Sem ciência, não há futuro
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi fundada em 1948, um pouco após o fim da II Guerra Mundial, por um grupo de cientistas brasileiros que, a exemplo da American Association for the Advancement of Science, queriam somar esforços para promover o progresso da ciência no Brasil. É bom lembrar algumas datas. Em 1934, tinha sido fundada a Universidade de São Paulo, tendo como eixo articulador uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que concentraria a pesquisa básica. A USP incorporava as escolas profissionais mais tradicionais, que formavam advogados, engenheiros e médicos, mas o que dava sentido à nova instituição era essa espinha dorsal, que teria a ciência como meta – tanto assim que a FFCL congregava toda sorte de ciências. (Com a Reforma Universitária de 1970, ela daria origem a cerca de oito distintas unidades, desde a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, que ficou mais próxima do nome antigo, até os institutos de Física, Química, Biociências, Geociências, Matemática e Estatística, de Psicologia e ainda a Faculdade de Educação). Mas o relevante, aqui, é o empenho quase simultâneo dos governos paulista e federal (este, com a Universidade do Brasil, atual UFRJ) em promover a ciência como prioridade.
Outra data importante é 1951, quando com intervalo de meses, e isso menos de meio ano depois da posse de Getúlio Vargas como presidente eleito pelo povo, são criados a Capes – Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (mais tarde, de Nível Superior) e o CNPq – Conselho Nacional de Pesquisas (hoje, do Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Ou seja, a fundação da SBPC está a meio caminho entre a instituição, no Brasil, de instituições de ensino superior focadas na pesquisa, que hoje são chamadas “universidades de pesquisa”, distinguindo-se dos community colleges norte-americanos, que formam, basicamente, profissionais, e a criação de agências de fomento federais. Não podemos, aliás, esquecer que a Constituição de 1947 do Estado de São Paulo prevê a criação de uma fundação de amparo à pesquisa, o que se efetivará em 1962, com a formação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), após a qual vários estados criarão também suas fundações.
Portanto, a SBPC surge entre o vocacionamento da comunidade acadêmica brasileira para a pesquisa de rigor e a decisão política de investir na ciência. É neste período que ela nasce, e ela sempre lidará – mais do que diretamente com a ciência – com o que, numa fórmula feliz, em recente debate, Eugênio Bucci chamou de “significação da ciência”. Eu acrescentaria: ela é a voz política (o que não quer dizer partidária) da ciência.
Consciência moral do mundo acadêmico
Ao longo de seus anos, a SBPC assume também um certo papel de consciência moral do mundo acadêmico. Isto se dá em dois momentos principais: primeiro, nos últimos dez ou mais anos da ditadura civil-militar, quando suas reuniões anuais, bem como as manifestações de sua diretoria e conselho, envolvem tomadas de posição em favor do estado democrático de direito; segundo, quando os escândalos do governo Collor levam a sociedade brasileira a se mobilizar por seu impeachment, em nome do que se chamou ética na política.
Isto jamais significou, porém, que a SBPC se tornasse reduto de um partido qualquer. Por sinal, nos anos de mais intensa democracia no País – entre o mandato de Itamar Franco e o de Dilma Rousseff – a academia brasileira esteve mais ou menos dividida, essencialmente, entre os dois partidos que elegeram presidentes da República durante o referido período, a saber, o PSDB e o PT. Mas a SBPC manteve seu apartidarismo, convidando, nos anos de eleição, os candidatos presidenciais a visitarem a reunião anual, e a responderem a questões colocadas pela comunidade – o que alguns fizeram, mas não outros.
Contudo, é evidente que em momentos de crise intensa, como o atual, o papel da SBPC se avulta. Assim, os dois últimos presidentes, Helena Nader (Unifesp) e Ildeu Moreira (UFRJ), a quem sucedi este passado mês de julho, lutaram com denodo pela preservação das verbas destinadas à pesquisa e à educação, bem como pelo estado de direito.
Descaso com educação e ciência
Após este breve histórico, convém um balanço da situação atual das áreas em que a SBPC milita, que são a ciência, com ênfase na pesquisa, a tecnologia, a cultura, a educação em todos os níveis, a saúde e o meio ambiente, com uma ponte para a inclusão social. É triste notar que, nos últimos poucos anos, todas essas áreas padeceram, em mãos dos governos mais recentes, com o crescente corte de verbas representando um estranho descaso pelo potencial de desenvolvimento econômico e social que elas portam.
Na verdade, o problema não se deve apenas ao atual governo. Quando lemos os economistas que a grande mídia chama a colaborar, é raro vê-los se referirem ao fato de que, hoje, os grandes veículos do liberalismo econômico, em escala mundial, como The Economist e Financial Times, consideram que o principal fator para o desenvolvimento é a educação, com sua irmã, a ciência. Eles falam em taxas de juros, câmbio, privatização, redução de direitos trabalhistas, mas omitem sistematicamente o papel da ciência. É raro, salvo algumas exceções, apontarem que o sucateamento do sistema de educação e pesquisa que o Brasil constituiu acarretará um retrocesso enorme a nosso País.
Convém lembrar que o único nível de educação no qual o Brasil se ombreia com os países desenvolvidos é a pós-graduação, mercê da avaliação dos mestrados e doutorados realizada, há décadas, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). É justamente porque os pares examinam a qualidade dos cursos de pós-graduação stricto sensu que estes conseguiram levar nosso País à 11ª posição no mundo, em termos de produção científica qualificada. A avaliação é altamente econômica, porque ela tem um forte papel pedagógico: desde 2006, quando eu era diretor de Avaliação da Capes, adotamos as “visitas de orientação”, que são realizadas quando se vê que uma proposta de curso – ou um curso já existente – não está rendendo o que pode. Assim foi, por sinal, que na avaliação (então trienal) de 2004 e depois na de 2007, que eu dirigi, fechamos menos de 2% dos cursos avaliados, quando nas avaliações anteriores era normal se chegar a 5%. Não foi por condescendência, mas porque se procurou orientar os cursos a alinharem melhor suas linhas de pesquisa, aumentarem a qualidade de sua produção científica, qualificarem o melhor possível seus mestrandos e doutorandos.
Diga-se, aliás, que o Brasil efetuou uma escolha inteligente, quando decidiu avaliar a pesquisa a partir da pós-graduação, e não, como sucede em outros países, em separado. Isto significa que a pesquisa aqui é valorizada, também, pela capacidade que tenha o professor de formar alunos bem qualificados. Igualmente, as instituições de pesquisa se renovam, ou renovam o parque acadêmico brasileiro. O efeito dessa escolha é notável, porque estamos constantemente formando e titulando novos pesquisadores, de modo que geramos um círculo virtuoso em torno da ciência e do conhecimento rigoroso. Num país que precisa desesperadamente de mão de obra altamente qualificada, ou de inteligência embutida nos bens e serviços, formar gente é prioridade.
Protagonismo da pesquisa científica
Qual o papel da SBPC neste contexto, que reúne um passado notável, com um patrimônio científico, cultural, ambiental e educacional de qualidade, e um presente pelo menos preocupante?
É não apenas o de defender o que a natureza e a inteligência humana produziram no Brasil, mas também o de deixar bem claro, para o Estado e a sociedade brasileiras, que não haverá desenvolvimento social, nem mesmo econômico, sem o protagonismo da ciência. Num período em que o obscurantismo e o negacionismo grassam, não é esta uma tarefa fácil. Contudo, é preciso que fique muito claro não apenas para os decision makers, mas para os cidadãos em geral e para a opinião pública, que o divisor hoje entre a prosperidade e a carência está, antes de mais nada, na combinação de educação e ciência.
No pós-II Guerra Mundial, uma divisão clara de tarefas se estabeleceu, entre países exportadores de matérias-primas, atrasados, subdesenvolvidos, carentes e nações industrializadas, prósperas, desenvolvidas. A indústria era, então, o divisor de águas. Foi o que levou Getúlio Vargas a criar a siderúrgica de Volta Redonda e Juscelino Kubitscheck a promover a industrialização do Brasil, tendo como motor o carro particular. Foi a era da substituição de importações. Mas, em que pesem os méritos que devemos reconhecer aos dois presidentes desenvolvimentistas – sendo que o primeiro deles foi, como dissemos acima, o criador de Capes e CNPq – o fato é que a linha de corte mudou.
Hoje, ter apenas indústrias não distingue mais o desenvolvido do subdesenvolvido. Muitas indústrias podem simplesmente ter sido transferidas, por serem poluentes, de países ricos para outros, mais pobres e, além do mais, carentes de controles ambientais e de direitos sociais e trabalhistas. A diferença, hoje, está na inteligência embutida na produção. Mesmo a exportação de produtos agropecuários e de minerais é mais qualificada do que antes, porém a linha de corte verdadeira e decisiva é aquela que diz respeito à ciência incluída nos manufaturados e nos serviços de melhor qualidade.
Mas temos noção clara dessa mudança significativa nas sociedades atuais? Parece que pouco. Como principiei a dizer, muitos tomadores de decisão ainda seguem visões atrasadas, superadas, segundo as quais basta mexer na contabilidade que a economia melhorará, que os investimentos, como na educação e nas políticas sociais, são apenas gastos que podem ser freados sem danos irreversíveis. Fico impressionado quando lembro a foto de um recente ex-ministro do Meio Ambiente, posando orgulhoso à frente de árvores talvez centenárias cortadas, elas esperando serem transportadas para, talvez, se tornarem móveis. Quanta informação elas continham, que se perdeu para sempre? Poderiam trazer-nos dados sobre o clima ao longo dos séculos, ajudar-nos a prever mudanças que nele ocorrerão nos próximos anos, a nos prepararmos para enfrentar calamidades. Nada disso. Simplesmente, elas aparecem como meras mercadorias de baixo valor e preço, em vez da riqueza enorme que contêm.
É isso o que precisamos mudar. Sem o círculo virtuoso que reúne ciência, cultura, saúde, meio ambiente, tecnologia e inclusão social, continuaremos chafurdando no atraso. Ou o Brasil investe na inteligência, abre caminhos para que talentos ignorados e não explorados de suas populações pobres aflorem, ou perderemos, mais uma vez, o trem da História.
Neste momento, em que civilização e barbárie se defrontam, é claro que a ciência, em boa parte filha do Iluminismo, tem seu lado. Junto com os direitos humanos, outro legado das Luzes, ela pode desenhar o melhor futuro possível para o Brasil. Na verdade, não é o melhor; é o único futuro. Sem ciência e educação, não teremos futuro. A SBPC fará o possível, na gestão que há pouco se iniciou, para honrar seu passado e construir caminhos para um Brasil próspero e justo.
é presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Foi ministro da Educação do Brasil em 2015
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional