Segurança Pública: antes que seja tarde
Raul Jungmann
A crise na segurança pública merece uma análise sob variados aspectos para que o país possa se organizar e se fortalecer internamente, de modo a propor e a aplicar soluções à escalada da violência e do crime organizado. A estrutura pública ao longo dos anos foi desviada dessas funções e, tragicamente, passa a desempenhar o papel de fomentadora e de protetora do crime organizado, favorecendo o aliciamento de jovens, promovendo o tráfico de drogas em crescente escala e tornando a população refém dos criminosos. Ou seja, a atual segurança pública do Brasil é funcional à expansão e ao aprofundamento da violência e do crime organizado que a todos nós ameaçam.
O Brasil adota há séculos uma estrutura pública calcada em um governo central, seja no império, seja na República. Nas sete constituições, desde a do Império até a de 1988, nenhuma atribui responsabilidades a esse governo central em relação à segurança pública. Uma questão crucial para a sobrevivência socioeconômica da população, mas que se encontra praticamente à parte da esfera federal.
Este é o fato primordial para entendermos a crise que vivemos na segurança pública, em que o crime se nacionaliza e transnacionaliza, mas não há uma autoridade central com suporte constitucional e legal, e nem recursos materiais e financeiros, bem como pessoal disponível, para fazer uma coordenação de combate a esse mal que aflige rigorosamente todos os brasileiros, direta ou indiretamente.
Consequência desse quadro, é que se pode afirmar que o Brasil não dispõe de um sistema nacional de segurança pública e nem de uma política setorial destinada a fortalecer a segurança pública.
Um exemplo permite avaliar com mais facilidade o que busquei expressar até aqui. Imagine que alguém é roubado. Quem irá cuidar disso? A esfera estadual, por meio de seus órgãos, como o Ministério Público Estadual, a Polícia Militar Estadual, a Polícia Civil Estadual e a Justiça Estadual. A esfera federal não tem nenhuma atribuição ao que diz respeito a esse ou a outros delitos que compõem o universo da segurança pública.
A Constituição de 1988 ofereceu uma oportunidade para que a segurança pública pudesse ter sido brindada com o merecido status de poder contar com um ministério exclusivo para a sua gestão. Foi o que aconteceu com toda a área social, que alcançou o mais alto nível da administração pública federal; assim, foram contemplados com ministérios os setores de educação, saúde, cultura, esportes, previdência, turismo, entre outros.
Mas em relação à segurança pública, em mais de 300 anos, considerando o período republicano, somente tivemos a oportunidade de tê-la abarcada por um ministério durante dez breves meses, no governo do então presidente Michel Temer, do qual fui titular. E é com base nesta experiência, bem como à frente do Ministério da Defesa e como deputado presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, que faço as observações, análises e proposições aqui contempladas. É uma forma de contribuir com o necessário debate nacional sobre a questão da segurança pública.
Ausência de autoridade central com suporte constitucional
Este debate deve sempre levar em conta os dados. A questão da segurança pública precisa ser avaliada, por exemplo, em relação aos gastos e aos efetivos policiais. Quando somamos o conjunto de despesas das três esferas administrativas com segurança pública – municípios, estados e união –, segundo dados compilados pelo Fórum Nacional de Segurança, em 2022, a partir de relatórios do Tesouro Nacional, temos o total de R$ 124 bilhões.
Desses três níveis da administração pública, a contribuição do governo federal é de apenas R$ 23 bilhões. Ou seja, a participação de todo o governo federal é equiparada ao orçamento de apenas de dois estados, São Paulo e Minas Gerais.
Quando observamos o efetivo policial, o Brasil tem 782 mil policiais distribuídos entre estaduais, guardas municipais, policiais penais e policiais federais. Considerando essas polícias, o efetivo federal que se encontra na Polícia Federal é de 12 mil homens e mulheres; na Polícia Rodoviária Federal outros 12 mil e com mais o efetivo da Polícia Penal o total gira em torno de 27 mil homens e mulheres.
O efetivo federal não chega nem sequer a 5% do total das polícias existentes no país.
A pergunta que não quer calar: será que é possível ao governo federal, apenas com este efetivo, e sem as responsabilidades constitucionais e o suporte legal para efetuar o papel de coordenação, sem recursos e pessoal, reunir condições para coordenar o combate à criminalidade no Brasil? Difícil. Praticamente, impossível.
Lembro, ainda, que a Polícia Federal tem atribuições relacionadas a alguns tipos penais, como contrabando, drogas, mas assume diversas funções administrativas, como é a o caso da emissão e controle dos passaportes e da imigração, por exemplo.
Já a Polícia Rodoviária Federal fiscaliza 70 mil km de rodovias federais. Ou seja, nem PF nem PRF têm atribuições diretas, ou com a amplitude necessária, para dar conta da segurança pública.
Outro tópico a compor este mosaico da crise da segurança pública é o sistema prisional brasileiro. Este sistema ostenta a terceira maior população carcerária do mundo, atrás da China e dos Estados Unidos.
Temos no Brasil aproximadamente 680 mil apenados, o que corresponde a quase o dobro das celas disponíveis. É um sistema sabidamente saturado. Mas é bem mais do que isso, apresentando uma situação caótica e crítica. Enquanto o governo federal dispõe de um número tímido de penitenciárias de segurança máxima – apenas cinco –, os estados têm 1,4 mil. É o retrato da imensa assimetria entre governo federal e estados.
Prisões alimentam a indústria do crime com dinheiro público
As estruturas prisionais são um problema. Não o maior, mas, sim, o poder que delas emana. Essas unidades prisionais, em quase sua totalidade, estão sob controle de aproximadamente 70 facções de base criminal. São facções criminosas que nasceram, desenvolveram-se e cresceram no sistema prisional, ou seja, no ventre de um equipamento que é público, sustentado pelos impostos da população, alvo constante do crime e que só dispõe da frágil estrutura do Estado para protegê-la. O dia em que o conjunto de cidadãos despertar para o fato de estar alimentando essa indústria do crime com o dinheiro de seu trabalho, o risco político e social é expressivo.
Nos presídios, as facções, como PCC, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, 3º Comando da Capital, Família do Norte, Guardiões do Estado etc., são as que, em última instância, comandam de lá de dentro o que acontece em termos de violência e de crime organizado aqui fora. São sequestros, tráfico de drogas e de pessoas, lavagem de dinheiro, contrabando, garimpo ilegal, desmatamento e uma série de atividades odiosas. Trata-se de uma constatação repetida constantemente ao longo de muitos anos, mas que, tragicamente, não causa efeitos, reconhecidos pela sociedade, de que está havendo combate efetivo a essa situação. Este é um debate interditado desde sempre e, portanto, sem solução. É via o sistema prisional, verdadeiro home office do crime organizado, que o seu exército é recrutado, treinado e lhe jura obediência.
No sistema prisional brasileiro são as facções criminosas que asseguram a vida dos apenados que lá se encontram, substituindo o próprio Estado, já que este seria seu dever e responsabilidade.
Dentro do sistema prisional, 55% dos apenados são jovens negros, de famílias desestruturadas, com pouca ou nenhuma renda e baixa escolaridade. Este sistema tem funções básicas, que são privar de liberdade aqueles que cometeram crimes e recuperá-los para a reinserção em sociedade. No entanto, identifica-se que 95% dos apenados não têm atividade laboral e 97% não têm atividade educacional, conforme dados do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sispen), de quando era ministro da Segurança Pública – a partir de fevereiro de 2018.
Uma das fontes de alimentação da superlotação carcerária e de irrigação das contas das quadrilhas do crime organizado é o mundo das drogas. Vivemos o pior cenário, já que nossa política de combate às drogas pode ser considerada falida, conforme os dados disponíveis. Eles mostram o crescimento do comércio de drogas e do número de apenados que se encontram em cadeias e penitenciárias, resultado de atuarem nessa atividade criminosa, sem que se tenha alternativas colocadas. Em vez disso, o que estamos a ver no Congresso Nacional é mais uma decisão regressiva no que diz respeito ao uso e ao porte de drogas, mesmo que consideradas leves.
Foi iniciada no dia 19 de março, no Senado Federal, a primeira sessão de debates da proposta de emenda à Constituição para criminalizar a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins, independentemente da quantidade. A PEC 45/2023 tem como primeiro signatário o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, tendo sido aprovada por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça daquela casa de leis. Não obstante o respeito à livre manifestação, o relator da matéria na CCJ, o senador Efraim Filho (União-PB) considera que deve ocorrer, para a maioria das pessoas, a criminalização pelo porte dos entorpecentes ilegais. A tese por ele defendida é que a liberação das drogas provoca o aumento de consumo. Há controvérsias e esperemos que os senadores encontrem serenidade e embasamento técnico-científico para tomarem a decisão final.
É necessária a criação do Sistema Único de Segurança Pública
Uma leitura superficial de que o sistema prisional segue sendo abastecido com pessoas apenadas poderia dar a impressão de que o sistema de segurança pública funciona, afinal retira de circulação parte dos criminosos e os submete a julgamentos e a penalidades legais. Na verdade, as quadrilhas organizadas acabam beneficiadas, porque o sistema não cumpre o papel fundamental de recuperar jovens que ingressam nas penitenciárias. Pelo contrário, os lança definitivamente na senda do crime organizado porque passam a viver sob controle das facções criminosas.
E são, geralmente, jovens considerados vulneráveis. Segundo o IBGE, no Brasil, temos 11 milhões de jovens, de 15 a 24 anos, fora da escola e fora de qualquer trabalho. Jovens dessa faixa etária matam, morrem e elevam a média nacional de homicídios; deveriam ser foco de uma ampla política, que identificasse onde se encontram e que permitisse ofertar a eles saúde, cultura, educação, lazer e emprego, ou seja, oportunidades para usufruírem a cidadania plena. Não parece ser um desafio impossível de ser superado, afinal, apenas 2% dos municípios respondem por 50% dos crimes, que acabam por envolver, sobretudo, a juventude negra, pobre e de baixa escolaridade das periferias.
Em sequência, mais um aspecto que permite o cenário ideal para a crise de segurança é a falta de uma profunda e racional reforma relacionada ao aparato policial. Temos polícias que precisam ser mais bem treinadas, persiste uma imensa disparidade em relação aos programas de formação conduzidos pelos estados. Há os que formam policiais em dois ou três meses e outros, como São Paulo, que levam mais de 12 meses.
Outra medida importante é que as polícias sejam despolitizadas, já que a atividade política é intensa no meio, haja vista a bancada que as representam no Congresso Nacional e nas assembleias estaduais. Soma-se a necessidade imperativa de que implantemos novos modelos de corregedorias que possam contar com independência, recursos materiais e financeiros, além de pessoal, para promoverem o disciplinamento e afastar maus policiais que tendem a contaminar a carreira.
Adicionalmente, seria bem-vinda uma atualização dos regimentos draconianos que orientam a ação policial, bem como merece haver investimento específico para promover a autoestima dos policiais, o que é possível com a ampla reforma das polícias, conforme mencionado.
A classe política, incluindo-se governantes eleitos, parlamentares, oposição e situação, não deve se furtar a prestar o necessário serviço à nação de guindar o tema segurança pública à prioridade. Esta é uma questão que restringe o exercício da cidadania, que prejudica investimentos, inibe a livre circulação das pessoas, corrói a democracia e desperta na sociedade o sentimento de exercer iniciativas do ‘olho por olho’ para agir contra os malfeitores e, assim, agiria como se fornecesse água para mover o moinho de potenciais governos autoritários.
A necessária centralização do combate ao crime na esfera federal, que tanto faz falta ao Brasil, poderia ser promovida por meio de emenda constitucional. É uma atitude que requer comprometimento, coragem e determinação das lideranças políticas, mas que, ao longo dos anos, não tem contado com a adesão dos governantes e disposição política para assumirem esta responsabilidade.
Uma saída para este dilema nacional seria retomar esforços iniciados no primeiro governo do atual presidente da República. Refiro-me à proposta de completa instalação do sistema único de segurança pública (SUSP), delineado à época sob coordenação do antropólogo Luiz Eduardo Soares, e que terminou sendo aprovado no governo de Michel Temer.
Pelas ferramentas que o SUSP dispõe e pelo fato de ser embasado em lei – e não apenas em planos de caráter temporário –, ele poderia se tornar a ponte para que tivéssemos uma coordenação nacional efetiva, base para a construção de um sistema sólido o suficiente para que pudéssemos enfrentar esse imenso desafio, que é a falta de segurança pública no Brasil. Esta é uma questão que está no cerne de muitos problemas que afetam a qualidade e as expectativas de vida das pessoas, o presente e a sustentabilidade que deveria assegurar um futuro promissor ao país e aos brasileiros, à vida e à democracia, antes que seja tarde.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Raul Jungmann é político, consultor e ex-deputado federal, foi ministro da Reforma Agrária no governo de Fernando Henrique Cardoso e ministro da Defesa e da Segurança Pública no governo Michel Temer
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