Vigilantes da democracia: o papel do jornalismo investigativo
Em uma sociedade democrática, a busca por dados verossímeis e a livre circulação de informações são pilares essenciais. Essa frase não é retórica. Não há registro de uma democracia no mundo que respeite a população e, ao mesmo tempo, prescinda do jornalismo exercido com liberdade. É a compreensão sobre o escrutínio público que faz poderes esclarecidos se diferenciarem dos autocráticos.
Nesse sentido, o jornalismo investigativo exerce função de destaque como um dos alicerces para a consolidação de um Estado Democrático de Direito. É esse tipo de jornalismo que transcende a mera divulgação de fatos, buscando revelar informações de interesse público que se encontram ocultas, muitas vezes por envolverem atos ilícitos, corrupção, abuso de poder e outras mazelas sociais.
O jornalismo investigativo, caracterizado pela produção de reportagens aprofundadas e independentes, desempenha um papel crucial na sociedade contemporânea. Em uma democracia saudável, a transparência e a accountability são premissas para que os cidadãos e as cidadãs exerçam plenamente seus direitos. Nesse contexto, o jornalismo investigativo atua como um mecanismo de controle social, promovendo a participação pública e contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Ao contrário do jornalismo praticado no cotidiano, que muitas vezes se limita a cobrir eventos ou ao questionável jornalismo declaratório, a vertente investigativa assume um papel proativo na busca por desvendar tramas complexas e denunciar irregularidades. Esse processo investigativo exige dos profissionais da área uma série de habilidades e recursos específicos, como o domínio de técnicas avançadas de apuração, a capacidade de analisar criticamente grandes volumes de dados, a persistência em seguir pistas e, infelizmente, a coragem para enfrentar pressões e ameaças.
O jornalismo investigativo se diferencia de outras formas de jornalismo por uma série de características:
Profundidade e tempo – As reportagens investigativas, em contraste com a cobertura factual diária, exigem tempo e dedicação para a apuração rigorosa dos fatos, análise de documentos, entrevistas com diversas fontes e a checagem minuciosa das informações.
Fontes independentes – O jornalista investigativo vai além das fontes oficiais e releases institucionais, buscando ativamente fontes alternativas, como documentos vazados, dados governamentais obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI), relatos de denunciantes e testemunhas.
Impacto social – O objetivo é gerar transformação, provocando mudanças significativas na sociedade. Ao revelar casos de corrupção, por exemplo, esse tipo de jornalismo pode levar à responsabilização de pessoas em posição de poder, à mudança de leis e políticas públicas, além de fortalecer a consciência cidadã e possibilitar que o dinheiro, antes desviado, seja usado com fins coletivos.
Riscos e desafios – A natureza sensível dos temas investigados, muitas vezes, coloca jornalistas em situações de perigo. Também são lamentavelmente alvo de pressões políticas e econômicas, ameaças legais e até mesmo violência por parte daqueles que se sentem ameaçados pelas investigações.
O jornalismo investigativo como fiscal social
A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 5º, inciso XIV, garante o direito fundamental à informação. Não pode ser uma frase vazia de efetividade. A Lei de Acesso à Informação (LAI) estabeleceu parâmetros para a concretização dessa premissa constitucional. Mas só isso não dá conta de garantir tal objetivo. O jornalismo investigativo, ao buscar trazer à tona situações que estavam intencionalmente ocultadas ou misturadas à complexidade da vida, contribui diretamente para a efetivação desse direito e para a consolidação de uma democracia mais forte e justa.
Nesse sentido, “o jornalismo é a profissão daqueles que, na instituição da imprensa, estão socialmente incumbidos de atender ao público em seu direito à informação, segundo uma perspectiva crítica e independente”[1] Em particular, o jornalismo investigativo não tem apenas a missão de informar. Schudson[2] (2005) defende que as democracias necessitam de uma imprensa que não possa ser amada, isso porque passaria a desagradar os ocupantes do poder, que estariam em constante exposição de seus atos, a partir de questionamentos recorrentes.
Embora essa condição seja alvo de debate intenso no campo, o jornalismo investigativo atua como um “cão de guarda”, denunciando casos de corrupção, abuso de poder e outros problemas que afetam a sociedade. Acaba por expor irregularidades e pressionar autoridades a tomarem providências. Kovach e Rosenstiel[3] (2003), em seus trabalhos sobre a importância do jornalismo em uma sociedade democrática, argumentam que a imprensa tem o dever de fiscalizar o poder e proteger o interesse público.
A questão é que alguém precisa fazer perguntas incômodas. Em países autocráticos, jornalistas são acuados de todas as formas. Geralmente, em um golpe de estado, as forças armadas e a comunicação são as duas primeiras estruturas que se tenta anular. Isso não é coincidência. Além da força, também é preciso tomar o poder da informação. Pessoas esclarecidas tomam decisões. Quem é apresentado a fatos tem a possibilidade de discernir. É isso o que teme quem se pretende ditador: o levante a partir do questionamento.
No contexto brasileiro, podemos citar exemplos emblemáticos de textos jornalísticos que impactaram a política nacional. Um dos casos mais conhecidos é a entrevista de Pedro Collor dada à revista Veja que foi o estopim para o impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Outra entrevista, desta vez do então deputado Roberto Jefferson, à Folha de S. Paulo, em 2005, revelou o esquema que ficou conhecido como Mensalão.
Mas não são só as declarações públicas que têm esse impacto. As reportagens costumam ter papel preponderante. É o caso da publicação, também na Folha, sobre o aumento do patrimônio do então ministro Antônio Palocci, revelado em 2011. Mais recentemente, no Estadão, foi demonstrado o impacto do ‘Orçamento Secreto’, em 2021, que permitiu que dinheiro ‘jorrasse’ de forma indiscriminada, sem possibilidade de rastreamento e sem apontar propósito, viabilizando diversos casos de mau uso.
É importante ressaltar que esses são apenas exemplos de como o jornalismo investigativo atuou nos últimos anos no Brasil, revelando casos de corrupção, abuso de poder e violações de direitos. A atuação da imprensa investigativa é crucial para a consolidação da democracia, a defesa dos direitos fundamentais e a construção de uma sociedade mais justa e transparente. De fato, a revelação de escândalos como os mencionados demonstra o poder do jornalismo investigativo em responsabilizar os poderosos e fortalecer a democracia.
Cabe aqui um esclarecimento: há uma diferença fundante em jornalismo investigativo e jornalismo sobre investigações, como aponta Solano Nascimento[4] (2010). O segundo se aproveita – geralmente por meio de fontes – de apurações que já estão em curso por órgãos públicos, enquanto o primeiro faz todo o percurso e revela o que ainda não era de conhecimento geral.
É importante lembrar que a desinformação, impulsionada pelas mídias digitais, também impõe desafios à sociedade contemporânea. A proliferação de conteúdo enganoso (que se convencionou chamar de fake news ou notícias falsas, embora os termos sejam rechaçados pelo campo jornalístico por serem semanticamente inapropriados) e a dificuldade em combatê-lo podem minar a confiança do público. Ao que parece, o jornalismo é o antídoto mais indicado para o caso – também vale destacar que dados propositalmente fabricados para dissimular são ameaças reais ao estado democrático, pela potencialidade de mobilizar multidões em torno de uma inverdade.
Apesar da importância do jornalismo investigativo para a democracia, a prática dessa atividade enfrenta diversos desafios e obstáculos, tanto no Brasil como em outras partes do mundo. A falta de recursos financeiros é um problema recorrente, especialmente para veículos e profissionais que buscam manter o distanciamento desejável dos poderes. As ameaças à liberdade de imprensa, que se manifestam de diferentes formas, também representam um empecilho significativo para o exercício do jornalismo investigativo. Jornalistas que ousam investigar temas sensíveis ou denunciar pessoas influentes podem sofrer todo tipo de retaliação, desde processos judiciais até violência física.
Para garantir a credibilidade e o impacto do jornalismo investigativo, a formação especializada, o rigor ético e a busca pela apuração precisa são essenciais. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji),[5] por meio de cursos, congressos e outras iniciativas, desempenha um papel fundamental na qualificação e na proteção de jornalistas investigativos no Brasil. Também exerce a função de ser um escudo protetivo, dando suporte a vítimas de violências e cobrando a apuração dos casos por parte das autoridades.
Um futuro saudável depende de engajamento social
Em um cenário de transformações tecnológicas e sociais aceleradas, o futuro do jornalismo investigativo está intrinsecamente ligado ao papel das mídias digitais e à participação cidadã. A internet e as redes sociais, apesar dos desafios que apresentam, também oferecem novas ferramentas e plataformas para a produção e disseminação de reportagens investigativas.
Nesse contexto, o jornalismo independente e as iniciativas inovadoras de financiamento, como o crowdfunding e as assinaturas on-line, ganham cada vez mais relevância, oferecendo alternativas para a sustentabilidade do jornalismo investigativo. No entanto, é fundamental o apoio e o engajamento da sociedade. A demanda por um jornalismo de qualidade, a valorização do trabalho da imprensa profissional e o combate à desinformação são cruciais para fortalecer a democracia e garantir o direito à informação para todos.
Em um cenário marcado pela desinformação e pela crescente erosão da confiança nas instituições, o jornalismo investigativo se torna ainda mais relevante, atuando como um contraponto fundamental à manipulação e à opacidade. Diferentemente do que se observa em outros países, em que pessoas vão às ruas para defender a imprensa – no sentido do direito de ser informado –, aqui no Brasil quase não há manifestações públicas, sejam presenciais ou virtuais, em apoio ao jornalismo. Isso evidencia uma baixa preocupação com a liberdade de imprensa. É imprescindível que a sociedade passe a valorizar mais o trabalho de jornalistas investigativos e engrosse o coro por um ambiente mais favorável para a prática do jornalismo.
Parte dessa atitude, além de aspectos culturais, é calçada numa campanha de descredibilização do trabalho jornalístico, especialmente orquestrada nos últimos 15 anos. Não se trata de falar das falhas da imprensa, intrínsecas a qualquer atividade profissional, mas uma narrativa foi construída, notadamente por quem busca o ataque como estratégia de defesa, para tirar a legitimidade da imprensa, que poderia colocar em situação desconfortável mentirosos e distorcedores de fatos. É o caso de Donald Trump, que muitas vezes ao ser questionado por algo que o desagradava, em vez de responder à pergunta, preferia disparar que era uma fake news.
Investigações jornalísticas costumeiramente preenchem lacunas deixadas por informações oficiais, muitas vezes incompletas ou manipuladas. Em alguns casos, é dever da imprensa alertar para o princípio da separação e da independência dos poderes. Mas é importante que esse papel seja exercido sem exacerbar o denuncismo nem partir para a criminalização da política. Uma das saídas possíveis é o chamado jornalismo de soluções, que olha para os problemas, mas também indica caminhos, como forma de evitar a apatia típica diante de cenários caóticos.
É inegável, portanto, que o jornalismo praticado com responsabilidade se configura como uma forma de ajudar a manter a democracia e ainda aprimorá-la. Tal qual algumas espécies animais e vegetais (e até unicelulares) são indicadoras da qualidade ambiental e do equilíbrio do ecossistema. Também a possibilidade de exercer o jornalismo, especialmente na modalidade investigativa, são medidores da saúde de uma democracia. Por parte da Abraji, o que está garantido é ensejo na formação de jornalistas que sejam capazes de desempenhar com excelência o trabalho investigativo..
Referências bibliográficas
1.BUCCI, E. Uma profissão, um conceito. Revista de Jornalismo da ESPM, v.4, p. 26-30, 2012.
2.SCHUDSON, M. Descobrindo a notícia: uma história social da imprensa nos Estados Unidos. São Paulo: Ática, 2001.
3.KOVACH, B; ROSENSTIEL, T. Os Elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. Geração Editorial, 2003.
4.NASCIMENTO, S. Os novos escribas. O fenômeno do jornalismo sobre investigações no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010.
5.ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JORNALISMO INVESTIGATIVO (ABRAJI). Estatuto social da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Disponível em: https://www.abraji.org.br/institucional/transparencia. Acesso em: 5 set. 2024.
SIMÕES, A. Jornalismo de soluções. Curitiba: Appris, 2022.
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