SUS do século 21 será cada vez mais digital
A realização do “digital” não consiste simplesmente na inovação dessa ou daquela tecnologia tal como está sendo orientada pelas atuais – e dominantes – forças políticas e econômicas transnacionais. Consiste na crítica capaz de produzir uma “transformação” do que entendemos como “saúde digital”, para que essa ideia se realize como veículo de “transformação” da realidade. Esta “transformação”, empreendida em nome da crítica ao digital, será a própria realização da “saúde digital”; não mais como uma mercadoria embalada e importada ao gosto do consumidor, mas, sobretudo, como um novo conceito. Dito de outro modo, sob um novo projeto técnico, político, econômico, social, cultural e ético.
O terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, iniciado em 2023, introduziu uma série de inovações, entre as quais a criação de secretarias em diferentes ministérios e a reconfiguração da estrutura de governança com vistas à transformação digital, no contexto digital-cognitivo que caracteriza a sociedade contemporânea do conhecimento.
A Secretaria de Governo Digital (SGD/MGI) foi estrategicamente reposicionada no Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, tendo entre suas prioridades consolidar a plataforma gov.br. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação criou a Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Transformação Digital; o Ministério da Justiça acaba de criar a Secretaria de Direitos Digitais; e a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) criou a Secretaria de Políticas Digitais.
Já o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), vinculado à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República (SRI), criou cinco comissões temáticas, apontando para as prioridades em sua atuação: Assuntos Econômicos; Combate às Desigualdades; Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Democracia e Direitos; e Tecnologia e Transformação Digital.
Sem paralelo na América Latina
O Ministério da Saúde inovou e criou, de forma inédita na América Latina, a Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI). Os três departamentos que a constituem já existiam na estrutura do ministério, porém nunca haviam atuado de forma integrada, e retratam a abrangência e o escopo com que a saúde digital passa a ser considerada.
O Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), com 35 anos de existência, gerencia atualmente em torno de 360 sistemas de informação em saúde. O Departamento de Monitoramento, Avaliação e Disseminação de Informações Estratégicas (DEMAS), criado em 2011, na Secretaria Executiva, recupera este ano sua missão original de cuidar da integridade dos dados; tratá-los, promover uma política de dados abertos e transparência ativa; elaborar os painéis de indicadores de monitoramento e avaliação, junto com as diferentes áreas finalísticas do Ministério da Saúde; bem como alimentar as informações de saúde para a Casa Civil e a Presidência da República.
O terceiro e mais jovem Departamento de Saúde Digital e Inovação (DESD), criado em 2019, só este ano passa a atuar com uma política clara de resgate e apoio à telemedicina e à telessaúde e no fomento à inovação em saúde digital.
Chegamos ao final do primeiro ano da SEIDIGI com a telessaúde no SUS implementada em aproximadamente 1.400 municípios, passando de dez para 24 Núcleos de Telessaúde em funcionamento, realizando 950 mil telediagnósticos.
Na parceria com o Ministério das Comunicações, por meio do Programa Norte Conectado, a inauguração das infovias, implantando cabos de fibra ótica de internet banda larga, subaquáticos, que seguem o leito dos rios, vai aumentar o acesso às ações de saúde nas regiões mais remotas e isoladas do país. Recentemente, foram implementados os pontos de telessaúde em Roraima, na Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) Yanomami e na CASAI Leste, em parceria com a Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI).
Resgate de 143 indicadores de saúde
A Rede Interagencial de Dados em Saúde (RIPSA) foi retomada e agora constitui-se de 43 instituições com expertise na área, entre as quais o IBGE e o IPEA, ligados ao Ministério do Planejamento e Orçamento, e 18 universidades públicas. A RIPSA está resgatando a série histórica de 143 indicadores de saúde, descontinuados entre 2017 e 2022.
O prontuário eletrônico está implementado em aproximadamente 77% das cerca de 48 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS) do SUS distribuídas por todo o Brasil. A parceria estabelecida entre o Ministério da Educação, por meio da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), o Ministério da Saúde, o Conselho de Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) permitirá a oferta do prontuário eletrônico AGHUx, já adotado por 41 hospitais universitários federais, sem custos adicionais para todos os hospitais do SUS.
A Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) é a plataforma de interoperabilidade — padrão FHIR, recomendado pela Organização Mundial da Saúde — adotada pelo Ministério da Saúde, que garantirá a concretização do prontuário eletrônico único de saúde, ao alcance de cada cidadão e cidadã, integrando a atenção à saúde, permitindo a integralidade e a continuidade do cuidado, onde quer que ele seja realizado: na atenção primária, especializada ou hospitalar, em diferentes estados ou municípios, na rede de serviços do SUS ou na rede de saúde suplementar.
A Quarta Revolução Industrial em curso, também chamada de Indústria 4.0, traz mudanças para a forma como produzimos, consumimos e nos relacionamos. Marcada pelo desenvolvimento acelerado das tecnologias digitais, vem transformando várias esferas da vida em sociedade. O SUS do século 21 também: ele vem e virá cada vez mais digital. A Reforma Sanitária deste século também será a digital.
Terra, trabalho, dinheiro e dados comportamentais
Entre os desafios do Ministério da Saúde com a SEIDIGI, emprestando as palavras do pesquisador Guilherme Hummel, está o de “entender e moldar o bioma saúde no seu cruzamento com a biosfera digital”. Não se trata apenas de imergir-se na transformação digital já em curso, movida por forças e usos das mídias digitais a serviço do capitalismo de vigilância. Na definição de Shoshana Zuboff, o capitalismo de vigilância caracteriza-se pela monetização de dados adquiridos por vigilância. Da “acumulação primitiva” à “expropriação digital”, a pesquisadora acrescenta um item à lista de mercadorias fictícias: terra, trabalho, dinheiro e dados comportamentais.
Não podemos esquecer que a referência internacional de um país que aproveita plenamente suas potencialidades digitais é a Estônia, que ligou todos os seus bancos de dados a partir de dois princípios: primeiro, ninguém deve precisar preencher duas vezes os mesmos dados, ainda que seja em plataformas diferentes (que, portanto, deverão “conversar”); segundo, nenhum dado pessoal será acessado sem a permissão do interessado. Assim, os exames e laudos médicos poderão ser consultados, independentemente de onde foram realizados, mas se o paciente não quiser que se saiba de uma doença que teve ou de uma intervenção que sofreu, é seu direito preservar sua intimidade.
Com esta ressalva importantíssima, que garante a privacidade do cidadão, torna-se possível poupar a energia e o tempo de cada um a cada vez que se pede um documento ou se realiza um trâmite administrativo — se for o caso, também no setor privado. Os ganhos de agilidade repercutem na economia, calculando-se, dez anos atrás, que teriam implicado uma economia de 2% do PIB estoniano.
Avanços dessa monta podem e mesmo devem começar pela saúde, embora o ideal seja se fazer uso de todas as potencialidades positivas da digitalização para, ao mesmo tempo, dar aos cidadãos acesso às ações decorrentes de políticas públicas e garantir a maior eficiência destas. Porém, dada a capilarização do Sistema Único de Saúde (SUS) e a importância deste para a sociedade, parece-nos relevante começar por ele.
Referências bibliográficas
BRASIL. Decreto nº 11.709, de 28 de novembro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11798.htm#art5.
HUMMEL, G. Patient engagement 5.0: habitus-digital da saúde no século XXI. 1. ed. São Paulo: Scortecci, 2023.
LUCAS, R. Origem e limites do capitalismo de vigilância. Tradução de Simone Paz. Outras Palavras, 3 fev. 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/origem-limites-do-capitalismo-de-vigilancia/.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Informação e Saúde Digital. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/seidigi.
BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Ministério da Gestão lança publicação sobre a criação do aplicativo SOUGOV.BR. Disponível em: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/ministerio-da-gestao-lanca-publicacao-sobre-a-criacao-do-aplicativo-sougov.br.
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