01 outubro 2009

Seria Possível uma Grande Coalizão no Brasil?

Estará esgotado o padrão pelo qual PT e PSDB se opuseram nestes quinze anos e assim deslocaram a direita da cena política principal dopaís? O preço pago por isso consistiu em dar aos partidos menos comprometidos com os valores republicanos lugares subalternos no poder de Estado. Esse preço estará ficando caro? Pode ter chegado a hora, argumenta o autor, de conceber uma difícil grande coalizão entre PSDB e PT, a fim de efetuar reformas necessárias que garantam o respeito à res publica no Brasil.

No Brasil pré-1994, muitos cogitaram uma aliança entre o PT e o PSDB para a sucessão de Itamar Franco. Por várias razões, algumas delas conjunturais – como a consolidação, em São Paulo, da candidatura a governador de José Dirceu, oposto à grande aliança, pelo PT – e outras, estruturais – a definição, pelo candidato Fernando Henrique Cardoso, de uma política econômica que se distinguia radicalmente da petista – isso não deu certo. Mas o que movia os defensores da aliança era um raciocínio simples e forte.


Tratava-se, como ainda se trata, dos melhores grandes partidos brasileiros. Naquela época, o PT demorara dez a quinze anos para se constituir como uma alternativa de poder. No ano de 1994, até a implantação do Plano Real, Lula liderava todas as enquetes de opinião para o Palácio do Planalto. Isso só se modificou em julho, quinze ou vinte dias depois da mudança da moeda e do consequente fim da inflação. A oposição de seu partido à corrupção, seu compromisso com as classes pobres, tudo isso augurava uma mudança social que seria significativa. Ora, esses dois pontos também eram essenciais para o PSDB, mais jovem – fora criado em meio à Constituinte – e que parecia ter nascido de uma cisão da esquerda do PMDB. Em face da direita ditatorial e dos grupos acusados de corrupção, as duas agremiações poderiam construir uma grande aliança do centro para a esquerda.

Não deu certo. Na verdade, a oposição entre os partidos radicalizou-se. O PSDB assumiu algumas bandeiras que Collor quisera, sem êxito ou sabedoria, implantar. Para usarmos um adjetivo de Gramsci, diríamos que Collor não soube ser “orgânico” à burguesia , enquanto FHC o soube, ou, melhor ainda, seu governo foi insider a ela. Já o PT manteve suas teses anteriores a esse namoro.

Foi muito bom, porém, mesmo para quem desejava essa aliança, que ela não desse certo. Isso porque, caso funcionasse, ela se defrontaria com uma aliança de direita. Na ocasião, o PSDB parecia só poder pleitear a vice-presidência de Lula, muito popular após a queda de Collor. Ora, é óbvio que surgiria um candidato de direita contra uma coalizão na qual a esquerda fosse hegemônica, e que essa candidatura de direita teria chances de ganhar. Com a divisão entre os dois partidos, que foi negativa para quem neles via ou vê o melhor da política brasileira, conseguiu-se assim excluir do proscênio político a direita. Nas últimas quatro eleições, nenhum candidato de direita disputou a presidência com chances de obtê-la. Esse ponto é relevante. A direita brasileira não tem, hoje, projeto próprio de país. Ela se tornou apêndice, sobretudo do PSDB, que soube ocupar o espaço que poderia ter sido do PFL, hoje DEM. Aliás, as tentativas deste último partido para se modernizar fracassaram, às vezes até por episódios tristes, como a morte de Luis Eduardo Magalhães, que poderia ter sido presidente da República, com o PSDB apoiando-o para o mandato seguinte ao de Fernando Henrique – ou por episódios mais complexos, como o da destruição da candidatura presidencial de Roseana Sarney, em 2002.

Assim, para quem se coloca numa posição entre o centro e a esquerda, temos um balanço positivo e um negativo da não-aliança entre PT e PSDB em 1994. A vantagem foi que esses dois partidos assumiram a liderança política do País.

Alternaram-se no poder, que ocuparam em quatro eleições sucessivas. Desde a normalização do País , a presidência da República esteve com um dos dois. A desvantagem foi que cada um deles teve de se aliar a partidos bastante criticados pela opinião pública. Numa frase atribuída a Fernando Henrique, eles têm disputado quem irá liderar o atraso. Se enfatizarmos o verbo, diremos que ter lideranças como as desses dois partidos foi bom. Se enfatizarmos o objeto direto, diremos que não foi bom os dois partidos se atarem ao atraso. Dependendo do ponto de vista, entenderemos que lhe deram sobrevida ou que reduziram significativamente sua importância.

O caso interessante é o do prócer baiano Antônio Carlos Magalhães. Num debate durante a campanha de 1994, a economista Maria da Conceição Tavares, que apoiava Lula, apostrofou um interlocutor – proveniente da esquerda – que defendia FHC: “Você acredita que Fernando Henrique vai conseguir mandar em ACM?!” Para ela, e muitos outros, era óbvio que o velho líder da direita teria o poder, enquanto o presidente ocuparia apenas o governo. Algum tempo depois, quando ACM presidia o Senado e seu filho Luís Eduardo, a Câmara, a revista Isto É publicou uma capa em que mostrava os dois, junto com o presidente já empossado da República, sob o título “O pai, o filho e o espírito santo”. Ainda no primeiro mandato de FHC, Magalhães deu uma entrevista à Revista da Folha em que elogiava o presidente, mas fazia uma reticência séria: Ele não tinha uma biografia boa, foi cassado e se exilou – ou seja, o fato de Cardoso ter sido perseguido pelo regime militar soava, aos ouvidos do líder da direita, como demérito. Contudo, mais para o final do segundo mandato de FHC, ACM começaria a reagir às políticas do governo comentando apenas se eram boas, ou não, “para a Bahia”. Tinha aceitado a posição de líder apenas regional. Abrira mão de projetos nacionais. Curiosamente, na sucessão de 2002, José Serra, candidato do governo à presidência, usaria como elemento positivo de sua biografia o fato de ter sido perseguido político – justamente aquilo que ACM, anos antes, depreciara em Cardoso. Poder-se-ia, é claro, discutir em que medida a perda de poder do político baiano se deveria à morte precoce e chocante de seu filho e herdeiro. Contudo, de um ponto de vista mais amplo, outra liderança poderia ter ocupado o lugar de Luís Eduardo. Tal não se deu.

Um balanço dos últimos 16 anos

Coincidência ou não, tivemos dezesseis anos de razoável tranquilidade política, sem nenhuma suspensão de direitos, sem nenhuma crise institucional que pusesse efetivamente em risco os poderes da República. Mais que isso, tivemos dois presidentes sucessivos que se destacam no contingente de nossos chefes de Estado. Mesmo que outros governantes, como Vargas ou Kubitscheck, se equiparem a eles, nunca tivemos antes dois presidentes sucessivos gozando da reputação internacional de Fernando Henrique e Lula, um como intelectual renomado, outro como homem do povo que efetuou grandes mudanças na polity brasileira.

Contudo, a empanar esses quatro mandatos consecutivos, fica a questão das alianças que firmaram. As alianças do PSDB contradizem as razões mesmas que foram alegadas para ele se separar do antigo PMDB. As alianças do PT entram em conflito com o histórico de forte honestidade que o partido construiu ao se erguer das bases da sociedade brasileira. Tendem, os simpatizantes de um e de outro, a lançar a culpa de seus malfeitos sobre os aliados. É claro que cabe a pergunta se, de fato, os culpados são “os outros”, isto é, os partidos com quem tiveram de se aliar, ou mesmo a realidade política de um país em que, para governar, é preciso um leque amplo e duvidoso de acordos. Tanto o assim chamado “mensalão”, do lado do PT e com raízes no PSDB mineiro, quanto os vínculos do PSDB, e de alguma rara figura petista, com um poderoso banqueiro p
rocessado a partir da Operação Satiagraha, suscitam em alguns a pergunta se de fato os dois partidos são melhores, eticamente, que a média. Estou assumindo que sim.

As questões que formulo aqui são várias, mas articuladas entre si. Primeira, terá chegado um momento em que as desvantagens do conflito superam as suas vantagens? Isto é, ainda haverá uma vantagem em termos, capazes de competir pela direção do País, dois partidos comprometidos com o Estado de direito e com os valores mais modernos da política, em vez de estarmos ameaçados pelos defensores do autoritarismo, do paternalismo e da repressão – ou o custo de incluir, embora em posições bem menores no Estado, os partidários dessa velha política (autoritária, repressiva, paternalista) se terá tornado grande demais? O Brasil conseguiu uma calma institucional e foi capaz de superar os legados da ditadura em boa parte porque os veteranos dela acabaram sendo cooptados em posições secundárias.

Muitos deles até cooperaram com os dois partidos principais; basta olhar a relação dos ministros e dos líderes no Congresso. Um velho e sábio adágio recomenda que é melhor ter o inimigo (ou a ameaça) perto de você, sob seu controle, do que longe e fora de suas vistas. Contudo, as crises no comando do Congresso, nestes últimos anos, tornam arriscado dizer que ainda é compensadora essa participação subalterna do velho Brasil. Isso aconteceu já no final do governo FHC, quando dois presidentes do Senado foram levados à renúncia, para não perderem o mandato; no governo Lula, quando o presidente da Câmara eleito pela oposição foi também conduzido a abrir mão de seu mandato, para – também ele – não ser cassado; está sucedendo enquanto escrevo, quando o ex-presidente José Sarney, por ter sido eleito para dirigir mais uma vez o Senado, está sendo investigado e corre o risco de, já entrado nos anos, deixar uma biografia marcada por um final ruim e não pelo seu papel na transição democrática de 1985-1990. Também enquanto escrevo, sai a notícia de que a Câmara pediu ao Ministério da Saúde uma quantidade de remédios contra a influenza, furando a fila usual e rompendo com os princípios de igualdade perante a lei.

A imagem do Congresso está tisnada. É de notar que em quase nenhum desses casos o líder parlamentar ou o presidente de casa do Congresso posto em causa pertence a um dos dois partidos – são sempre seus aliados. É verdade que Severino Cavalcanti, o defenestrado presidente da Câmara, foi eleito contra o PT e a partir de uma articulação que teria sido comandada pelo próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e que José Sarney foi eleito contra uma rara aliança PT–PSDB; é verdade também que, contestados um e outro, o PT, que não votara em nenhum deles, apoiou-os, mesmo a contragosto, a pretexto de garantir a governabilidade.

Mas essas ressalvas finais apenas mostram quão complicado ficou o quadro político, sobretudo parlamentar. No Executivo, houve escândalos no segundo e terceiro ano do governo Lula, como tinha havido no período de Fernando Henrique, mas até hoje nenhuma decisão judicial condenou os acusados, mesmo que tenham perdido os cargos na Esplanada. Resumindo, o problema é que esse sistema pelo qual alianças com “o atraso” garantem a liderança pelo “avanço”, e excluem “o atraso” do protagonismo político, acabou gerando, na opinião pública, uma enorme decepção com os políticos e a política em geral. A sensação dominante é que os políticos não prestam. Evidentemente, no interior do PT como no do PSDB há os que condenam com ódio e veemência o partido adversário, mas o fato é que a imagem de todos os partidos se viu bastante prejudicada.

Este seria um argumento para uma grande coalizão dos dois partidos, com a finalidade de promover as reformas que assegurassem uma política mais republicana em nosso país, sempre partindo do pressuposto de serem eles os dois partidos mais empenhados nas causas democráticas, na luta contra a ditadura, na mudança em nossos mores. Em outras palavras, afastado o perigo de uma candidatura competitiva da velha direita à presidência – como teriam sido, em outra época, Maluf ou Antônio Carlos Magalhães – as vantagens de colocar essa velha direita em posições subalternas e controladas estariam sendo menores do que a imagem poluída da política. Suas posições seriam talvez subalternas, mas não propriamente controladas; elas marcariam com seu timbre o conjunto todo da política nacional.

Mas seria viável essa aliança? Quando ouvimos música clássica, sabemos que o volume do rádio aumenta e diminui muito mais do que na música popular. Há momentos em que mal se ouvem os instrumentos, e outros em que eles ribombam. Por isso mesmo, ouvir música erudita em veículos em movimento, sejam carros ou aviões, ou na rua é mais difícil do que escutar a música da indústria cultural, que costuma manter um volume mais homogêneo. Valha esta analogia para a política: a melodia que trauteiam PT e PSDB nunca esteve tão próxima; no entanto, o ruído de fundo, que a abafa quando estamos em público, faz que os dois partidos e seus simpatizantes se movam com raiva por vezes muito grande.

Convergências em várias áreas

Já na graduação, porém, a avaliação foi forte ponto de atrito, no governo Fernando Henrique, entre seus partidários e a então oposição. Os tucanos eram favoráveis à avaliação. A construção de um sistema poderoso de indicadores foi um dos principais feitos do Ministério da Educação naquele período, bem como a instituição do Exame Nacional de Cursos, o “provão” – ante forte resistência dos que gravitavam em torno do PT. Contudo, o governo Lula manteve e acentuou o compromisso com a avaliação na própria graduação e nas instituições de ensino. A principal mudança no “provão” foi a introdução de um elemento que permita apreciar o que o curso agrega ao aluno – isto é, avalia-se o conhecimento do aluno ao ingressar no curso e ao sair dele.

Evidentemente, esse elemento favorece as instituições de menor tradição e em especial as privadas, o que parece contradizer o compromisso preferencial do PT com o setor público, mas é extremamente justo, porque permite aferir se elas aumentam ou diminuem a qualidade do aluno. Assim, numa hipotética escala de 0 a 100, se a USP, dado o seu renome, recebe os melhores alunos (digamos, com nota média 50) e uma instituição privada pouco conhecida matricula os que teriam média 35, se ao final de quatro anos os alunos daquele curso na USP tiverem nota 55 e os da privada, 45, ver-se-á que a USP agregou 10% de conhecimento e a outra instituição, 30%. Ou até se pode imaginar outro caso: a USP recebe uma turma de alunos com média 50 e os forma com média 45, enquanto outra instituição os acolhe com média 30 e os titula com 40. Embora em números absolutos os formandos da USP ainda tenham nota final superior, o fato é que eles teriam desaprendido 10%, enquanto os da privada aprenderam 33%. São casos hipotéticos, mas que aprofundam a avaliação iniciada no governo anterior. O ponto que continua falho no provão diz respeito à não-responsabilização dos alunos pelo resultado obtido. Como sua nota não consta de seu diploma, e além disso o exame se faz por amostragem, eventuais – embora minoritárias – decisões de turmas inteiras no sentido de boicotar a prova, seja por razões políticas, seja por vingança contra algum professor, prejudicam a instituição avaliada mas não o aluno avaliado .

Da mesma forma, exames como a Prova Brasil e a Provinha Brasil, somados ao ENEM, permitiram cobrir praticamente todo o leque do ensino brasileiro. A decisão, que o MEC tomou depois de intensa discussão interna, de colocar na rede o resultado que cada estabelecimento obteve na avaliação de seus alunos no ensino médio, acarretou uma emulação que obviamente é positiva, não só entre os que disputam os primeiros lugares, mas também entre as escolas públicas, mais fracas, mas dentre as quais algumas se sobressaem e passam a funcionar como exemplos de boas práticas.

O interessante é que, com isso, a distância entre os dois partidos se reduziu muito, num ponto que antes causava grande atrito. Se o PSDB esposou desde cedo a causa da avaliação, e a militância petista lhe era contrária, hoje os dois partidos – em que pese o descontentamento que persiste em alguns setores do petismo – têm uma política convergente no que tange à avaliação e à maior parte dos seus usos. A grande diferença que resta reside na preferência do PT pelo setor público e do PSDB pelo privado; e na convicção, maior entre os tucanos, de que o aumento salarial dos professores não é a chave decisiva para a melhora na qualidade do ensino.

Também podemos dizer que o PT foi mais hábil, ao não confrontar, por exemplo, a União Nacional dos Estudantes, que apesar de discordar de várias políticas do atual governo foi apaziguada mediante concessões em pontos que lhe são programáticos. Por outro lado, deve haver, no PSDB, uma certa mágoa por ver o PT adotar e mesmo radicalizar, uma vez no governo, políticas que ele antes atacava e que, por isso mesmo, os tucanos tiveram certa dificuldade em implantar. Mas o fato é a convergência. Hoje, as principais forças políticas do País concordam na maior parte do diagnóstico e mesmo das prescrições a seguir para melhorar a educação.

Seria esse um bom exemplo de convergência? Poderíamos também analisar os últimos meses do governo FHC, em que a economia brasileira e as próprias finanças do governo estiveram em má condição. Há duas interpretações para isso. A do PT responsabiliza, obviamente, quem estava no poder. Já a do PSDB acusa o PT: o receio dos mercados, nacionais e internacionais, de que assumisse a presidência um partido irresponsável, que não cumpriria os compromissos do País, teria feito despencar as condições econômicas do Brasil, aumentando nosso risco de investimento. Embora eu pessoalmente considere um tanto estranho quem está no poder culpar a oposição pelo que dele depende, vou assumir, só para efeito de argumentação, que a tese tucana esteja certa. Nesse caso, o que temos é que o PT deixou, a partir da Carta aos Brasileiros publicada durante a campanha, de ameaçar o cumprimento dos contratos. Pode ter demorado a convencer o patronato. Mas o fato é que, se até 2002 se podia considerar que apenas pouco mais de metade da população votava em partidos favoráveis a um ambiente business-friendly, hoje esse é o caso talvez de 90% da população. Não há mais partidos importantes, no Congresso, que defendam a revisão radical dos compromissos econômicos do País. Isso é bom?

Pode ser injusto. Uma cláusula da Constituição de 1988  mandava auditar a dívida externa, a fim de segregar a parte dela devida à corrupção e a atos do poder ditatorial, pelos quais o povo brasileiro não poderia nem deveria, segundo a boa tradição jurídica, responsabilizar-se. Essa auditoria não ocorreu e, se ocorresse, causaria pânico. Seria justa, mas poderia gerar instabilidade. Ora, é essa instabilidade que parece excluí¬da de nosso quadro eleitoral. Esse é mais um ponto de aproximação entre os dois partidos.

O porquê e a agenda de uma coalizão

Num ambiente político em que tudo pode mudar a qualquer instante, é difícil efe¬tuar previsões – e não é este o nosso propósito. A posteriori, a eleição de Lula em 2002 parece ter sido inevitável, mas em começos daquele ano algo que sempre me pareceu muito improvável, que seria uma eventual vitória de Roseana Sarney, então no PFL, esteve no horizonte por algumas semanas. Acontecimentos políticos, alguns dos quais traumáticos, culminaram no que parecia lógico, o embate final entre PT e PSDB, mas que só é lógico ex post facto. Por isso mesmo, concluo com apenas três considerações, nenhuma das quais é previsão.

A primeira é que uma aliança dos dois partidos é muito difícil. Mas já não o é tanto por oposições programáticas, e sim por outras razões: i) embora continue havendo diferenças de programas, hoje ambos disputam um espaço mais próximo, que politicamente é o do centro, economicamente é o do apoio empresarial às campanhas, depois das eleições é o da ocupação de cargos, e então o caráter de disputa política cedeu espaço ao de disputa por espaços. Em termos sociológicos, diríamos que uma análise como as de Pierre Bourdieu, que descria dos grandes slogans na disputa política e acreditava que, por trás deles, prevalecia a luta pelos lugares, tem mais cabimento hoje do que dez anos atrás; ii) paradoxalmente, isso pode explicar o caráter quase histérico da disputa política, tanto no Parlamento quanto na imprensa e mesmo na opinião pública: justamente quando os dois principais partidos se veem envolvidos, por exemplo, nas práticas chamadas de “valerioduto”, é que cada um trata de lançar a culpa no outro e de ignorar sua responsabilidade. Se tiver razão, a veemência das opiniões contra um e contra o outro pode ser mais uma cortina de fumaça do que uma real oposição entre os lados, que teria diminuído; iii) com isso, continua sendo mais vantajoso para os dois atores colocar aliados em posições secundárias do que ter de abdicar da posição principal. Em outras palavras, mesmo que em fins de 2010 venha a parecer óbvio que só podia mesmo ganhar aquele que terá vencido as eleições, hoje os dois lados se sentem em condições de deter a hegemonia, e no presidencialismo é muito difícil compor uma grande aliança após as eleições.

Já na Alemanha Federal, parlamentarista, por exemplo, os exemplos de grandes coalizões – entre a CDU e o SPD – se deram sempre depois do pleito, ao se perceber que nenhum deles tinha a maioria absoluta, e que mesmo o apoio de partidos menores não seria suficiente ou seguro para garantir o equilíbrio governamental.

Assim, a disputa eleitoral não impedia que, depois de terminada, os partidos se acordassem entre si. No Brasil, porém, esse papel de composição cabe sobretudo ao PMDB, o qual, antevemos, é quase certo que esteja no próximo governo, seja ele qual for, mesmo que nem todas as suas alas nele estejam; ao DEM, que certamente cooperará com um governo tucano; e a vários partidos menores, alguns dos quais só colaborarão com o PT (p. ex., o PCdoB) e outros só com o PSDB (é o caso do PPS), mas alguns dos quais podem indistintamente cooperar com um ou outro. O que não se imagina, pelo menos hoje, é que, terminada uma campanha essencialmente entre PT e PSDB, os dois formem um governo juntos. Penso que há uma certa pena nisso. O voto popular poderia definir quem teria a hegemonia, mas não implicaria a exclusão do vencido.

Esse talvez seja um ponto que precisa ser redesenhado na política. Esta é pensada – mundialmente – como um processo de legitimação do vencedor e de exclusão do vencido, mesmo quando as metáforas, caras a Carl Schmitt, do inimigo e da guerra cederam lugar, na democracia, às do adversário e do rival, a quem queremos derrotar, mas não matar. Penso que deveríamos passar a entender que a disputa democrática define uma hegemonia, mas que os vencidos, ou colocados em segundo lugar, não deveriam ser excluídos. Deveríamos substituir a lógica da exclusão pela da cooperação sob uma liderança. É difícil, mas não impossível.

Imaginemos então qual seria a agenda comum entre PT e PSDB. Deveria ser uma agenda provisória, tratando dos pontos de convergência, sem esquecer – no espírito das grandes coa¬lizões alemãs – que se vai depois à disputa eleitoral. Nas coalizões díspares que temos tido, reconhece-se aos partidos menores o direito de disputar em separado as campanhas locais. Assim sucedeu que, em Pernambuco, pelo campo atualmente governista, se opusessem em 2006 um candidato do PT e um do PSB, no primeiro turno; já no segundo turno, o PT apoiou o PSB, que acabou vencendo. Numa coalizão equilibrada, “grande”, a disputa se daria não só nas campanhas locais, mas também na nacional. Tal coalizão, altamente improvável, dificilmente passaria, pois, de três anos. Mas mesmo assim pode ser interessante pensar nela.

Que agenda se teria? Deveria ser uma agenda de reformas rápidas e necessárias. Deveria ser uma forma de lancetar abscessos. O mais evidente é o da contaminação da política pelo financiamento das campanhas. Há quase um consenso de que nosso sistema político favorece a corrupção. É o que chamei a corrupção pós-moderna: tivemos uma corrupção antiga, que era a dos costumes, censurada pelos austeros, e que hoje mudou de nome, chamando-se agora liberdade de costumes; tivemos e temos uma corrupção dominante nos últimos séculos, que é simplesmente a apropriação privada de recursos públicos, e que é a mais visível no Parlamento, mas não necessariamente a mais perigosa; e temos uma terceira corrupção, que é conduzida, para nosso pasmo, até mesmo por pessoas honestas. É a corrupção necessária para um partido poder conduzir sua campanha eleitoral . Nem sempre assume todos os traços da corrupção. Darei dois exemplos delicados.

Recentemente, uma senadora relatou medida provisória que afetava a área da agricultura, a cujos interesses empresariais ela está ligada. Como isso é de conhecimento público, os protestos contra sua indicação como relatora foram de ordem política, mas não puseram em xeque sua decência e honestidade pessoal. Contudo, se um ministro de Estado ou, pior ainda, um juiz ou ministro do Supremo fosse assessorado, numa decisão sobre o mesmo assunto, pelo respectivo setor empresarial, seria indecente. A pergunta é óbvia: por que a presença de interesses econômicos no Legislativo é aceitável, no Executivo é contestável, no Judiciário é indigna?

Questionemos agora o caso dos interesses no próprio Legislativo. Sabe-se que, nas Câmaras Municipais, uma das principais tarefas legislativas é a de votar leis de zoneamento. Essas atendem a interesses nem sempre limpos. Há um consenso de que é ilegítimo um vereador receber dinheiro de quem vai lucrar com uma mudança no zoneamento. Mas qual a diferença conceitual entre esse caso e o de qualquer parlamentar que é financiado por aqueles cujo interesse vai, depois, defender? Eu não saberia responder aqui, a não ser com algumas considerações bem vagas e genéricas sobre a transparência ou não do financiamento e das medidas que o legislador proponha ou apoie.

Ora, diante do problema que é o financiamento das campanhas, temos duas propostas conflitantes. Uma delas é a do PT e do DEM: voto proporcional em lista fechada. Mantém-se o sistema brasileiro da proporcionalidade nos legislativos, mas os candidatos param de disputar entre si aos olhos do eleitor (sua disputa se dá junto aos filiados do partido ou à sua convenção). Outra é a do PSDB: sistema distrital misto. Supõe-se que metade dos cargos nas Câmaras e Assembleias seria preenchida por voto em distritos, e a outra metade pelo voto proporcional. Não está claro se a proporção da segunda metade seria defini
da a partir dos votos dados nos distritos, corrigindo assim suas distorções, ou se seria um segundo voto, que poderia ser diferente do primeiro. Mas as duas propostas conflitam entre si, e os defensores de uma e outra têm trocado acusações pela imprensa.

Não seria o caso de definir a necessidade da mudança e comprometerem-se, os empenhados no combate à corrupção, em apoiar a proposta que tiver maior apoio no Congresso – ou na população – mesmo que não fosse a deles? Não se poderia firmar um compromisso pelo qual a finalidade, isto é, uma reforma política hostil à corrupção, seja mais importante do que os meios, isto é, a reforma A ou B? Evidentemente, um acordo nesta direção nem exigiria uma divisão de cargos no Poder Executivo. Ele poderia dar-se no âmbito do Legislativo. Mas esse é apenas um exemplo de medidas que poderiam ser tomadas por uma grande coalizão.

Terminar o que começamos ou saltar para o futuro?

Outro ponto que merece consideração é que parece quase certo que o próximo presidente da República não terá o carisma de Lula nem a projeção de Cardoso. Nossos dois chefes de Estado mais recentes conseguiram um nível de liderança de que os candidatos hoje favoritos não parecem dispor.

Teremos um presidente mais “normal”, digamos, talvez mais próximo da gestão e mais distante da formulação de grandes políticas. Note-se que, sempre ficando nos favoritos, nenhum deles tem a capacidade de fala e de persuasão de Lula ou de FHC. Os dois presidentes souberam construir um apoio na sociedade bem superior ao que tiveram nos partidos. É possível que o novo presidente seja mais o chefe de Estado do que um líder nacional, mais um articulador de partidos do que da sociedade. Se isso é bom ou não, é uma coisa. O fato é que, se assim for, mudará o perfil da presidência.

O último comentário diz respeito à possível candidatura, que estes dias em que escrevo desponta, da senadora Marina Silva à presidência da República pelo Partido Verde. Embora pareça ser uma candidatura para marcar posição e não para vencer, um projeto para o longo e não o curto prazo, o fato é que ela abre um aspecto que estava imprevisto quando comecei este artigo: pode ser que tenhamos uma campanha de verdade. Se as questões não só do meio ambiente, mas do Brasil como potência ambiental (e não apenas agrária, econômica ou industrial) empenhada num projeto sustentável de sociedade, entrarem decididamente em cena, as questões a serem debatidas não serão as dos meios mas as dos fins. Em outras palavras, os candidatos até hoje favoritos divergem no tocante a meios, não tanto no que respeita a fins. Disputam quem será o melhor gestor, mas não questionam o primado da produção, o papel do setor empresarial, a necessidade de melhorar a educação e a saúde. Não discutem nem mesmo mudanças importantes no que significa, por exemplo, “educação” ou “saúde”. Talvez por isso sua convergência seja maior. Talvez por isso só valha a pena um deles vencer se for para termos uma grande coalizão que efetue reformas urgentes embora de dura negociação. Talvez, se não for para termos essa difícil grande coalizão, seja bom começarmos a pensar a política e a sociedade numa nova chave. Em suma, minha posição pessoal é que ou aproveitamos as convergências existentes para encerrar um ciclo de problemas no país e criar as bases, acertadas entre partidos basicamente decentes, para avanços posteriores – ou já partimos para definir um futuro que é bem diferente do que tivemos, até agora, como modelo de política. Pessoalmente, prefiro ir para o futuro. Mas seria bom se pelo menos completássemos o que nosso país deixou incompleto. Como disse, nada disso é previsão. São só considerações.


É professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de S. Paulo (USP). Professor visitante na Universidade Federal de S. Paulo (Unifesp). Foi ministro da Educação no governo de Dilma Rousseff (2015).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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