05 janeiro 2016

Uma URV para a Política Comercial Externa

Um número crescente de analistas da economia brasileira tem registrado, entre outras características recentes: i) a rápida e expressiva perda de participação do setor industrial no PIB2, ii) o fato de que as exportações de produtos industriais têm perdido participação nas exportações totais brasileiras3, iii) os diversos indicadores de baixa competitividade da produção nacional e iv) a característica de que a concorrência internacional nessa área é relacionada com processos produtivos em cadeias de valor, com uma dimensão cada vez maior de âmbito regional.
Soma-se a isso a crescente percepção de que para que haja recuperação do desempenho será necessário aprimorar o setor de serviços, melhorar o nível de qualificação dos trabalhadores, proporcionar preços relativos adequados, superar as carências de infraestrutura e ajustar diversos aspectos da legislação, agenda não apenas múltipla, mas que compreende ações com distintos horizontes de tempo. Os custos de produção nacional são frequentemente superiores aos dos principais concorrentes, e em boa parte isso está relacionado com a estrutura de proteção contra importações.
Faz parte desse mesmo diagnóstico a constatação de que há um conjunto de iniciativas envolvendo as principais economias do planeta, com agendas ambiciosas e sem precedentes, das quais o Brasil não participa.
Compõe esse quadro, por último, a sensação de que a sociedade atribui à existência e ao dinamismo do setor industrial um valor expressivo, dada a existência de um parque produtivo de expressão e razoavelmente diversificado e tendo em vista a capacidade desse setor de propagar progresso técnico e novas formas de produção e de relações do trabalho.
Uma leitura dos parágrafos anteriores leva à recomendação de que para participar de maneira mais expressiva dos fluxos de comércio internacional, inclusive com presença mais significativa nas chamadas cadeias de valor, deveria ter início logo um processo de redução do custo no acesso aos bens de produção importados, o que permitiria elevar as margens de ganho. Ao mesmo tempo, deveria haver mais proatividade na negociação de acordos de preferências comerciais com terceiros países, fora do âmbito regional restrito. A ênfase da política econômica recente no mercado interno implicou um distanciamento dos principais mercados – em que pese a diversificação das exportações para uma quantidade de novos parceiros, mas em proporções diminutas – e como consequência provocou atraso nas formas de produção de diversos setores, comprometendo sua competitividade.
Uma leitura alternativa recomenda cautela com relação a essas proposições.
Fatos concretos
Abrir a economia em conjuntura de baixo ritmo de atividade, com desemprego significativo, baixa competitividade e custo do capital excessivamente elevado pode ser uma receita catastrófica, com custos sociais elevados. Negociar acordos preferenciais com economias avançadas pode ser arriscado, tendo em vista o diferencial de condições e pelo fato de que as condições negociadas nos acordos já firmados com terceiros países poderiam se tornar um “piso” para futuras negociações, com o país tendo de aceitar cláusulas que em outras circunstâncias poderiam ser rechaçadas sem maiores problemas. O objetivo de aumentar a participação em cadeias de valor é igualmente questionável, uma vez que a governança dessas cadeias é dominada por grandes empresas transnacionais4. A aproximação cautelosa e negociada com outros países em desenvolvimento aparenta ser menos arriscada.
O debate sobre abrir ou não uma economia é pelo menos tão antigo quanto as Leis dos Grãos (“Corn Laws”) inglesas do início século XIX. A economia política subjacente desempenha um papel que não pode ser minimizado. Grupos de interesse influenciam as decisões, tanto quanto uma conjuntura econômica recessiva pode desestimular a ampliação das facilidades de acesso a bens e serviços importados.
Parece-me que antes de tudo é fundamental levar em consideração os fatos concretos.
Em primeiro lugar, a economia brasileira é ou não “fechada” em relação ao comércio internacional? Para responder, podemos usar os dados do Banco Mundial5 e um indicador básico, que é a razão entre as exportações e importações e o produto nacional (PIB).
Em 2012, a razão entre exportações de bens e serviços e o PIB no Brasil era de 13%. Esse percentual foi, naquele ano, o mesmo de países como Nepal, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Tadjiquistão, Sudão, Burundi, Afeganistão, Benin, Camarões, Haiti, República Centro-Africana, Serra Leoa e Etiópia, economias que não se destacam propriamente por seu desempenho. Mas, o resultado não ficou muito distante do observado nos EUA (14%) e Japão (15%). Em outras palavras, sendo uma economia com um mercado interno de dimensões, a participação das exportações não parece muito distante do observado em outras economias grandes6.
Ao considerarmos a razão entre importações de bens e serviços e o PIB, no entanto, a figura muda. O percentual para o Brasil foi de 12,6% em 2011 e de 13,9% em 2012. A mencionada publicação do Banco Mundial traz dados para 163 países em 2011 e 112 países em 2012. Em nenhum outro país esse percentual foi tão baixo, nos dois anos considerados. Há certamente algo peculiar nesse sentido, na economia brasileira.
Uma qualificação importante a esses indicadores está relacionada à taxa de câmbio. Eles se referem ao ano de 2012, quando a taxa de câmbio do dólar foi em média de R$ 1,95. Uma atualização desses percentuais para 2015 (informações ainda não disponíveis) certamente indicaria valores mais elevados, uma vez que a taxa de câmbio nos dez primeiros meses foi, em média, igual a R$ 3,237.
Outro indicador a ser considerado está associado às condições de acesso aos bens de produção8 importados. A alíquota média (ponderada pelo valor das importações) para esses bens foi de 10,2% em 2005 e basicamente se manteve, com pequenas variações, atingindo 10,9% em 2012. Nesse mesmo período, essa alíquota sobre bens de produção em outras economias emergentes teve tendência declinante, e em 2012, correspondia à metade ou menos da tarifa brasileira.
Especificamente no que se refere ao acesso a insumos, a evolução recente das alíquotas nominais do imposto de importação (tarifas ponderadas pelo valor importado de cada produto) dos 20 produtos com as alíquotas mais elevadas de imposto de importação indica que a alíquota média era de 23,7% em 2000 e de fato foi elevada para 27,6% em 2013.
E é particularmente notável o fato de que há uma recorrência dos setores mais protegidos. Entre 2005 e 2013, as 20 alíquotas mais altas beneficiaram um total de 25 setores. Desses, 16 setores fizeram parte dessa lista em todos os anos. Outros quatro setores foram beneficiados com as alíquotas mais elevadas em quatro dos cinco anos considerados. Há um claro componente de economia política no desenho da política comercial externa e um grau limitado de clareza com relação à racionalidade econômica subjacente.
Isso significa que um setor produtivo no Brasil que utilize insumos importados sofre, de imediato, pressão de custo muito superior à experimentada por seus concorrentes, pelo simples diferencial de preço no acesso a esses insumos. Esse custo certamente se elevou com o movimento recente da taxa de câmbio, que será considerado mais à frente.
Preocupação com produtos industrializados
Acrescente-se a esses números as estimativas recém-divulgadas em estudo sobre a proteção nominal e efetiva no Brasil 9. De acordo com esse trabalho, em 2014, a tarifa nominal média era de 12,2%, enquanto a tarifa efetiva era mais que o dobro, 26,3%. Isso revela um grau elevado de proteção ao valor adicionado localmente, mas não apenas isso: essas duas tarifas apresentaram variações mínimas desde 1995 e nenhuma tendência definida, o que significa dizer que o nível de isolamento da economia brasileira praticamente se manteve por um longo período de tempo.
Durante esse período, teve início o que hoje é chamado de terceira Revolução Industrial, em função das mudanças expressivas ocorridas nos processos produtivos, como o fatiamento de etapas entre países, a adoção de novas tecnologias, como a impressora 3D, e a influência, sobre a produção, do processamento de grandes volumes de dados. É uma questão em aberto, demandando estudo empírico, saber se o distanciamento da indústria brasileira dos polos geradores das novas tecnologias teve impacto expressivo. No entanto, parece razoável supor que por estar menos sujeito à concorrência o setor industrial brasileiro apresente taxa de inovação menos expressiva, comprometendo sua competitividade.
A economia brasileira é das mais competitivas no agronegócio. Como é sabido, isso tem viabilizado boa parte dos resultados positivos da balança comercial, ao mesmo tempo que tem influenciado a trajetória da taxa de câmbio, afetando a rentabilidade das exportações industriais.
A maior fonte de preocupação dos analistas do comércio exterior tem sido, portanto, o desempenho dos produtos industrializados. Isso determina o foco das considerações nos próximos parágrafos.
Esse relativo isolamento da economia, acoplado à ênfase na promoção do consumo interno, levou a que as exportações totais crescessem 4% em volume, entre 2006 e 2014, enquanto o volume importado total aumentou 84%. Nesse mesmo período, a produção de bens de capital aumentou 33%, enquanto o volume importado cresceu 125%. Para bens de consumo durável esses indicadores foram de 13% e 173%, respectivamente.
O setor industrial brasileiro passou a operar com um coeficiente de penetração da ordem de 22% desde 2013, superior aos 15% registrados em meados da década de 1990.
Estes dois últimos indicadores – aumento da presença de itens importados no processo produtivo e na cesta de consumo final – reforçam a importância do debate sobre a política comercial externa: houve um aumento significativo da presença de produtos importados, em grande medida correspondendo a um descasamento entre crescimento da demanda e capacidade de oferta interna.
Isso pode parecer incompatível com a análise anterior, de necessidade de maior abertura. O argumento em favor de reduzir as barreiras comerciais tem, contudo, (ao menos) duas faces. No que se refere aos bens importados empregados nos processos produtivos é preciso – como sugerido acima – reduzir o custo de acesso, que permanece mais elevado do que em outras economias concorrentes. E os indicadores agregados indicam que nesses concorrentes esse acesso a importações medido em termos do PIB é bem mais expressivo.
No tocante aos bens finais, alguns analistas têm enfatizado um efeito distributivo interno perverso: a diferença de preços entre os produtos disponíveis no mercado interno e aqueles adquiridos no exterior é de tal magnitude10 que é vantajoso para as pessoas de maior poder aquisitivo fazer compras no exterior, ao mesmo tempo em que os indivíduos de menor renda são forçados a consumir internamente, a preços mais elevados e eventualmente produtos de qualidade não comparável aos disponíveis em outros países.
Um segundo conjunto de argumentos tem a ver com o cenário internacional. Já se tornou uma referência frequente a ênfase nos chamados mega-acordos em negociação ou firmados recentemente: Associação Econômica Regional Integral (10 países membros da Asean mais China, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Índia), Parceria Transpacífico (TPP) (Austrália, Brunei, Chile, Canadá, Japão, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura, EUA e Vietnã), Parceria Transatlântica em Comércio e Investimentos (TTIP) (EUA e União Europeia) e o Acordo Plurilateral em Serviços (23 países).
A importância desses acordos deriva do fato de contemplarem os principais participantes no comércio internacional e do fato de a agenda negociada incluir temas que extrapolam em vários sentidos o que já foi acordado no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), que se vê de fato debilitada nesse novo cenário. Boa parte das disciplinas consideradas nesses acordos são, de fato, relativas a políticas internas de cada país e transcendem a órbita estritamente comercial.
Menor disponibilidade de crédito
O fato de o Brasil não participar de nenhuma dessas iniciativas, e de fato ter firmado, junto com os parceiros do Mercosul, um número pífio de acordos preferenciais, por si só reforça a ênfase na demanda por reconsideração da postura negociadora externa do país, uma vez que a entrada em vigor desses grandes acordos pode implicar perdas expressivas de oportunidades de mercado para os produtos brasileiros.
Aos dados anteriores há que se acrescentar um fato conjuntural interno importante: o setor industrial terá de se adaptar a um novo cenário de menor disponibilidade de crédito, em comparação com os últimos anos, uma vez que o inevitável ajuste macroeconômico deverá provocar redução na oferta de recursos para o BNDES, assim como menores espaços para as políticas recentes de incentivos e desonerações.
Esse é o cenário. As inferências derivadas de sua leitura devem ser qualificadas, contudo, pelas condições objetivas da economia brasileira para adotar uma estratégia de abertura comercial expressiva e proatividade negociadora.
Segundo o boletim CNI Notícias de 23/02/15, a taxa média de crescimento da produtividade na indústria brasileira foi de 0,6% ao ano entre 2002 e 2012 (comparada com 6,7% na Coreia do Sul). É a mais baixa, se comparada com indicador correspondente de outros 11 países concorrentes.
Como a economia experimentou um aumento expressivo de salário real (1,8% ao ano, nesse mesmo período), isso significou uma elevação significativa do Custo Unitário do Trabalho, que aumentou 9% entre 2002 e 2012. É a maior elevação registrada entre os países concorrentes considerados, com claro efeito negativo sobre a competitividade da produção.
A isso deve ser acrescentado que a economia brasileira também se destacou nesse conjunto de países por ter experimentado no período a maior apreciação da moeda nacional, da ordem de 7,2% ao ano entre 2002 e 2012, mantendo-se em nível claramente abaixo do equilíbrio, com o que a relação câmbio/salário certamente desestimulou boa parte do esforço exportador.
E o custo do capital tampouco ajuda: com a taxa básica de juros da economia a 14,25% ao ano e o custo médio de operações de crédito para pessoa jurídica superando os 20% ao ano fica realmente difícil competir com concorrentes externos.
A variação cambial recente certamente aproximou a taxa de câmbio do que possa ser seu nível de equilíbrio, e isso tem ajudado a promover uma lenta e insuficiente recuperação do desempenho exportador. No entanto, as variações bruscas nessa taxa (em função, entre outros motivos, do cenário político do país) afetam decisões de investimento de maior fôlego. E tampouco a desvalorização cambial é suficiente para por si só reverter o quadro de baixo dinamismo, em vista das outras carências com que se defronta o setor produtivo.
A variação cambial não é uma panaceia universal para todo o setor exportador: as “commodities” respondem mais diretamente às cotações em bolsas próprias e os manufaturados com ciclo longo de produção e comercialização dependem mais das condições de crédito de fornecedor do que do nível da taxa de câmbio vigente no momento do contrato de venda. É sobre as manufaturas leves, com contratos de câmbio de curto prazo, que a influência da taxa de câmbio é mais notável. A pauta brasileira de exportações compreende os três tipos de produtos, com o que há limites para os efeitos que podem ser esperados da desvalorização cambial sobre o saldo comercial.
Num ambiente em que permanece um grau razoável de incerteza em relação ao quadro fiscal, com taxas de inflação e de desemprego rondando os 10%, e com aumento do grau de inadimplência das famílias, comprometendo as expectativas de expansão do consumo interno, é realmente arriscado um movimento na direção de aumentar o grau de exposição do segmento produtivo nacional. O custo social no curto prazo pode ser excessivamente elevado.
Além disso, também nos países industrializados a conjuntura é de baixo crescimento e de nível elevado de desemprego, com o que a probabilidade de se conseguir ampliar o acesso a esses mercados por via de negociações não parece ser muito alta. De fato, em circunstâncias de baixo nível de atividade é mais provável observarem-se iniciativas de proteção em relação à concorrência externa.
Assim, um argumento frequente é de que nesse cenário não seria recomendável reduzir as barreiras às importações porque dificilmente se conseguiria algo significativo em troca, e um movimento unilateral poderia de fato reduzir a capacidade negociadora do país no futuro.
Esse tipo de raciocínio leva a uma questão central no debate. A postura de que não é indicado abrir a economia agora porque não se conseguiria nada em troca reflete uma postura de tipo mercantilista, segundo a qual só vale a pena pensar em reduzir barreiras ao comércio se e quando houver clara perspectiva de obter algo em troca.
Como dito acima, a economia brasileira é competitiva na agricultura. Para esses produtos, as negociações têm claramente um sentido de ampliar o acesso a mercados, e é justificável uma postura de toma-lá-dá-cá. A experiência recente com algumas negociações – em particular com a União Europeia – tem demonstrado que a probabilidade de conseguir maiores facilidades de acesso a alguns mercados permanece baixa.
Essa posição é distinta de um diagnóstico como o insinuado no início deste artigo: a demanda por mais abertura deriva da necessidade de reduzir custos para os produtores nacionais que dependem de partes, peças, equipamentos e matérias-primas importados.
A opção por uma das duas posições deveria ser um primeiro passo. Nossa história econômica indica que na maior parte do tempo a opção de tipo mercantilista foi predominante.
As considerações iniciais deste artigo, quanto a ser desejável proporcionar ambiente propício à produção segmentada, em cadeias de valor, fazem com que a permanência dos níveis atuais de barreiras ao comércio seja inconsistente com objetivos dessa natureza.
É ilusório, contudo, pensar em processos negociadores restritos a setores: o que pode ser obtido em termos de maior acesso ao mercado de produtos agrícolas muitas vezes é conseguido por troca no acesso ao mercado de produtos industriais ou de serviços.
O aspecto que quero ressaltar aqui é que parece claro – pela experiência recente – que apenas o estímulo ao mercado interno não é suficiente para proporcionar um desempenho aceitável do setor industrial, assegurando produtividade e competitividade. De fato, os dados sugerem que tem ocorrido tendência em sentido inverso.
De ser assim, parece importante a definição de uma estratégia sustentável de inserção internacional assegurando o ambiente favorável às exportações de produtos primários, mas ao mesmo tempo proporcionando condições menos daninhas aos produtores industriais. O novo patamar da taxa de câmbio certamente favorece movimento nessa direção.
Tendo em vista as características do cenário internacional mencionadas acima, pareceria que – além da inevitável agenda de solução dos conhecidos problemas internos de carência de infraestrutura, adequação de normas, inadequada qualificação da mão de obra etc. – o acesso ampliado aos insumos a custos mais baixos, a promoção de complementaridade produtiva com economias que podem proporcionar matérias-primas ou peças a preços mais baixos do que na produção nacional e a busca de preferências no acesso aos mercados mais relevantes tornam-se questões básicas. Refletiriam um grau de proatividade no desenho da política comercial como não se tem visto há algum tempo.
No entanto, como já ressaltado, as condições de debilidade da economia brasileira, hoje, fazem com que as perspectivas de benefícios de curto prazo derivados de uma abertura comercial de magnitude sejam possivelmente menores do que os custos que uma estratégia desse tipo pode acarretar. Até porque as medidas requeridas para assegurar condições sustentáveis de competitividade, como as listadas no parágrafo anterior, demandam algum tempo para se concretizarem.

Cronograma crível e ações concretas

E numa economia com forte presença, no parque industrial, de subsidiárias de transnacionais que operam há tempos no país, mas que têm como objetivo claramente as vendas no mercado interno e quando muito nos países vizinhos, conseguir alterar a direção do fluxo de comércio externo não é algo trivial.
Aqui entra o papel das expectativas. Agentes econômicos reagem a sinais.
Não se pede que o governo se envolva com negociações imediatas com parceiros de peso e em temas sensíveis, mas que sinalize intenção nesse sentido, revertendo postura cristalizada até aqui, e adote algumas medidas que deem credibilidade a esse novo rumo.
Não se pede que o governo reduza de maneira abrupta as tarifas e outras barreiras sobre importações, mas que apresente projeto nesse sentido, com um cronograma crível a ser seguido e ações concretas que assegurem confiança na direção a ser seguida.
Como já mencionado, há custos sociais com o processo de ajuste. O tempo requerido para que as iniciativas de melhora no perfil educacional dos trabalhadores e na infraestrutura, reformas legislativas e outras todas necessárias possam dar resultados é longo. Os indicadores de desempenho recente sugerem que o setor industrial pode não ter fôlego para tanto, tendo em vista os resultados negativos recorrentes dos últimos anos.
De ser assim, a alternativa factível parece ser começar um processo de redesenho da estratégia de inserção internacional desde já, de forma cautelosa, mas segura.
Um processo gradual desse tipo, mas com empenho e sinalização convincente e em formato compatível com as políticas industrial e macroeconômica, certamente induziria diversos produtores a se ajustarem às novas condições. É importante, ademais, que a opção por uma estratégia definida de inserção internacional seja uma política de Estado, e não de governo, significando, com isso, a necessidade de preservar sua continuidade por um longo período de tempo.
Essa demanda por cautela permite uma analogia com uma experiência brasileira bem-sucedida, na década de 1990.
A economia brasileira vinha de uma longa história de altas taxas de inflação, embora isso não tivesse levado – como foi o caso em outras economias latino-americanas – ao uso de moedas de outros países como forma de entesouramento ou mesmo como meio de troca, em função da operação do mecanismo da correção monetária. Ele funcionou como um amortecedor parcial das tensões sociais que poderiam derivar de um processo inflacionário exacerbado, ao mesmo tempo em que mascarou distorções no processo de formação de preços.
Numa sociedade cansada tanto da convivência com a inflação, quanto com a multiplicidade de experiências malsucedidas de combate a ela, a arquitetura de transição da moeda inflacionada para outra moeda totalmente nova é desde então considerada uma referência.
Além do ajuste fiscal que antecedeu todo o processo, a criação da Unidade de Referência de Valor (URV) possibilitou uma transição não traumática e, sobretudo, sem o recurso habitual e desgastado de mecanismos de controle de preços para um novo ambiente, em que os preços relativos se mostraram mais transparentes, facilitando as decisões dos diversos agentes econômicos.
A URV foi um artifício muito bem-sucedido, que viabilizou a passagem de um ambiente conturbado de enorme descrédito na moeda nacional para um mundo novo, de maior clareza. E o mais importante: sem traumas11. As forças produtivas se ajustaram ao novo ambiente, e em pouco tempo a taxa de inflação baixou em ritmo que surpreendeu a todos.
As considerações quanto a uma suposta necessidade de ampliar o grau de abertura da economia brasileira, sob a ótica de redução de custos produtivos, numa conjuntura adversa e sem grandes perspectivas de conseguir ganhos em curto prazo em troca desse movimento, parece demandar algo parecido com um instrumento que viabilize essa transição de forma não traumática.
É da tradição brasileira evitar movimentos abruptos. Com a possível exceção de algumas tentativas de estabilização de preços um tanto violentas, tanto os processos de reforma da política comercial externa quanto a abertura financeira sempre foram feitos de forma gradual.
Esse mesmo gradualismo poderia ser adotado agora, ao se proporcionar aos produtores nacionais o acesso a insumos importados a custos menos extorsivos do que os atuais. Ao mesmo tempo, caberia sinalizar o propósito de buscar maior interação com parceiros comerciais extrarregionais e o empenho de viabilizar maior eficiência nos processos produtivos. A promoção de complementaridades produtivas com as economias vizinhas da América do Sul poderia ser um sinal expressivo. Uma iniciativa desse tipo certamente reforça a demanda por redução de barreiras às importações de insumos: é da essência dos processos complementares facilitar o acesso aos insumos importados.
Em outras palavras, dada a aparente necessidade de adotar política comercial externa mais ativa, mas sem perder de perspectiva a necessidade de minimizar os custos sociais inerentes ao processo de ajuste, pareceria que estamos precisando – além de uma visão de estadista – de um mecanismo que atue como uma URV para a política comercial externa, querendo dizer com isso a necessidade de se adotar um processo gradual acordado, mas firme e que permita a transição para um novo ambiente econômico.
Uma possibilidade poderia ser, por exemplo, escolher, junto a associações de produtores, os insumos para os quais é mais urgente a redução de barreiras, segundo algum critério preestabelecido. Caso haja produtores nacionais de itens que competem com esses produtos assim identificados, estabelecer um cronograma de desgravação que leve a uma redução substantiva (por exemplo, 50%) dos impostos atuais dentro de um número razoável de meses. De modo semelhante, identificar os insumos que têm mais impacto sobre os preços dos itens a serem exportados e da mesma forma facilitar o acesso a eles.
A experiência do início de concepção da Tarifa Externa Comum do Mercosul poderia ser revisitada: para um conjunto de itens houve redução imediata de alíquota e se definiu um cronograma de redução gradual das alíquotas para outros produtos.
Quanto aos acordos extrarregionais, caberia manifestar de forma concreta interesse em iniciar negociações com terceiros países, eventualmente optando por um modelo de velocidades variáveis junto aos parceiros do Mercosul.
Essas são apenas algumas sugestões. O importante é a identificação de objetivos claros – tanto para o público interno quanto para os agentes externos – e a implementação, desde logo, dos passos requeridos para atingir esses objetivos, mantendo a trajetória assim acordada sem sobressaltos nem mudanças bruscas de rumo.

RENATO BAUMANN é economista do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e professor da Universidade de Brasília (UnB). Foi diretor do escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) no Brasil entre 1995 e 2010.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter