Universidade na Amazônia e o Conhecimento Para Uma Economia da Floresta
A Amazônia é palco de desafios que se apresentam tanto no plano doméstico quanto no internacional: explorar, conservar e desenvolver economicamente. São inúmeras as intervenções lícitas e ilícitas, os conflitos e as soluções mirabolantes apontadas para instituir o desenvolvimento dessa região. As interações delicadas e complexas neste Bioma em equilíbrio cambiante desafiam aqueles que pretendem geri-lo para oportunizar aos povos e cidadãos o privilégio de continuar (con)vivendo neste espaço e desfrutando de suas diversas riquezas de forma mais equitativa e sustentável.
Neste sentido, a conservação da condição natural é bastante ressaltada por ser esta a maior floresta tropical do planeta, com um acervo de biodiversidade e serviços ambientais imprescindíveis para a manutenção das condições climáticas globais. De igual modo, a geodiversidade é uma questão central neste contexto, como fica historicamente comprovado se olharmos para esta questão desde os tempos idos da exploração do metal da febre, o ouro, passando pela exploração do ferro, do petróleo e, mais recentemente, pelo mapeamento e estudos de viabilidade para exploração de minerais nobres.
No caso da Amazônia, seu complexo mosaico sociocultural, formado por grande diversidade étnica, social e cultural, configurada por uma gama de populações nativas, migrantes e descendentes de migrantes, também se constitui como base do potencial da região.
Hoje, a região é apontada por muitos como espaço de grandes oportunidades para o desenvolvimento de novas matrizes econômicas que utilizem seus recursos como insumos para gerar riquezas, tendo a conservação ambiental e o respeito à diversidade social como medidas inovadoras na constituição de uma cadeia de valor que inclua, entre seus aspectos, a marca Amazônia.
Entre essas verdades, existem mecanismos, ferramentas e equipamentos indispensáveis que ainda não foram implementados ou o foram de forma incipiente, os quais poderiam tornar realidade os potenciais identificados para a Amazônia. Somente para citar os imprescindíveis, não podemos pensar em estímulo à economia, em novos padrões capazes de garantir a conservação da floresta e desconcentração de riquezas, sem a implementação de algumas soluções de fundo, que devem ocorrer de forma inovadora para agregar valor à cadeia de produtos que poderão ser ofertados ao mercado, tais como: energia limpa e de baixo carbono, água de qualidade, logística integrada, conexão à internet, investimentos em inovação e recursos humanos altamente qualificados.
Neste contexto, diante da complexidade portentosa e desafiadora da Amazônia, as universidades são mecanismos imprescindíveis como centros geradores de ideias e de ação para o desenvolvimento de pessoas, conhecimento e inovações, sobretudo aqueles que valorizam o modo de vida, os ecossistemas e a cultura local, enfim, a Amazônia.
Assim, aproveitar o potencial da região e concretizar ações advindas deste potencial em novas configurações traz para a desconcentração das universidades das capitais dos estados da Amazônia, ocorrida somente muito recentemente, uma das forças motrizes para estimular as mudanças no padrão de desenvolvimento econômico até agora implementadas neste espaço.
Volto-me agora para o Amazonas, onde detenho maior capacidade de tecer considerações experimentadas, tanto à frente da gestão de políticas de CT&I, quanto na formação de recursos humanos em diversos níveis na capital e em outros municípios do Estado.
A inserção das universidades nos municípios do interior do Amazonas não foi trivial, uma vez que essa região sempre foi vista como celeiro e, somente recentemente, fez parte do radar de políticas públicas para a formação de recursos humanos altamente qualificados e investimentos contínuos em CT&I. Para ilustrar, vejamos que até o ano de 2001 tínhamos somente a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) atuando de forma contínua, desde 1964, com a Faculdade de Direito e, a partir de 1968, com Direito, Estudos Sociais, Filosofia, Ciências, Letras, Engenharia, Medicina, Farmácia e Odontologia na capital. A partir de 1970, implantou o primeiro Polo no município de Coari e, hoje, tem Campi em Benjamim Constant, Coari, Itacoatiara, Parintins e Humaitá.
Em 3 de agosto de 2001, a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) inicia suas atividades em Manaus, Parintins e Tefé. A partir daí, são implantadas gradativamente seis escolas de educação superior na capital, a saber: Escola Superior de Saúde, Escola Superior de Tecnologia, Escola Superior de Artes e Turismo, Escola Superior de Ciências Sociais, Escola Normal Superior e Escola de Direito. Hoje também está fisicamente instalada com seis Centros de Ensino Superior (Itacoatiara, Lábrea, Parintins, São Gabriel da Cachoeira, Tabatinga e Tefé) e 13 Núcleos (Boca do Acre, Carauari, Careiro Castanho, Coari, Eirunepé, Humaitá, Manacapuru, Manicoré, Maués, Nova Olinda do Norte, Novo Aripuanã, Ipixuna e Presidente Figueiredo) em 19 outros municípios do Amazonas. De forma geral, a UEA chega remotamente a 62 municípios do estado.
Por outro lado, o fomento e a governança mais estruturada do Sistema de CT&I no estado ocorre somente a partir de 2003, com a instituição da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Amazonas (Secti-AM), que implementam políticas de fomento mais constantes e direcionadas às necessidades e cenário local. Em termos de Amazônia, a Fapeam foi protagonista no incentivo e no auxílio à instalação de outras FAPs nos demais estados da Amazônia.
Assim, mesmo que muito recentemente, as universidades, com apoio dos agentes de fomento locais e agências de fomento nacional e internacional, transformam os espaços e instituem laboratórios de pesquisa e desenvolvimento fora da capital. Esse movimento de formação muda a visão de gestores e disponibiliza anualmente um conjunto de profissionais de diversas áreas que são potenciais transformadores sociais em seu contexto.
Portanto, considerando a emergente discussão acerca da diversificação da matriz econômica e a necessidade da geração de valor agregado a esses produtos no território amazônico, surge o ambiente ideal para que as instituições, em diferentes campos de atuação, tomem para si ações que convirjam para a criação de novos negócios nos – e fora dos – grandes centros urbanos da Amazônia. As ações pensadas neste sentido podem se tornar referências estruturadas sobre negócios para qualquer pessoa interessada em aprender ou desenvolver atividade econômica sustentável na Amazônia, com base nos insumos e cadeias de valor da floresta e para além dela.
Neste contexto, a partir da interação da UEA com o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP) e a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA/USP), surge a possibilidade de se implementar um processo de formação colaborativo que potencialize o surgimento de negócios desta natureza. No mês de novembro de 2019, a UEA abrigou o “Encontro de Bioeconomia e Sociobiodiversidade na Amazônia”, evento promovido pelo Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), com apoio da GIZ /Projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável e do WWF, organizado pela Green Rio. Durante o evento, ficou estabelecido o compromisso de instituir o curso ora proposto, como uma inovação no processo de formação de recursos humanos, de modo a permitir o emprego de metodologias participativas e a vivência das situações de gestão de negócios, para nelas promover a atuação prática à luz da reflexão teórica.
Outra ação importante neste sentido foi a inserção do Amazonas no Rota da Biodiversidade, programa coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, que aponta os negócios com insumos amazônicos como uma alternativa importante para o desenvolvimento da região. Neste contexto, as universidades e institutos de pesquisa públicos e privados participam ativamente do Rota. O processo de formação se concretiza com a aprovação do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu Amazon Rainforest Social Business School – Escola de Negócios Sustentáveis de Floresta Tropical, como um Programa que iniciará[1] suas ações mediadas por tecnologia, oferecendo formação para 750 profissionais em Manaus e 10 municípios do Amazonas. O público-alvo principal são os mais de 2 mil profissionais formados pela UEA em seis municípios no interior, considerando somente aqueles dos cursos de agrimensura, agroecologia, tecnologia de alimentos, turismo, ciências econômicas, gestão pública, gestão comercial, gestão ambiental, logística e petróleo e gás. Outro público são aqueles formados por outras universidades e que estão nas diferentes localidades onde o curso será ofertado. É um novo modelo de negócios bioeconômicos, socioculturais e criativos, que requer uma nova educação empresarial e um novo campo de conhecimento e de prática de negócios na Amazônia, para uma nova geração de especialistas.
Bioeconomia, a economia do século XXI
Essa formação foi idealizada na perspectiva de construção de saberes e significados que comportem a Amazônia em sua vocação econômica e estabeleçam um horizonte de novos negócios ou mesmo a ampliação e adequação daqueles já existentes. Para que se produzam não somente conhecimentos e saberes diversificados, a proposta do curso está alicerçada na prospecção de oportunidades concretas de implementação de negócios sustentáveis na Amazônia, que sejam capazes de atender a demandas por produtos com diferenciais competitivos relacionados às cadeias de valor socioambientais. A primeira ação concreta se inicia com o curso de pós-graduação, mas o programa é mais arrojado e visa difundir a cultura da sustentabilidade e a implantação de negócios inovadores em diferentes escalas, como um importante caminho para a concretização de novas cadeias de valor econômico e para a redução das desigualdades e iniquidades na Amazônia.
Neste processo, universidades, sociedade, entes de governo, investidores e empresas serão envolvidos em um esforço para desenvolver formas de integração, cooperação e desenvolvimento econômico descentralizadas e compatíveis com a conservação do Bioma Amazônia.
Dentre esses negócios, temos aqueles relacionados à bioeconomia, apontada como a economia do século XXI, em cujo processo a sociobiodiversidade é um pilar. A Amazônia é um loco estratégico na construção de aliança em torno deste modelo econômico. Essa região tem sido apontada como uma nova fronteira econômica, de desenvolvimento de uma “economia verde”, equitativa e socialmente inclusiva, orientada para a biodiversidade, aproveitando o valor da natureza por meio das oportunidades de mercado para produtos e serviços sustentáveis, oriundos de florestas tropicais, que respeitam a sinergia de seus ecossistemas e sociedades.
É momento de potencializar as oportunidades inerentes aos negócios baseados em insumos e processos oriundos de ecossistemas e culturas diversas da Amazônia. Esse processo necessita da quebra de visão de caminho único para o desenvolvimento implementado até aqui, cujos incentivos são voltados para a indústria de grande escala. É necessário permitir enxergar esse modelo associado a outros envoltos em uma grande cadeia de valor, em diferentes escalas voltados desde a grande indústria (como, por exemplo, a de energias alternativas, fármacos, cosméticos, novos materiais, jogos e virtualização) até nichos específicos bastante rentáveis, como o mercado de luxo e bem-estar, que incluem a adoção de novas tecnologias, utilizam e se beneficiam dos ativos naturais (biojoias, joias artesanais, moda exótica, festas, objetos de decoração) e sociais (experiências, vivências, xamanismo, ritos, etc.).
Dessa forma, os negócios das florestas tropicais devem gerar empreendedorismo protagonizado pelas sociedades locais, bioindústrias diversificadas e produtos inovadores em todos os elos da cadeia de valor no território, assim como a utilização efetiva de tecnologias modernas para posicionamento econômico em mercados competitivos, considerando a localização e os desafios de mobilidade e logística que também devem ser enxergados como oportunidades de novos negócios, quebrando monopólios historicamente instalados.
O princípio orientador no desenvolvimento de uma economia de floresta e sociedades sinérgicas não é ver a região como mero produtor de commodities primárias (agrícolas, madeireiras, minerais, etc.) para insumos de indústrias em outros lugares, mas sim ter raízes profundas na geossociobiodiversidade da região amazônica como elemento fundamental e promover os benefícios (sociais, econômicos, ambientais) para a população local. Esses negócios devem visar ao desenvolvimento de uma “economia verde”, equitativa e socialmente inclusiva, orientada para a biodiversidade, aproveitando o valor da natureza por meio de oportunidades de mercado para e produtos e serviços sustentáveis oriundos da Amazônia, de suas florestas, ecossistemas e sociedades.
É significativo o crescimento de políticas públicas voltadas para o fortalecimento da bioeconomia na Amazônia e entendemos que a interação entre instituições de ensino, do setor produtivo e da sociedade civil organizada é imprescindível neste processo. É importante estimular um modelo de desenvolvimento sustentável para a região, agregando novos conhecimentos e estabelecendo diálogo com o conhecimento tradicional, com tecnologia de ponta e com modelos de negócios inovadores, apontando formas de financiamento e investimento inovadoras que estimulem a agregação de valor à biodiversidade da região associada à sua conservação e à geração de emprego e renda.
A formação de recursos humanos e os espaços criativos que as universidades oportunizam devem ser potencializados para pensar saídas e novos modelos para as barreiras que hoje inviabilizam ou freiam o crescimento econômico associado à manutenção das florestas. É necessário ver a conservação das florestas como valor agregado na escala de valores que levam em consideração o legado histórico das sociedades que as construíram e hoje as conservam e delas dependem.
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As atividades estavam previstas para iniciar em março/2020 com a divulgação e seleção, porém, devido à pandemia da Covid-19, foi adiada para março de 2021, devido ao quadro epidemiológico vivido nos municípios do interior do Amazonas.
Maria Olívia de Albuquerque Ribeiro Simão é doutora pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, professora do Instituto de Ciências Biológicas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da UFAM. Foi secretária-executiva adjunta de Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas; chefe do Departamento de Difusão do Conhecimento, diretora técnico-científica e diretora-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas. Atualmente é pró-reitora de Planejamento da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
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