Um Novo Modelo para as Concessões no Setor de Energia Elétrica
A recente mudança no regime das concessões no setor de energia elétrica reacende um debate histórico sobre a maneira de tratar este tema que divide opiniões desde o projeto do Código de Águas, organizado em 1907, pelo professor Alfredo Valadão.
A forte vinculação da energia elétrica e do seu preço às condições de vida e ao ânimo dos seus usuários finais – que são também contribuintes e eleitores – tem feito que governos exerçam forte interferência neste setor. No Brasil, isto foi reconhecido em artigo da Constituição Federal, ao atribuir à União a competência em sua exploração direta ou por concessões.
Ao longo de um século, tem-se verificado que os governos alternam suas atitudes. Ora se voltam para o aumento da presença do Estado nesta atividade econômica, ora procuram ser mais pró-mercado. Na maioria das vezes, as ações de governo comprometem o caráter empresarial do setor, que deveria orientar a exploração de atividade econômica.
A intervenção governamental faz com que os contribuintes acabem pagando, em médio prazo, sob a forma de subsídios, inflação ou falta de energia de boa qualidade, as benesses que governos – de olho no interesse imediatista de seus eleitores – anunciam com espalhafato.
No caso brasileiro, por questões inerentes à forte presença de recursos hídricos, as concessões de geração vieram a envolver uma discussão mais ampla: a apropriação de recursos naturais e intervenção no ambiente físico e social. As concessões de transmissão e distribuição, inicialmente tratadas em conjunto, com o tempo foram individualizadas.
Recentemente, novas tecnologias passaram a permitir ao consumidor adquirir energia diretamente da fonte geradora e pagar “tarifas-fio” a transmissores e a distribuidores. Há, mesmo, possibilidade de os consumidores instalarem equipamentos de autogeração e fornecerem excedentes para serem injetados na rede, tornando o tal consumidor também fornecedor. Com isso, desenvolveu-se uma intensa atividade de comercialização de alta atratividade para os consumidores que podem desfrutar dos benefícios da maior competição.
O presente artigo sugere inovações no tratamento do modelo das concessões, especialmente as de geração hidrelétrica.
Histórico
As concessões para o serviço de eletricidade foram disciplinadas em 1934 pelo Código de Águas, de inspiração socializante e centralizadora, produto típico do regime de então.
O código, que encerrou a cláusula-ouro que protegia as tarifas da inflação, produziu efeitos negativos sobre os investimentos setoriais, na época totalmente a cargo de empresas privadas.
Com isso, a partir da década de 1950, ocorreu forte queda de qualidade no atendimento ao mercado que fez com que as mentalidades se voltassem contra as empresas concessionárias, consideradas culpadas pela situação. Tudo isso se deu em um momento em que, na Europa, avançava a estatização pela necessidade de se alocarem grandes capitais na reconstrução rápida dos parques produtores que haviam sido destruídos na guerra.
O Decreto 41.019 de 1957 (marcando o fato que o Código levou 23 anos para ser regulado), elaborado por José Luiz Bulhões Pedreira (mais tarde coautor da Lei das Sociedades Anônimas), proporcionou um melhor ambiente jurídico para o desenvolvimento setorial.
Nesse contexto de aumento de presença do Estado, há a criação da Chesf, do BNDE e, em 1962, da Eletrobras. Os recursos vinculados “Fundo Federal da Eletrificação”, “Empréstimo Compulsório” e “Imposto Único” viabilizaram grandes investimentos em geração hidrelétrica por meio de empresas como Chesf, Furnas, Cemig e outras, para esse intuito criadas.
Há que se registrar, neste momento, a ação destacada de líderes setoriais como Lucas Lopes, Mauro Thibau, Dias Leite, Lucas Garcez, Mario Bhering, John Cotrim e João Camillo Penna, entre outros, cujas atuações são bem descritas em vários livros e artigos. Tais líderes do setor elétrico conseguiram formar estatais operando por critérios de eficiência empresarial, tendo frequentemente sucesso em barrar as deletérias influências político-partidárias associadas ao patrimonialismo, ou seja, apropriação do Estado por interesses particulares ou corporativistas. Com gente boa, até maus modelos institucionais funcionam.
Ao longo deste período, as concessões de aproveitamentos hidrelétricos eram atribuídas ao sabor do poder concedente, observando-se em linhas gerais a outorga, pura e simples, a empresas estatais, salvo casos de alguns poucos autoprodutores.
Nos anos 1960, as empresas distribuidoras começaram a ser agregadas por unidade da federação e estadualizadas. Progressivamente, o setor foi sendo estatizado. Nesse sentido, foram marcos importantes as aquisições feitas pela Eletrobras do grupo AMFORP, em 1965, e do Grupo Light, que atendia Rio de Janeiro e São Paulo, em dezembro de 1978. Às aquisições seguiram-se (exceto Rio de Janeiro e Espírito Santo) transferências dos ativos de distribuição para os governos estaduais.
Assim, cerca de 40 anos após a sua edição, o Código de Águas transformou um setor que era praticamente 100% privado em outro, com 97% de controle estatal.
Na década de 1980, o mundo começava a se redefinir como uma economia global, integradora de cadeias internacionais de produção, atraindo especialmente a China para o mainstreamdo comércio mundial e valorizando a qualidade, a competitividade e o meio-ambiente. No Brasil, porém, marchava-se para trás com o governo a se contrapor às leis da economia, tendo unificado, em nível nacional, o preço dos combustíveis, as tarifas de energia elétrica e o salário mínimo. Exacerbava-se no Brasil o ciclo de estatismo e a busca pela autossuficiência em tudo.
Com a falência dessa visão econômica e a redemocratização do País, a nova Constituição promulgada em 1988 trouxe mudanças no quadro legal do setor elétrico que se somariam aos fatores econômicos acima mencionados. Destaco alguns dos dispositivos ali constantes:
• O artigo 21, parágrafo XII, alínea “b”: “Compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos d’água, em articulação com os estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos”. O termo em articulação foi “criado”, para resolver um enorme impasse que ameaçava emperrar a aprovação do dispositivo. Tal impasse decorria, em última análise, da disputa entre a visão federalista dos estados e a visão unitária e centralizadora da União, ambos os lados com lobbies muito ativos. Como a definição do termo “em articulação” é vaga (Seria apenas ser ouvido? Seria por consenso? Seria aplicável apenas nos rios com trechos de fronteira de estados?), o assunto permaneceu controverso;
• O artigo 175, que dispõe sobre a prestação de serviços públicos: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”;
• E outras provisões que acabam com o Imposto Único (IUEE).
As mencionadas disposições constitucionais impactaram negativamente a formação de recursos estatais vinculados ao investimento no setor elétrico e impediram a outorga de concessões de aproveitamentos com base na racionalidade “geográfica”, em face de nova exigência de licitação para outorga.
Fora a indefinição do termo em articulação são “republicanos” os pontos constitucionais. Apenas a demora na sua regulamentação veio a causar enormes problemas e travamento dos investimentos.
A hiperinflação, o desarranjo dos fluxos intrassetoriais de recursos, a contenção tarifária a níveis absurdos, a pretexto de não alimentar a inflação, e a falta de recursos públicos para investir nas obras concedidas na regra anterior, marcaram o day after da nova Constituição. Generalizou-se um quadro de obras paradas ou se arrastando. Cresceu a inadimplência, por parte das empresas do governo com seus fornecedores e também entre empresas setoriais. As distribuidoras, de propriedade dos estados da federação, recebiam o pagamento de seus consumidores, mas não pagavam a energia que recebiam das geradoras federais. Isso representava uma forma de “emissão de dinheiro”.
Essa deplorável situação só teve melhora significativa no governo Itamar Franco (1992 a 1994) face às reformas promovidas por Eliseu Resende – então presidente da Eletrobras –, consubstanciadas na concepção e posterior aprovação, em tempo recorde no Congresso, da Lei 8631 de março de 1993. Essa lei, complementada por leis, decretos e alguns atos regulatórios, alterou para melhor a economia do setor elétrico, permitindo, entre outros fatores positivos, tarifas realistas, caráter empresarial, fim da unificação tarifária e saneamento financeiro.
Outro ponto que havia evoluído no período foi o licenciamento ambiental de aproveitamentos e instalações à luz das crescentes e importantes exigências da sociedade. A Eletrobras, através da bem-sucedida implantação de seu PDMA (Plano Diretor de Meio Ambiente), conseguiu destravar processos e dar início à criação de uma nova mentalidade ambiental no setor, posteriormente degradada e abandonada.
O mercado de capitais de então reagiu muito favoravelmente às boas condições financeiras que resultaram desse conjunto de providências. Em menos de dois anos, o valor de mercado da Eletrobras subiu de US$ 2,5 bilhões para US$ 22 bilhões. A ação virou a terceira mais negociada na Bolsa. Em janeiro de 1995, era a empresa de maior valor na América Latina, mais do que a Telmex (penalizada pela crise do México em dezembro de 1994), mais do que a Petrobras e mais do que a Vale.
Superada a fase crítica da situação financeira, desenhava-se a construção de um futuro sustentável para o setor elétrico. Mas, sua concretização implicava ainda muitos desafios, como, por exemplo, a criação de agência reguladora, novo marco regulatório, atração de capitais privados, licitação de novas concessões de hidrelétricas e relicitação das concessões vencidas.
Entre as ações iniciadas para encontrar uma solução permanente para esses desafios destaca-se a discussão iniciada no Congresso de uma Lei das Concessões de Serviços Públicos para a Iniciativa Privada, o que só prospera com o governo FHC, empossado em janeiro de 1995.
Logo em fevereiro, na reabertura do Congresso, o tema da votação da Lei das Concessões de Serviços Públicos se impõe e com ele a divergência entre a posição federal (de declarar extintas as concessões) e a dos principais estados.
A solução “à moda brasileira” é logo achada: “ficam prorrogadas todas as concessões por 20 anos”, de modo que o que estaria extinto até 1995 passaria a valer até 2015. Neste meio tempo, estudar-se-ia uma nova regra. A propósito, introduziu-se oportunamente na lei a definição que eventuais leilões de privatização de geradoras e distribuidoras teriam a virtude de atender ao requisito constitucional de legitimar – via licitação – novo prazo das concessões. Com isso, as empresas que desde então foram privatizadas ganharam prazo adicional para as suas usinas e instalações.
De 1995 a 1998, começam as privatizações setoriais, implanta-se a Aneel e há um progressivo ajuste nos modelos de contrato de concessão. A privatização da maioria das distribuidoras é conduzida pelo BNDES com sucesso e associada ao saneamento financeiro das unidades da federação e à privatização de seus respectivos bancos estaduais, outra fonte de “emissão disfarçada de dinheiro” e de problemas fiscais.
Com o tempo, constatou-se que as privatizações resultaram numa apreciável melhoria da qualidade do serviço, medida pelos índices de duração e frequência das interrupções. A privatização da geração, todavia, não evoluiu no período pela lentidão em se desenvolver um novo modelo de marco regulatório. A consultoria externa contratada para este fim decididamente não se mostrou à altura do desafio, por desconsiderar a especificidade do nosso modelo de geração.
A partir do início de 1999, interrompem-se as privatizações de geração e começam a se acumular problemas, ao mesmo tempo em que se generaliza, no público, a visão de que a privatização produz encarecimento de energia, o que é incorreto. Embora o preço ao consumidor final suba, ele reflete o fim dos subsídios e ineficiências que este consumidor pagava sob a forma de inflação ou como contribuinte de impostos.
Ao final de 1999, a situação do suprimento de energia, decorrente de vários fatores, já era vista com muita preocupação. O governo ignorou os alertas dos técnicos independentes que estimavam que as garantias físicas do sistema estavam superestimadas e, confiando no que diziam seus dirigentes – ou melhor, no que eles não diziam –, não se moveu até que, rendendo-se aos fatos, em abril de 2001, decide agir. Então, infelizmente, o racionamento foi inevitável.
No contexto da crise é criado um escritório para centralizar as ações sobre o mercado, muitas concebidas por David Zylberstajn. Com muita competência, Pedro Parente, ministro-chefe da Casa Civil, lidera o processo de ajuste com o apoio político costurado por José Jorge Vasconcellos, novo ministro de Minas e Energia. A transparência e o equilíbrio demonstrados na condução da crise foram exemplares, bem como a forma de envolver a sociedade civil no processo, que por consciência ou temerosa de multas, fez o seu papel na redução do consumo.
O governo, entretanto, pagou um preço enorme. O relatório Kelman, elaborado ao final do período de racionamento a pedido do presidente Fernando Henrique Cardoso, mostra na raiz do problema a questão das garantias físicas de energia, a queda dos investimentos na geração de energia, a demora na aprovação de um regime que permitisse passar flutuações do preço de gás para as tarifas de energia (e, assim, viabilizar esta fonte de rápida implantação) e, ainda, a ocorrência de um ano de menos chuva e de reservatórios baixos.
Assim, o ano de 2001, que havia se iniciado com róseas expectativas para a economia, acabou mal, com queda do índice de crescimento do PIB decorrente da falta de energia. No ano seguinte, ano de eleições presidenciais, as consequências políticas do racionamento se fizeram sentir no resultado do pleito.
Governo novo eleito, há que se registrar a civilizada transição liderada pelo ministro Pedro Parente à frente da equipe que se despedia do Planalto, que permitiu a quem entrava, a então ministra Dilma Rousseff, dar continuidade ao que se pensara de bom, para sanar os problemas energéticos e manter as virtudes dos ajustes na economia.
O modelo Dilma, por ela desenvolvido como ministra do governo Lula, sob o mote de modicidade tarifária e segurança no suprimento, tratou competentemente esses temas e proporcionou, no início, uma volta a práticas conceitualmente virtuosas. Seu sucesso contribuiu para sua promoção para a chefia da Casa Civil e, daí, para a bem-sucedida candidatura à presidência da República. Jerson Kelman autor do relatório sobre o “apagão”, encomendado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, foi indicado para a Aneel, mostrando a continuidade do espírito que se restabelecera em 2001.
A questão do formato dos leilões para concessões foi alterada, criando-se o ACR (Ambiente de Contratação Regulada) e o ACL (Ambiente de Contratação Livre), ambientes de comercialização distintos para energia destinada ao mercado regulado e para consumidores livres. As licitações para geração, especialmente para os pequenos e médios aproveitamentos, ensejaram competição e redução dos preços, além de disciplina de mercado.
Infelizmente, introduziu-se por lei e abusou-se, na prática, da criação de encargos e subsídios intrassetoriais, o que distorceu o sinal do custo marginal de energia para várias categorias de consumidores, levando à perda da competitividade do segmento industrial.
A Desconstrução do Modelo
A desconstrução do modelo, que se estruturou entre 1995 e 2010, é obra de várias leis e regulamentos que visam resolver problemas emergentes, ou atender a prioridades sociais como o “Luz para Todos”, mas que destroem a precária consistência interna do referido modelo. A partir de 2004, acumulam-se casuísmos que vão se acentuando ao longo do período.
A forma de licitar concessões de hidrelétricas de maior porte, associadas a complexas obras, sem exigência de seus projetos técnicos e ambientais estarem detalhados no momento da licitação, é um desses fatores.
Essa desconsideração pela boa engenharia também afetou o modelo de desenvolvimento da transmissão, de início saudado como grande sucesso, ao ensejar custos de implantação inferiores a orçamentos de referência. A outorga de concessões de linhas de transmissão, que compõe um complexo sistema, a dezenas de empresas sem tradição ou para outras, como a Chesf, que sofreram no período uma enorme degradação da sua engenharia, resultou em vários problemas.
Com o casuísmo surge a reticência de os empreendedores investirem em ambiente inseguro e, daí, o governo, direta ou indiretamente, passou a assumir riscos de investimento via participação societária (equity) ou financiamento do BNDES.
A desconstrução se formaliza em 11 de setembro de 2012, quando é publicada a MP 579, que produz uma enorme preocupação no setor pela forma autoritária que imprime ao processo, por não deixar clara a extensão das suas consequências e por desconsiderar aspectos constitucionais. O governo, enfim, selava o final dos restos de coerência ainda existente, propondo mais mudanças tópicas para resolver problemas sistêmicos.
Custa-se a acreditar que, ao retirar cerca de 30% do faturamento anual do Grupo Eletrobras, o maior do país, e ainda impor uma redução de custos operacionais “agressiva”, o governo não imaginasse os efeitos desse anúncio.
A reação do mercado foi dramática: a Bolsa sofre forte queda e são patentes a desconfiança e o mergulho no valor das ações. Após discussão, o governo emite uma nova medida provisória, a MP 591, dando nova redação a vários pontos para mitigar os seus malfeitos.
Aparecem, na ocasião, nos jornais de grande circulação, ridículos anúncios de página inteira, nos quais a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), presidida por candidato a posto eletivo, e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), órgãos de representação empresarial e dinheiro público – saúdam esta medida demagógica, arbitrária, eticamente e juridicamente questionável, além de unanimemente condenada pelas empresas do setor, procurando colocar a opinião pública contra este segmento empresarial. Até mesmo a obrigatoriedade de licitação que essas entidades defendiam foi esquecida no seu adesismo.
Tudo isso ressalta o preocupante aumento da intervenção estatal num setor que precisa desesperadamente de capitais privados e de gestão profissional privada, que, agora, voltou a depender de transferências do Tesouro Nacional.
Na virada de 2012, as estatais federais começaram a anunciar que reduzirão seus quadros em 30 a 35%, que dependerão do governo para investimentos, enquanto inquietantes sinais de “vontade de participar na gestão pública” se ouvem da parte dos mais corruptos segmentos político-partidários.
E, ainda, em fevereiro de 2013, fica claro que, por perversa, mas previsível hidrologia, a necessidade de geração térmica na base, em 2013, anulará os efeitos da redução tarifária sobre os custos. A presidente da República anuncia veementemente: “O nosso modelo é hidrotérmico”, fazemos térmicas para não inundar terras, ou seja, renunciamos aos reservatórios que asseguravam a energia hidrelétrica.
Sugestões para um novo modelo setorial
O prazo das concessões
Discutindo o tema das concessões em 1994, os grandes juristas José Luiz Bulhões Pedreira e Hamilton Prisco Paraíso me diziam que as concessões com prazos definidos “deveriam acabar, é algo atrasado”.
Eles discorriam sobre a diferença entre os regimes constitucionais da tradição da Europa Continental versus a da Anglo-Saxônica. Nos primeiros, como o nosso, de inspiração centralizadora, a responsabilidade do serviço é do Estado, que pode, sob condições, concedê-lo à iniciativa privada. Nos outros, o Estado, via agências reguladoras, entra para disciplinar a relação entre empresas e seus clientes, considerando especialmente coibir abusos do poder econômico e regular monopólio em que exista a inviabilidade de competição. A experiência favorece o segundo regime institucional, mais orientado para o mercado sob fiscalização do Estado.
Cumpre ainda destacar que os progressos de novas tecnologias de geração descentralizada, o imperativo da sustentabilidade e a disseminação dos smart-grids (redes inteligentes) acentuam o anacronismo do regime de concessão com reversão após um tempo predeterminado, o que é muito negativo pela perspectiva de descontinuidade que gera para a gestão empresarial.
O que parece saudável para a economia, e possível para o Brasil, é o fato de as concessões terem prazo indeterminado (ou durarem 99 anos renováveis). Naturalmente, dever-se-ia dar poderes de intervenção mais fortes ao Estado em caso de desmando ou mau desempenho do concessionário. É imperativo, também, retirar o Estado totalmente da prestação direta do serviço, fonte de excessos patrimonialistas e conflitos de interesse com seu papel de promotor e fiscalizador.
O foco da concessão: de Usina para Bacia Hidrográfica
Quatorze anos depois da votação, em 1995, da lei que prorrogou as concessões por 20 anos, atento à inércia nos estudos sobre o tema (o prazo se esgotaria em 2015), escrevi um artigo para o Valor Econômico, publicado em maio de 2009, levantando a oportunidade de se tratar a questão das concessões conjugada à questão ambiental, migrando-se do regime de concessão por aproveitamento para o de concessão por bacia hidrográfica.
Com o tempo, o território nacional se tornara um espaço mais densamente ocupado. Assim, não caberia mais, na minha proposição, tratar os aproveitamentos de forma independente do ciclo da água nos seus usos múltiplos, e também do controle das condições ambientais (encostas, vegetação, sedimentação, despejos urbanos e industriais etc.). Por isso, eu propunha a concessão por bacia, o que daria ao concessionário as receitas da geração de eletricidade, mas também a obrigação de cuidar permanentemente do meio ambiente, o que facilitaria os processos de licenciamento, passando a existir um responsável permanente pela supervisão da gestão territorial passível de ser responsabilizado judicialmente.
Uma mudança do regime de “concessão por usina” para “concessão por bacia hidrográfica” seria, ainda, mais um fator de apoio à extensão do prazo das concessões, pois os largos prazos imporiam o cuidado com o meio ambiente como razão de ser e da sobrevivência da atividade empresarial. Havendo credibilidade e confiança, reduzir-se-ia o custo da energia, por não haver necessidade de amortizar em 30 anos algo que vai durar pelo menos 100, e seria viável considerar de novo os grandes reservatórios.
Essa tese recebeu, no período, o apoio do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério da Integração Nacional, mas não progrediu no âmbito de Minas e Energia.
Valorizar a Engenharia
Todos com conhecimento em engenharia reconhecem que é absolutamente impossível se ter custos previsíveis sem aprofundar os estudos anteriores à licitação de hidrelétricas ou bacias hidrológicas.
As termelétricas, em que o equipamento representa mais de 80% do custo total, ainda podem ser orçadas com relativa segurança sem grandes despesas prévias de engenharia. E, certamente por isso, o nosso modelo desenvolvido por consultorias externas ignorou a nossa especificidade hidrelétrica (em que os equipamentos representam apenas 25% do custo total).
Para usinas hidrelétricas, seja pelos seus aspectos técnicos seja pelos ambientais, é impossível não detalhar estudos com profundas investigações no terreno, que podem custar entre 5% e 10% do valor das obras, mas que evitariam sobrepreços e claims (reclamações) e melhorariam a qualidade e a aceitação pública dos projetos. Caberia, assim, voltar-se a viabilizar uma cultura de Engenharia Civil, Elétrica e de inserção ambiental, o que requer uma mudança em certos aspectos do modelo “alienígena” implantado entre 1997 e 2004.
Governança e Conclusão
A experiência histórica relatada mostra acertos e erros, virtudes e defeitos de praticamente todos os governos que enfrentaram o tema. Fica claro que há que se inovar na busca de um melhor modelo de concessões adequado para o Brasil.
Tendo em conta a aprovação pelo Congresso e a sanção pela presidente da República da lei oriunda na citada MP 579, lembro que o tempo passa rápido e as velocidades da nossa “tecnoburocracia” são lentas, cabendo desde já começar a estudar o que fazer em 2043, ao final da concedida prorrogação por 30 anos. Se decidida uma evolução na linha do proposto nos subitens 4.1, 4.2 e 4.3 anteriores, isso já poderia ser feito a partir dos próximos leilões.
Nunca é demais destacar que, nenhum modelo resistirá à falta de governança adequada. Assim, é essencial que leis e regulamentos impeçam o governo de acumular papéis de regulador e de empresário, limitem as participações de capital votante de fundos de pensão de estatais para posições minoritárias e fora do grupo de controle das empresas, e, ainda, que se deixe o mercado precificar os retornos com base nos riscos que o próprio governo cria. Isso, certamente, faria o governo pensar duas vezes antes de anunciar medidas drásticas.
Essas providências, somadas à renúncia ao aparelhamento do Estado e a sua fiscalização por opinião pública e Ministério Público, permitiriam desobstruir o caminho para um futuro com melhor infraestrutura.
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