Segurança Pública e seus Grandes Desafios
As manifestações de junho de 2013 colheram um país que nunca teve tradição em movimentos sociais com grande adensamento popular.
Não fossem as manifestações no longínquo 19 de março de 1964, com a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, e, 28 anos depois, com o movimento estudantil dos “Caras Pintadas”, na mobilização pelo impeachment de um presidente da República, poder-se-ia dizer que esse movimento foi inédito.
Movimentos grevistas de metalúrgicos, professores, bancários, ao longo destas décadas, tiveram dimensões bem menores e repercussões limitadas.
Encontros denominados “rolezinhos”, marcados pela internet por adolescentes residentes na periferia, causaram efervescência na mídia, com outra exagerada e desproporcional intervenção do aparato policial e, assim como surgiram, perdem espaço e tendem a desaparecer.
Mas, o ineditismo das manifestações que se iniciaram em 2013 ficou por conta de uma mobilização difusa, sem liderança, apartidária, variando desde a manifestação contra o aumento do preço dos transportes à censura ao imobilismo e ao descrédito da classe política, passando pela falta de gestão, gastos excessivos para a realização da Copa do Mundo de futebol, corrupção desenfreada, impunidade, descrédito na justiça por sua morosidade e a mordaça que se pretendia impor ao Ministério Público, na tentativa de impedi-lo de exercer integralmente o papel constitucional que lhe é reservado na Carta Magna.
Em um primeiro momento, a força popular foi subestimada, e dois de nossos principais governantes, em Paris (quando pleiteavam a sede de outro megaevento), de forma categórica, imprimindo o mesmo tom incisivo nos discursos – que denotaram prévio alinhamento – afirmaram que o aumento das passagens era fato consumado e sequer admitiam discutir a questão.
Quando retornaram ao país, deram-se conta da consistência da reivindicação e apressaram-se, constrangidos, também em conjunto, a tornar sem efeito o aumento que horas antes consideravam justo e inegociável, ficando o dito pelo não dito.
Diante do clamor popular, a classe política, atônita, buscou respostas imediatas também no Congresso Nacional, com decisões meramente paliativas, superficiais, para salvar as aparências, entre elas a classificação da corrupção como crime hediondo e a proibição do voto secreto para sessões de cassação de mandatos de parlamentares.
Até um equivocado plebiscito foi sugerido, com a abordagem de temas absolutamente irrelevantes no contexto das manifestações, como a extinção das suplências no Senado, para amainar as tensões e dissimular a ausência de propostas efetivas do Palácio do Planalto.
Pela falta de objetividade, a proposta presidencial logo foi condenada ao limbo dos arquivos e sequer foi objeto de análise da classe política.
Pela forma difusa como os protestos se apresentaram e tiveram amplo apoio da população, após a desproporcional reação policial, ficou claro um novo comportamento de nossa sociedade – tendo como mola propulsora as redes sociais –, que não mais aceita o monopólio dos grandes e, até então, influentes meios de comunicação.
Editoriais de uma grande rede de comunicação se mostraram contraditórios, no primeiro instante criticando e, no dia seguinte, apoiando as manifestações, que em muitos momentos repudiaram a cobertura jornalística e escorraçaram oportunistas que aderiam com bandeiras de partidos políticos.
Forma legítima de exercer a cidadania, os protestos foram ofuscados pelo vandalismo de grupos radicais, gerando saques, agressões, danos aos patrimônios público e privado, que as forças de segurança pública, surpreendidas com a estratégia por eles adotada, não tiveram condições, no primeiro momento, de reprimir sem descambar, uma vez mais, para o arbítrio, sem falar no imobilismo causado pelas indecisas autoridades que contribuíram para intervenções contraditórias, ora usando meios de dissuasão, ora deixando-os de lado, levando a própria tropa à perplexidade.
Causa preocupação o estímulo a essas manifestações violentas por pessoas com vínculos partidários, que os recentes episódios culminaram por escancarar e que, pelo menos, servirão para refrear objetivos inconfessáveis.
Copa do Mundo – preparativos e perspectivas
A conscientização dos problemas sociais, através das manifestações, fez com que o respaldo à realização da Copa caísse para 52 %, apoio mais baixo na região Sul (39%) e Sudeste (44%), e todos se conscientizaram de que o legado desse evento será bem menor do que o previsto pela propaganda de seus organizadores.
Projetos como trem-bala ligando Rio-São Paulo, de mobilidade urbana no Amazonas, foram adiados para tempo indeterminado.
O exagerado número de sedes para a realização desse torneio, escolhidas para atender somente aos interesses partidários, em detrimento da qualidade dos espetáculos, do conforto e da segurança dos participantes, torcedores, turistas e daqueles que serão encarregados da cobertura jornalística, dispensa comentários de maior fôlego.
Nas construções dos estádios em Cuiabá, Brasília, Manaus e Natal, com média de público em campeonatos regionais abaixo de 2 mil torcedores, disputados com clubes que não conseguem despertar grandes torcidas, foram consumidos mais de R$ 7 bilhões com aportes do BNDES e de governos estaduais.
A Matriz de Responsabilidades, criada pelo governo federal, gerou 290 intervenções ligadas ao evento, entre projetos de construções de 12 arenas, 41 projetos de mobilidade urbana, 29 ligados aos aeroportos, seis voltados para os portos, 42 em segurança pública, além de dezenas de projetos em telecomunicações e turismo.
Muitas dessas obras, se realizadas, causariam impactos positivos na vida das pessoas, mas a improvisação e o atraso dos cronogramas levam à perplexidade, uma vez que a Fifa anunciou o Brasil como sede em 2007.
A lei n º 12.462/2011, que criou o Regime Diferenciado de Contratações, visando à celeridade das obras da Copa do Mundo, nada mais é do que uma consequência da falta de gestão do poder público, do imobilismo governamental ao logo de extenso lapso temporal, desde o anúncio feito pela entidade internacional.
A execução dessas obras seria inviável se fossem obedecidas as rígidas regras da lei de licitações, em vigor desde 1993. Daí as inovações legislativas movidas pelo imediatismo, que poderão permitir corrupção e superfaturamento em maior escala.
Quanto à atuação das forças de segurança pública, área pela qual fui responsável no estado de São Paulo por quase quatro anos, desde a segunda metade da gestão do governador José Serra até meados deste governo, constata-se, felizmente, que as instituições policiais adotaram determinações de acordo com esses novos desafios, em contraste com o atraso de outros segmentos. Há muito, os organismos policiais estão se preparando para esse evento, com seriedade e responsabilidade.
Pelos contatos que tive com outros secretários, em várias reuniões conjuntas, que agora se realizam com mais intensidade, o planejamento vem sendo executado sem atropelos e improvisações, e a experiência já adquirida em grandes eventos representa garantia de uma boa prestação de serviço, não apenas nos jogos, mas em todas as atividades a eles relacionadas.
Exemplo desse planejamento foram as viagens de estudos de delegados de polícia e oficiais da Polícia Militar de São Paulo, que concluíram o Curso Superior de Polícia em 2009, para a sede da Copa do Mundo realizada na África do Sul e, em 2010, para Londres, que sediou as Olimpíadas. As experiências adquiridas e a análise dos obstáculos enfrentados e vencidos em competições dessa magnitude serão de grande valia para a polícia de São Paulo.
Eventos, como a recente visita do Papa Francisco, celebrações do porte do Carnaval, Réveillon e competições esportivas internacionais, como Fórmula 1 e Fórmula Indy, pelas experiências adquiridas, representam garantia de atuação satisfatória, com a integração de órgãos federais, estaduais e municipais, além de grandes investimentos em tecnologia, na ordem de R$ 1,17 bilhão, valendo ressaltar a importância dos Centros de Comando e Controle que estão sendo instalados nas 12 sedes.
Segurança Pública – desafio sempre atual
Como responsável por essa sensível área por quase quatro anos, não sem antes passar por mais de dois anos e meio à frente da Secretaria da Administração Penitenciária, acompanhei de perto os esforços do estado para enfrentar a violência, que se apresenta num estágio crescente, em quantidade e grau, cada vez mais intenso e imprevisível, que impressiona pelos requintes de crueldade e audácia.
O estado de São Paulo conta com três instituições policiais – Polícia Civil, Polícia Militar e Polícia Científica – bem preparadas, que acompanham a evolução da tecnologia, tendo em seus quadros profissionais altamente qualificados.
A Polícia Militar, pela natureza de suas atribuições, dispõe de um efetivo de 90 mil homens, 23 helicópteros, seis aeronaves e dois navios para combate a incêndio na zona portuária. Faz mais de 50 milhões de intervenções por ano, atende a mais de 35 mil chamadas por dia no Centro de Operações da Polícia Militar (Copom)da Capital, despacha mais de 7 mil viaturas diariamente para atendimento de ocorrências, conta com 102 Batalhões de Polícia Territorial, quatro Batalhões de Choque, cinco Batalhões de Polícia Rodoviária, quatro Batalhões de Polícia Ambiental, um Regimento Montado e 22 Grupamento de Bombeiros. Além disso, a Polícia Militar está presente nos 645 municípios do estado, mantendo um mínimo de sete policiais militares nas cidades de menor porte, e possui uma frota de 15 mil veículos.
Já a Polícia Civil conta com aproximadamente 30 mil policiais, atua de maneira eficiente na persecução criminal em sua primeira fase e desenvolve serviço de excelência no Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP), no Departamento de Investigações Criminais contra o Crime Organizado (Deic). Possui o maior Departamento de Polícia da América do Sul, o Decap, com 93 Distritos Policiais distribuídos somente na capital, com mais de 6 mil policiais e 622 delegados de Polícia. Também dispõe de sistemas modernos de investigação, como o Registro Digital de Ocorrência (RDO) e o Sistema de Informações Criminais (Infocrim) , que permitem o mapeamento do crime e o planejamento adequado para enfrentá-lo. Além disso, possui quatro helicópteros, uma frota de 5 mil viaturas e atua em todo o estado de São Paulo.
A Polícia Civil criou, em 2009, originariamente em Bauru, um projeto de Polícia Comunitária, denominado Núcleo Especial Criminal (Necrim), inspirado na Lei nº 9.099/95, que deu tratamento distinto aos crimes de menor potencial ofensivo.
Tratou-se de iniciativa arrojada e pioneira, de interesse público, objetivando o restabelecimento da paz social, com propostas definidas no atendimento da população, com padronização dos trabalhos de polícia judiciária, acompanhada da valorização e da dignidade do cargo de delegado de Polícia na presidência de audiência, atuando como mediador na solução dos conflitos sociais.
Esses núcleos têm como objetivo o atendimento mais célere dessas questões, com atuação direta do delegado de Polícia na mediação de interesses, aflorando um acordo extrajudicial entre os litigantes, contribuindo na busca de uma solução pacífica e eficiente na composição da lide.
Teve como mérito o preenchimento de grande lacuna que existia no poder judiciário pelo invencível acúmulo de demandas nos Juizados Especiais Criminais (Jecrim).
Por sua vez, a Polícia Técnico-Científica, concluindo essa estrutura, conta com mais de 3.500 servidores, possui atualmente 84 postos do Instituto de Criminalística, sendo 27 deles na capital, seis na região metropolitana e 51 no interior do estado, com um total de 1.065 peritos criminais e 70 postos do Instituto de Medicina Legal, sendo seis na capital, 11 na região metropolitana e 53 no interior do estado, com um total de 468 médicos legistas. Atua também com equipamentos de última geração, concorrendo decisivamente para a elucidação de crimes e, não raro, é solicitada para atuar em outros estados, nos grandes desastres.
Além disso, em sua expressão mais ampla de segurança pública, fechando o quadro, insta ressaltar o sistema penitenciário, a cargo da Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo, que ocupa papel de destaque e de capital importância na estabilidade da ordem pública. Os governos não poupam, ao longo do tempo, esforços para fazer face à demanda sempre crescente de vagas no sistema prisional, em decorrência de uma atuação mais eficiente da polícia.
Atualmente, o estado conta com 26 mil agentes de segurança penitenciária e agentes de vigilância e escolta, abriga 210 mil presos (mais de 40 % da população carcerária do país), em 158 presídios, com 78 penitenciárias de segurança máxima, 40 Centros de Detenção Provisória, 22 Centros de Ressocialização, 14 presídios de regime de progressão de pena, um Centro de Readaptação Penitenciária (RDD) e três hospitais psiquiátricos.
Esse gigantismo, verdadeiro exército dentro de São Paulo, evidencia que os percalços atuais e a crescente sensação de insegurança decorrem de uma apática e quase inexistente política de segurança pública, que não pode ficar restrita a um mandato governamental ou até mesmo de uma gestão interrompida ao longo do mesmo governo.
Uma política de segurança pública é imperiosa e deve ser suprapartidária, definida com transparência e seguida sem bruscas interrupções ao sabor de governantes por vezes jejunos nessa área, ao longo do tempo.
O que falta na atualidade, além de uma política definida, é gestão administrativa, posto que os recursos materiais e humanos, como os vistos, impressionam pela quantidade e qualidade.
Facção Criminosa – realidade e mito
Abordar este tema é um convite à polêmica, mas é imperioso, após quase dez anos de atuação no sistema penitenciário, se levado em conta o período que atuei nessa área – de 1993 a 1995.
Muito se tem falado sobre a facção criminosa que atua nos presídios paulistas, trazendo apreensões e medo.
Vários artigos, com o devido respeito, pecam pelo exagero, dando tom de romance e dramaticidade à atividade de traficantes e assaltantes que tiveram, após o advento da telefonia celular, um poder inquestionável de dentro das prisões, mantendo o controle das quadrilhas que formaram ou integraram em liberdade.
O telefone celular mantém a comunicação do preso com o mundo exterior, descaracterizando um dos sentidos da pena de privação de liberdade, que é a retirada, por um lapso temporal, de indivíduos perigosos do convívio social, queiram ou não os mais liberais. No decorrer das últimas décadas, ações violentas dessa facção, com mortes, destruições e atentados, tomaram, em certos momentos, dimensões exageradas, numa inconsciente e indevida valorização dessa facção, espalhando medo e até mesmo pânico.
Nunca emiti, como secretário, qualquer declaração de que o PCC não existia ou que seria uma lenda. Seria cair no ridículo. Apenas enfatizei, em 2012, à frente da pasta de Segurança Pública, que naquele momento essa facção se restringia a pouco mais de 30 líderes, e que muito do que se escrevia sobre ela não passava de lenda. Daí a interpretarem que disse ser o PCC uma lenda é um rematado disparate, para dizer o mínimo.
Após os ataques de maio de 2006, nenhuma rebelião de grandes proporções ocorreu, a Polícia Militar não mais se viu obrigada a invadir presídios, nenhum atentado a bens públicos ocorreu, nenhum resgate de presos se efetivou, nenhuma tentativa de fuga teve sucesso. Se houve uma onda de homicídios de policiais militares, em repressão ao tráfico de drogas, em 2012, todos atribuídos à facção, sem maiores indagações, essa precipitação não ocorre agora, posto que só nos dois primeiros meses de 2014 foram mortos 24 policiais militares, além de dois policiais civis.
Mas, é incontroverso que essa organização criminosa continua atuante no interior dos presídios, agora com outros objetivos, entre eles, com absoluta prioridade, o milionário tráfico de entorpecentes e de armas.
Como combater o PCC?
O estado precisa, urgentemente, ser profissional e deixar de se contaminar com boatos e más interpretações que, se rendem popularidade efêmera, causam efeitos deletérios duradouros, como hipotéticos e absurdos diálogos, sem qualquer consistência, para matar autoridades.
Uma nova diretriz orienta a facção, voltada para o tráfico de cocaína e maconha em escala nunca antes experimentada.
Exemplo eloquente desse novo enfoque da facção foi a recente notícia de que helicópteros estavam sendo mobilizados por ela para uma fuga espetacular, com a descida de um cabo com cesto metálico para resgatar quatro de seus líderes (como se vê, não são milhares, como insinuam), entre eles o Marcola.
A redução dos pedidos de interceptações telefônicas e a mudança na estratégia de combate aos marginais que são constantemente recrutados no submundo do crime para atuar a serviço da facção, com o consequente arrefecimento desse combate em prol de uma distorcida visão de diminuição de confrontos como prioridade da pasta, são demonstrações da indefinição de uma política de segurança pública e preocupantes componentes do provável recrudescimento dessa organização criminosa.
Não se pode, entretanto, comodamente, atribuir ao PCC todas as ações criminosas levadas a efeito em território paulista, planejadas e colocadas em prática, atualmente, por quadrilhas e bandos bem organizados e estruturados, que também se valem do avanço tecnológico e que representam um desafio igual ou maior do que o dessa facção que atua no interior dos presídios.
Os integrantes desta, em razão do encarceramento e obtendo, atualmente, lucro na ordem de R$ 8 milhões por mês, conforme escutas ambientais, na rentável atividade de tráfico de entorpecentes (nunca esteve tão disseminado), irão, sempre, viver do planejamento de fugas.
De que lhes serve o poderio financeiro sem a almejada liberdade?
Como a logística, também ganha espaço nas atividades da facção o tráfico de armas de grande poder de fogo, muitas delas de uso privativo das Forças Armadas, que nem mesmo a Polícia Militar pode adquirir por vedação legal.
Agora, com a fortuna amealhada e sempre crescente, sentindo que estão vivendo um momento propício, dão-se ao luxo de pensar em helicópteros, aviões, formações de pilotos e contatos internacionais.
Considerações Finais
Concluindo esta breve exposição, nunca é demais acentuar que o problema de segurança pública no estado de São Paulo passa, necessariamente, pela definição urgente de uma política de segurança pública, suprapartidária, estável, que aflore de suas instituições policiais, sem corporativismo, dando-se prioridade à implementação de uma cultura de meritocracia, valorização de talentos e excelência em gestão, prescindindo-se, para isso, de institutos especializados apenas em gestão pública, mas que pouco ou nada sabem da difícil e contagiante missão policial.
A Segurança Pública de São Paulo, por sua pujança, potencial e qualificação nos quatro segmentos que a compõem, só não é maior porque não conseguiu definir e dar prosseguimento a uma política pública consistente e duradoura, que permita amplo, contínuo e salutar controle externo.
Antonio Ferreira Pinto é procurador de Justiça aposentado e foi secretário de Segurança Pública e Administração da Penitenciária do estado de São Paulo (2006 a 2012)
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