibilidade do jornalismo depende justamente dessa capacidade de se colocar ao lado do interesse público, e não apenas da lógica de mercado.
Notas
1.
Disponível em https://www.similarweb.com/top-websites/brazil/. Acesso em 2 de setembro de 2025.
2.
A CNC (Confederação Nacional do Comércio) estimou que as apostas on-line causaram perdas de R$ 103 bilhões ao varejo em 2024, comprovando impacto negativo direto no consumo das famílias.
3.
Pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que 86% dos brasileiros que fazem apostas esportivas online estão endividados
4.
Uma pesquisa da Educa Insights revelou que 35% dos entrevistados não iniciaram um curso superior no período devido a gastos com apostas.
5.
A Operação Integration, conduzida pela Polícia Federal em setembro de 2024, desmantelou um esquema que teria movimentado quase R$ 3 bilhões em recursos de origem ilícita, envolvendo celebridades e casas de apostas suspeitas.
6.
O número de brasileiros que perceberam que as apostas se tornaram um vício e procuraram ajuda profissional nos Centro de Apoio Psicossocial (Caps), do Sistema Único de Saúde (SUS), aumentou 206% entre 2021 e 2024, segundo dados do Ministério da Saúde.
7.
Disponível em https://foothub.com.br/site/quais-os-patrocinadores-dos-clubes-brasileiros/. Acesso em 3 de setembro de 2025.
8.
Disponível em https://kantaribopemedia.com/conteudo/investimento-publicitario-cresce-dois-digitos-no-brasil-pela-primeira-vez-em-tres-anos/. Acesso em 1 de setembro de 2025.
9.
Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-04/apostadores-destinam-ate-r-30-bi-por-mes-bets-informa-bc. Acesso em 3 de setembro de 2025.
10.
Gambling Commission. New rules to strengthen protections around gambling advertising. 2022. Disponível em: https://www.gamblingcommission.gov.uk/news/article/new-rules-to-strengthen-protections-around-gambling-advertising. Acesso em 2 setembro de 2025.
11.
Real Decreto 958/2020, de 3 de noviembre, de comunicaciones comerciales de las actividades de juego. Boletín Oficial del Estado, Madrid, 4 nov. 2020. Disponível em: https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2020-13489. Acesso em 2 setembro de 2025.
12.
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