20 setembro 2017

Réquiem para o Programa Espacial Brasil-Ucrânia

Os principais instrumentos reguladores das relações Brasil-Ucrânia no campo espacial são o Acordo Quadro sobre Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior, de 1999; o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, de 2002, ambos concluídos durante o governo FHC; e o Tratado de Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4 no Centro de Alcântara, firmado durante a visita do Presidente Kutchma ao Brasil, em outubro de 2003, já no governo Lula.

Os principais instrumentos reguladores das relações Brasil-Ucrânia no campo espacial são o Acordo Quadro sobre Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior, de 1999; o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas, de 2002, ambos concluídos durante o governo FHC; e o Tratado de Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4 no Centro de Alcântara, firmado durante a visita do Presidente Kutchma ao Brasil, em outubro de 2003, já no governo Lula. Por esse último instrumento, foi criada a Alcantara Cyclone Space (ACS), entidade brasileiro-ucraniana de natureza econômica e técnica, responsável pela operação e lançamento do foguete Cyclone 4, de fabricação ucraniana. Na ocasião, foi também subscrito Memorando de Entendimento entre a Agência Espacial Brasileira (AEB) e a Agência Espacial Nacional da Ucrânia (AENU) Sobre Futuros Projetos Espaciais Bilaterais. Em seu artigo 1º, o Memorando expressava o compromisso de ambas as partes em “ampliar ainda mais sua cooperação, através da exploração de novos campos de colaboração e o empenho com vistas ao desenvolvimento conjunto de novos empreendimentos e projetos tecnológicos”. Mencionava, entre possíveis áreas de cooperação, as ligadas “à propulsão líquida, tanto para satélites quanto para lançadores, sistemas de guiagem e controle, bem como o aprimoramento de veículos de lançamento”. No conjunto, os dois últimos diplomas assentavam as bases dos entendimentos que prevaleceriam no relacionamento estratégico entre os dois países.
Acompanhei, na condição de embaixador em Kiev, a partir de 2003, boa parte dos encontros mantidos entre as duas delegações, em Kiev e em Brasília. Em meu retorno ao Brasil, em 2009, desempenhei-me como gerente de Relações Corporativas da ACS, de 23/9/2009 a 1/12/2009. Em 16 de julho do ano passado, o Itamaraty denunciou o Tratado de Longo Prazo, dando, assim, por encerradas as atividades da binacional ACS e o que parecia ser o melhor atalho para o Brasil recuperar o atraso acumulado desde a década dos 70, sobretudo após a explosão do nosso VLS-1, na base de Alcântara, em 2003.
Ucrânia
Para entender o desfecho da cooperação Brasil-Ucrânia, teríamos que repassar a posição de cada um dos atores que, direta ou indiretamente, influenciaram os acontecimentos. Primeiro, haveria que destacar que a Ucrânia integrou o complexo industrial-militar da extinta União Soviética e que ainda detém parte considerável da estrutura produtiva do setor. Nessas condições, era natural que se esforçasse, desde a independência em 1991 (mas sobretudo a partir do início do século), em reativar suas atividades nesse campo. Afinal, o país conta com o prestigiado centro de desenvolvimento de tecnologia de satélites e foguetes Yuzhnoye e com a fábrica de lançadores Yuzhmash, ambos sediados em Dnepropetrovsk, no leste do país, de onde saíram importantes peças do arsenal atômico soviético, como os devastadores mísseis balísticos intercontinentais SS-18 Satã (em vias de renovação, mas com alguns ainda operacionais na Rússia). A Ucrânia dispõe também de uma diversificada base industrial, que compreende a produção de aviões e de cargueiros para transporte de tropa e material bélico (dentre eles, o maior do mundo, o An-225 Mriya, arrendado ocasionalmente pela Otan), fabricados pelo Antonov Design Bureau (localizado nos arredores de Kiev), fábricas de turbinas para helicópteros (da Motor-Sich), carros de combate, diversas modalidades de mísseis, construção naval, entre outros.
Apesar desses trunfos na área industrial e de dispor de uma das terras mais férteis do planeta, a Ucrânia estava voltada, entre 2003 e 2009 (quando lá estive), para superar a crise econômica prevalecente até o início do século, resultado da convivência desarmônica entre o modelo socialista herdado do período soviético e a incipiente implantação de instituições capitalistas. Como se essa tarefa já não fosse complexa o bastante, empenhava-se o novo país em cimentar os laços de sua nacionalidade, afetados por distintas influências históricas nos dois lados do Dnieper (rio que banha Kiev e que corta o país de norte a sul). A parte oriental era marcada por afinidades com a Rússia, como resultado de vínculos familiares e de uma maior exposição à mídia russa, o que a tornava mais sensível aos interesses do grande país vizinho, sobretudo após a ascensão de Vladimir Putin e das frequentes incursões realizadas pelas autoridades consulares russas, com vistas a fortalecer esses vínculos e afinidades. A parte ocidental, mais voltada para a agricultura, refletia sua antiga associação com a Polônia e com o extinto Império Austro-Húngaro, tendo Lviv, sua cidade mais conhecida e importante, somente se tornado definitivamente ucraniana em 1945, após sua cessão pelos Aliados à URSS. Além dessas diferenças, pesava o fato de que no lado ocidental o idioma mais praticado era o ucraniano, contrariamente ao que ocorre no lado oriental. E, como apregoa um dito popular local, “a Rússia termina onde termina a língua russa” (frase que pode explicar muito, e não só com relação à Ucrânia).
A rápida recuperação da economia ucraniana, no período, não ocorreu de forma linear e provocou a formação de grandes conglomerados (em torno dos chamados “oligarcas”), graças inclusive a um pouco transparente processo de privatização. O jogo político interno refletia, de perto, as linhas culturais predominantes a leste e a oeste, antes mencionadas, em especial no tocante à adesão à Otan e à duração dos prazos para a devolução da base militar de Sebastopol, na Crimeia – tema que viria a constituir o leitmotiv da anexação perpetrada pela Rússia, em 2014. Fora isso, era perceptível o consenso em torno às principais questões-chave. O projeto de associação à União Europeia permitia, por um lado, acomodar a pretensão de consolidar laços políticos com o Ocidente e de estimular a adoção de práticas democráticas e, de outro, satisfazer as expectativas dos grupos econômicos da parte oriental em ter acesso àquele grande mercado. Todos tentaram, ademais, diversificar as fontes de suprimento de gás e petróleo, de que eram dependentes da Rússia. As tentativas realizadas frustraram-se no confronto com a influência russa nos países do Mar Cáspio, cuja malha de dutos – criada no período soviético – assegura àquele país a posição dominante como distribuidor do gás produzido na Ásia Central. Desfrutava, igualmente, de consenso o propósito de reativação da indústria espacial, como forma de manter os técnicos no país e de recriar empregos no setor, afetado pela menor demanda decorrente de sua participação secundária nos lançamentos em Pleissetsk (na Rússia), Baikonur (no Cazaquistão) e no programa Sea Launch, com os EUA. A disponibilidade de um centro de lançamento seria, ademais, capaz de viabilizar um programa autônomo. O projeto ocupava, assim, posição no topo da lista de prioridades do país (e a associação com o Brasil acrescentava uma vantagem adicional, que era a proximidade de Alcântara da linha do Equador, o que tornava os lançamentos mais competitivos). Em todos os casos, as iniciativas tinham como pano de fundo a ideia de consolidar a independência do país e de afirmar sua identidade nacional, o que implicava reduzir os históricos vínculos com a Rússia. Esse objetivo desfrutava de uma dimensão suprapartidária, com ambos os lados do espectro político diferenciados apenas pelo grau de açodamento ou realismo com que se empenhavam na tarefa. Iústchenko, o líder da Revolução Laranja, de forma mais direta e confrontacionista; Kutchma e depois Yanukóvitch (acusado de subserviência a Putin), de modo mais sutil e cauteloso.
Rússia
Vistas de Moscou, as tentativas de consolidação da independência da Ucrânia (berço da propalada “nação eslava”, integrada pela Rússia, Ucrânia e Bielorrússia no imaginário russo) terão representado um duro golpe na origem histórica comum e para os interesses geopolíticos da potência hegemônica da região. Além das motivações culturais que pudessem despertar, a separação afetava interesses específicos, próprios da comunhão universal de bens que prevaleceu por tanto tempo no relacionamento entre as duas economias. Nesse contexto, a adesão da Ucrânia à Otan era entendida, pelos russos, como um ato de provocação. Os gasodutos russos, que abasteciam a Europa, passavam por território ucraniano, como também boa parte do complexo industrial-militar do período soviético estava ali instalado. Não menos importante, as tergiversações de Kiev no tocante à extensão do prazo de arrendamento da base de Sebastopol, na Criméia, criava insegurança quanto à permanência da Frota do Mar Negro na península e, por conseguinte, ao acesso naval russo ao Mediterrâneo e ao tabuleiro político e militar do Oriente Médio.
Da mesma forma, as veleidades espaciais da Ucrânia independente geravam resistências que resultaram em uma velada campanha diplomática russa nos gabinetes em Brasília, com insinuações de que a Ucrânia não detinha a tecnologia do ciclo completo dos mísseis ou que não era detentora da propriedade intelectual dos projetos que desenvolvia. Dentre as inúmeras alegações circulantes, foi sobretudo pitoresca a que assegurava que o combustível do foguete Cyclone 4 era cancerígeno! Essa obviedade levou à convocação de uma improvável reunião (de que participei) com o então Ministro da Defesa, José Alencar, para esclarecer o ponto (quando ninguém questiona sequer os efeitos da emissão de gases pela frota de carros de passeio e esse vício nunca impediu outros países de desenvolverem seus programas espaciais). Coincidência ou não, a visita do Presidente Kutchma ao nosso país, em outubro de 2003, teve que ser interrompida, antes mesmo da programada ida da delegação à base de Alcântara, devido à crise originada pela construção, pela Rússia, de uma represa entre a sua costa e a ilha ucraniana de Tuzla, no estreito de Kerch (episódio que envolvia divergências quanto à delimitação das águas territoriais do Mar de Azov, contíguo ao Mar Negro). Não por acaso, ouvi de um dos membros da delegação ucraniana, enquanto esperavam decolar da base de Brasília, que aquele incidente certamente não ocorreria, “se a Ucrânia não tivesse devolvido as ogivas nucleares” à Rússia (no contexto dos entendimentos para sua desnuclearização, ainda no século passado).
O quadro mais recente, que inclui a anexação da Crimeia (em 2014) e o apoio de Moscou aos movimentos separatistas no leste da Ucrânia, geraram instabilidade no país e agravaram ainda mais a situação das empresas ucranianas. Vários contratos foram cancelados por ambas as partes, o que afetou encomendas para os lançamentos dos foguetes Dnieper da Rússia e de outros componentes em uso pela indústria de defesa russa, que está empenhada em um processo de substituição dos suprimentos oriundos da Ucrânia por produtos nacionais. No caso do programa espacial recentemente denunciado, houve – segundo informações do vice-presidente da Sociedade Aeroespacial da Ucrânia, de 2015 – desistências importantes do lado russo, como a da empresa KBTM, a que caberia projetar o complexo de lançamentos em Alcântara. Tudo somado, desse lado só ocorreram ações que não exatamente contribuíram para a boa execução do projeto.
EUA
Não constitui necessariamente surpresa a posição dos EUA contrária ao desenvolvimento brasileiro nas áreas nuclear e espacial. O “veto” americano é atribuído a uma histórica suspicácia de que o avanço na segunda esteja a serviço da primeira. O que desloca a consideração do tema do domínio e exploração pacífica da tecnologia espacial para o terreno mais controvertido da produção de artefatos atômicos (apesar de vedada pela Constituição de 1988, em sintonia com o fato de que, ao contrário de outros países, o Brasil não está inserido em uma região de alto risco para sua segurança nacional). Tais desconfianças deveriam, até prova em contrário, estar tão desativadas quanto as instalações da Serra do Cachimbo, dos tempos do regime militar, quando a velha rivalidade com a Argentina acalentou o projeto da “Bomba”. Essa “sanção” americana veio à tona para o grande público com a revelação dos telegramas divulgados pelo Wikileaks, em 2009, em que Washington instruiu seu embaixador no Brasil a responder negativamente a gestões do embaixador ucraniano favoráveis a um entendimento com os EUA no tocante ao programa espacial conjunto com o Brasil. A consulta – segundo depreendo do que circulava à época – transcendia a questão estritamente comercial e dizia respeito à possibilidade de os EUA fornecerem peças para o foguete Cyclone 4 e autorizarem o lançamento, desde Alcântara, de satélites americanos ou fabricados por outros países (inclusive Brasil e Ucrânia), mas que contivessem componentes americanos. Essa questão se tornava premente, na medida em que a cooperação com a Rússia ou não era de todo segura ou não era desejada por Kiev.
As mensagens interceptadas pelo Wikileaks deixavam clara a “antiga política de não encorajar o programa nativo dos veículos de lançamento espacial do Brasil” (com base na presunção que nosso Veículo Lançador de Satélites, como todo foguete, poderia ter uso dual, isto é, tanto civil como militar). Sentença em linha com o espírito da “pauta” (guidelines for sensitive missile-relevant transfers) do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR, na sigla em inglês), de que Brasil e EUA são signatários. Esse instrumento impõe controles à disseminação de tecnologias empregadas em atividades espaciais de cunho pacífico, na medida em que são as mesmas utilizadas para o desenvolvimento de mísseis de longo alcance, voltados para objetivos de destruição em massa. Essa filosofia está, aliás, refletida – em textos praticamente idênticos – nos Acordos de Salvaguardas Tecnológicas (AST), concluídos pelo Brasil com os EUA (2000) e com a Ucrânia (2002). A única diferença relevante é que o primeiro inclui cláusula que constitui virtual veto ao desenvolvimento tecnológico brasileiro nesse campo e, especificamente, ao programa espacial brasileiro, ao dispor, em seu artigo 3º, letra E, que o Brasil “não utilizará recursos obtidos de atividades de lançamento em programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados (quer na República Federativa do Brasil, quer em outros países)”. Coerentemente com essa política, os telegramas de Washington externavam a disposição de “apoiar o projeto conjunto ucraniano-brasileiro”, condicionada à entrada em vigor do AST Brasil-EUA (rejeitado pelo Senado brasileiro, por considerá-lo “uma afronta à soberania nacional”). Ou seja, sempre e quando as receitas aferidas com os lançamentos de satélites não fossem financiar projetos brasileiros no campo espacial (restrição tecnicamente ineficaz, porque tais recursos – por não constituírem “verbas carimbadas” – seriam recolhidos ao Tesouro Nacional e posteriormente irrigariam indistintamente o orçamento público anual).
O debate no Brasil sobre o AST com os EUA está eivado da habitual carga ideológica sobre qualquer tema que envolva o relacionamento com o Tio Sam. Em termos concretos, a verdade é que os EUA, principal potência hegemônica regional (e global), não favorece o desenvolvimento de um programa espacial autóctone no Brasil, ante os riscos que identifica de vir a se tornar o embrião de algo mais ambicioso, tendo em vista as naturais pretensões brasileiras de vir a ocupar um papel relevante no cenário internacional. Objetivo este que pode ser alcançado sem necessariamente a posse de mísseis intercontinentais nem armas nucleares (como comprovam a relevância de Alemanha e Japão em seus respectivos entornos regionais). O que não impede que o Brasil pretenda, legitimamente, participar da exploração comercial do rentável mercado de lançamento de satélites, com equipamentos brasileiros. A consecução desse objetivo passa, entretanto, por algum entendimento com os EUA, uma vez que praticamente todo equipamento espacial, de qualquer origem, possui componente americano. O problema é que essa medida, por si só, não é suficiente para assegurar que o Brasil venha a dispor de tecnologia espacial. Garante, no máximo, que possamos emprestar a Alcântara um papel semelhante ao de Courou (na Guiana Francesa) ou Baikonur (no Cazaquistão).
Brasil
O conturbado quadro prevalecente nas relações com e entre os países antes mencionados não se torna menos descontraído quando focamos o Brasil, como pude comprovar durante minha breve estada na Cyclone Alcantara Space, no final de 2009. Durante os dois meses em que lá estive, tomei conhecimento de inúmeras atividades da empresa destinadas exclusivamente a vencer as dificuldades burocráticas internas, alheias ao programa espacial bilateral. Dentre elas, destacavam-se as criadas pelas sucessivas exigências ambientais (após longo e custoso estudo de impacto, foi cobrado novo relatório, porque o primeiro estava restrito a uma estação do ano e se tornava imperioso refazê-lo para cobrir a outra estação, quando ocorria o ciclo de reprodução de várias espécies da região); houve paralisações decorrentes de sentença judicial que acusavam as coletas de material realizadas para montar o relatório requerido pelo Ibama de “perturbar o descanso dos antepassados dos quilombolas” (o que gerou 14 meses de despesas e de inatividade); o Incra declarou 68% do município de Alcântara “território quilombola”, deixando a ACS sem área para seus lançamentos (o ministro da Defesa, Nelson Jobim, destinou-lhe depois nova área, ao custo de R$ 1.356 mil por ano, em valores de 2009, dentro do complexo sob comando militar da Aeronáutica, o que limitou o acesso e a locomoção dos funcionários da ACS e de terceirizados ao local); o porto – que deveria receber o primeiro foguete e outras máquinas e equipamentos para construção civil e lançamentos – teve sua concessão cancelada, mesmo após licitação e indicação do consórcio vencedor; os quilombolas interditaram as estradas de acesso às instalações, e a Fundação Palmares convocou audiências públicas para atender às suas reivindicações; os recursos destinados à ACS tiveram seu encaminhamento retardado ou cancelado pelas mais variadas razões.
A lista é longa e surrealista e foi objeto de depoimento do então diretor da binacional, pelo Brasil, Roberto Amaral (ex-ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula), perante a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara de Deputados, em 6/10/2009 (DETAQ nr 1684/09). Posteriormente, em artigo publicado na Carta Capital de 6/8/15, com o apropriado título de “A crassa inaptidão para projetos estratégicos”, fez contundente crítica aos percalços sofridos pelo programa Brasil-Ucrânia. Concluiu, então, que “o projeto foi, desde sempre, furiosamente combatido por forças internas e externas”.
Tendo em vista criar a base jurídica para o aprofundamento da cooperação tecnológica entre os dois países, já delineada no antes mencionado Memorando de Entendimento entre a AEB e a AENU sobre Futuros Projetos Espaciais Bilaterais, de 2003, dediquei-me (não saberia dizer se por instinto ou deformação profissional) a preparar minuta de projeto de Protocolo Adicional ao Acordo bilateral sobre Salvaguardas Tecnológicas com a Ucrânia. A iniciativa foi aprovada pelo lado brasileiro da ACS e depois por mim submetida ao Itamaraty, que se prontificou a sediar os encontros preparatórios, com a presença de representantes dos demais órgãos competentes do governo. O documento que daí resultou reafirmava “a parceria estratégica de longo prazo entre as Partes” e previa “condições de igualdade de direitos e obrigações no funcionamento do projeto conjunto”. O que permitiria maior fiscalização, pelas autoridades brasileiras, das atividades de transporte realizadas em solo brasileiro e criaria condições para a inspeção da área sob jurisdição da ACS “por meios eletrônicos compatíveis com a segurança dos lançamentos”, entre outras medidas. Em especial, seu artigo IV estatuía que “as Partes se comprometem a promover o desenvolvimento conjunto de novos Veículos de Lançamento e de seus Sistemas de Lançamento, com vistas à ampliação da parceria estratégica no campo espacial, aproveitando a experiência acumulada pelas Partes nesse ramo de atividade”. Trocado em miúdos, Brasil e Ucrânia se dedicariam à criação conjunta de um novo foguete, o Cyclone 5.
Visto com a perspectiva do tempo, é possível que a iniciativa não vingasse, pelas mesmas razões que o programa espacial bilateral não prosperou. E, sobretudo, porque a execução do projeto dependeria, como o Cyclone 4, de a Ucrânia deter o ciclo completo da tecnologia espacial (o que provou não ser o caso). Seja como for, a proposta não teve encaminhamento, na medida em que nenhum representante da ACS ou da Agência Espacial Brasileira integrou a delegação do Presidente Lula, em visita oficial à Ucrânia em 2 de dezembro de 2009. Considerei, então, que o programa bilateral não tinha futuro e que minha participação nele era dispensável. A denúncia do Tratado de Cooperação de Longo Prazo, a 16 de julho do ano passado, por “significativa alteração da equação tecnológico-comercial” (sic), deitou a última pá de cal em um assunto que vinha moribundo há tempos e carente de recursos de ambos os lados (a crise econômica na Ucrânia já vinha há tempos fazendo com que as despesas do programa fossem cobertas com financiamento brasileiro).
Como resultado dessa combinação nefasta de fatores, nem o programa espacial brasileiro, nem o bilateral com a Ucrânia alcançaram êxito. Nesse meio tempo, a Índia – cujos esforços no campo espacial deslancharam praticamente no mesmo ano de 1970 – colocou um satélite na órbita de Marte em 2008 (sem prejuízo de que, lá como cá, também haja quem ignore a contribuição científica, tecnológica, industrial e acadêmica propiciadas pelas atividades espaciais e prefira a aplicação dos recursos em programas sociais).
As perspectivas que se abrem para o Brasil não se revelam promissoras. À permanência dos óbices impostos pelo Acordo de Salvaguardas com os EUA, soma-se o efeito pernicioso das inúmeras medidas internas adotadas nos últimos anos, como a ampliação inoportuna do “território quilombola”. Os planos de arrendamento da base para terceiros, se bem venham a dar um destino compatível com a vocação de Alcântara, estará certamente muito aquém dos anseios de exploração comercial e pacífica do espaço, embutidos nos planos adotados originalmente. Não nos resta, entretanto, senão manter abertas todas as opções, na expectativa de que, no futuro, possam surgir oportunidades mais consentâneas com as vantagens locacionais de que detemos. O certo é que o tema exige uma definição de política, em nível de Estado, de modo a evitar que esteja sujeito aos humores de instâncias subalternas. Até isso ocorrer, o Brasil deveria restabelecer o status estratégico de Alcântara e tomar medidas para que uma localização privilegiada para lançamento de satélites, praticamente na linha do Equador, não seja relegada à condição de resort para a reprodução de batráquios no período estival.


Foi Embaixador na Ucrânia (2003 a 2009) e na Bielorrússia (2011 a 2014). De 23/9/2009 a 1/12/2009, foi gerente de Relações Corporativas da Cyclone Alcantara Space (ACS).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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