Virada Neoliberal?
A chegada de 2016 instiga a refletir sobre a trajetória de continuidade da política econômica do segundo governo da presidente Dilma (2015 – 2018). Estaria mais para uma espécie de governo “à la” E. Dutra (1946 – 1951), que antecederia uma nova volta de Lula (como no caso de G. Vargas nas eleições de 1950); ou de segundo mandato do governo FHC (1999 – 2002), que mudou o curso original da política econômica do Plano Real 1 (1994 – 1998) e perdeu a eleição presidencial seguinte (2002) para a oposição; ou, ainda, de governos eleitos, mas que não concluíram seus mandatos (G. Vargas em 1954, J. Quadros em 1961 e J. Goulart em 1964)?
Talvez nenhuma dessas possibilidades, pois o futuro está ainda por ser construído. Mas, há evidentes determinantes que, independentes das possíveis rotas de política econômica do governo federal, precisam ser considerados por análise que pretenda compreender melhor o momento atual, bem como o tempo em curso.
Isso porque parte-se do pressuposto de que o Brasil não vive atualmente mais uma crise de natureza conjuntural, como as que atingiram anteriormente os governos democráticos. Pelo contrário, reconhece-se que há problemas de ordem estrutural e que se assemelham – guardada a devida proporção – aos já vivenciados por diferentes gerações de brasileiros nas décadas de 1880 e 1930.
Tal como no passado, o Brasil vive atualmente o desafio de construir inédita ponte para o futuro, capaz de romper com o fardo dos anacronismos do passado que ainda o acompanha, sobretudo pela necessidade da formação de uma nova maioria política. A título de recordação breve, destaca-se que na década de 1880, o realinhamento político nacional ao projeto de País estabelecido pelos interesses emergentes da nova dinâmica da economia cafeeira paulista impulsionou a reforma política de 1881 (lei Saraiva), a abolição da escravatura (1888), a República (1889) e a Constituição Federal (1891).
Assim como o abandono de quase um século de estagnação econômica, que perseguiu a trajetória da economia brasileira após o fim do ciclo do ouro e passou pela formação de uma nova maioria política na década de 1880, nos anos de 1930, ocorreu algo equivalente. Também naquela oportunidade, as forças antiliberais reunidas em torno de G. Vargas possibilitaram convergir apoios variados, que da burguesia industrial à classe trabalhadora levou à transição do velho agrarismo para a sociedade urbana e industrial.
A nova maioria política edificou entre as décadas de 1930 e 1970 o Estado desenvolvimentista, os direitos trabalhistas e a sociedade urbana e industrial. Somente assim que o primitivismo da República Velha (1889 – 1930), ancorado no Estado Mínimo, na secundarização da política aos mercados e na exclusão da mão de obra nacional, ficou para trás.
Coincidentemente, as décadas de 1880 e de 1930 estavam, como atualmente, inseridas nas graves crises de dimensão global do capitalismo. A primeira, entre 1873 e 1896, demarcou tanto o enfraquecimento do império britânico como a emergência de uma segunda Revolução Industrial, enquanto a segunda crise de dimensão global, entre 1929 – 1947, configurou os Estados Unidos como o novo centro hegemônico mundial e a substituição dos antigos regimes colonialistas por novos Estados nacionais, que se multiplicaram por mais de três vezes no mundo.
Desde 2008, há, portanto, quase oito anos, uma crise de dimensão global encontra-se em curso sem solução visível à vista. Simultaneamente, percebe-se o salto de novas tecnologias de comunicação e informação associadas ao enfraquecimento do centro dinâmico estadunidense e à concentração monopolista do controle da produção fragmentada em cadeias globais de valor por não mais de 500 grandes corporações transnacionais. Emerge cada vez mais forte a Ásia, especialmente a China.
Diante disso, cabe o esforço de buscar compreender melhor o impasse ao qual se assenta o Brasil de hoje, oferecendo leitura menos limitada do que aquela comprometida com a ditadura do “curtoprazismo” permite fazer. Discutem-se, assim, novas exigências impostas pelas transformações mais recentes do capitalismo à política atual, assim como as possibilidades de reação e saída pelo Brasil.
Transformações recentes no capitalismo e a irrelevância da política
Durante a fase de hegemonia inglesa (1805 – 1914), quando o liberalismo era predominante, a política teve, em geral, o papel secundário e subordinado ao funcionamento dos mercados. Os sistemas políticos vigentes à época eram definidos, quando muito, por regimes censitários de experimentos democráticos, cuja participação era inferior a 10% do conjunto da população adulta.
Em síntese, a agenda política era definida por homens brancos ricos que participavam do colégio eleitoral, homologando, sobretudo, as exigências dos mercados.
Valia a crença de que a economia da livre iniciativa seria autorregulável, tornando o exercício da política interferência indevida e prejudicial aos mercados. Por conta disso, somente o Estado Mínimo seria aceitável, responsável que seria pelo exercício das funções de monopólio da tributação e arrecadação, do uso da violência pela força militar e da emissão e do controle monetário.
A irrelevância política e identificada como intrusa à boa prática das livres forças de mercado terminou sendo substituída pela emergência da centralidade da política em relação à condução das economias capitalistas entre a Depressão de 1929, sobretudo no fim da segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), e a década de 1970. Frente à crise de grave dimensão e sem saída autorregulável pelos mercados, coube ao Estado nos regimes democráticos, com voto universal e partidos programáticos, ser reinventado, agora como o centro da coordenação de um capitalismo organizado e com alta taxa de lucro, pleno emprego e distribuição menos desigual da renda.
Para isso, contudo, os mercados fizeram concessões necessárias ao atendimento de maiorias políticas sufragadas sistematicamente pelo voto universal e democrático. No mesmo sentido, o mundo saltou de 51 países na criação da ONU, em 1946, para quase 200 ao final do século 20, o que possibilitou a generalização das políticas públicas de dimensão nacional e regulação dos mercados.
Em cada país, em maior ou menor grau, vigorou o funcionamento dos sistemas nacionais de políticas públicas para diversas áreas, tais como educação, saúde, transporte, trabalho, entre outras. A economia capitalista seguiu mais regulada e impulsionada pela centralidade da política.
Mas, desde a década de 1980, o Estado vem sofrendo alterações significativas em nome da maior liberalização das forças de mercado, o que imprimiu nova fase da economia com relação à política. As reformas efetuadas são acompanhadas por crescente concentração e centralização do capital, cuja forma principal apresenta-se como monopólio que opera em cadeias de produção fragmentada e distribuição global.
Estas transformações importantes no modo de organização do capitalismo, bem como as exigências de natureza econômica entram em conflito, muitas vezes, com a vontade de maiorias políticas ungidas pelas normas da democracia política. Apesar de haver uma diversidade de partidos com propostas distintas que chegam aos governos por meio de eleições livres e diretas, a capacidade de provocar mudanças na sociedade reduziu-se consideravelmente.
Com o tempo, os partidos terminaram sendo pasteurizados, sem condições de transformar o discurso eleitoral em realidade governamental. Frente às exigências econômicas, não apenas das grandes corporações transnacionais, que não se coadunam muitas vezes com o tradicional Estado democrático, sobretudo na centralidade da política, assiste-se ao descrédito de partidos e da forma de fazer política conjuntamente.
Avança o individualismo com sinais da militância nas redes de comunicação sem coletividade e integração. Em consequência, percebe-se o esvaziamento das instituições de representação social (partidos, sindicatos, associações em geral), dos valores humanos e das utopias.
As eleições efetuadas tendem a expressar, em geral, agendas populares, embora cada vez menos aceitas pelos mercados, que as consideram incompatíveis com a dominância financeira na economia. O resultado tem sido a descrença maior da política, quando não a sua irrelevância, com o enquadramento dos poderes republicanos à subordinação dos interesses dos mercados, conforme recentemente observado na adoção dos programas de austeridade fiscal em vários países da União Europeia.
O movimento de secundarização da política imposto pelo poder crescente dos mercados monopolizados e pela dominância financeira, conta também com o apoio, na maior parte das vezes, dos meios de comunicação e da própria justicialização da política. A contínua propaganda dos meios de comunicação expondo os limites da política e seus constrangimentos às necessidades da economia, bem como a intervenção seletiva das cortes de justiça em favor do liberalismo econômico, constituem obstáculo novo e complexo, difícil de ser superado sem a constituição de uma nova maioria política.
Expressão disso encontra-se na crise de dimensão global iniciada em 2008, cujo receituário econômico adotado pelos governos mostra-se, em geral, convergente por partidos de ideologia socialista, trabalhista, conservadora, liberal, reformista, entre outras. Mesmo assim, a crise segue sem saídas exitosas, com resultados perversos, sobretudo para a classe trabalhadora.
Também a onda generalizada da globalização financeira desde a década de 1980 se efetivou, contando com o Consenso de Washington que tornou dominante o receituário adotado pelos governos de qualquer país, independentemente da linhagem política e ideológica. Dessa forma, as novas transformações no capitalismo de dimensão global visam convergir para o modelo único de funcionamento da economia que leva à irrelevância da política frente ao poder dos mercados.
Iludem-se, contudo, os governos quando aceitam facilmente a máxima de que não há alternativas de política econômica à ordem econômica neoliberal reestabelecida. O contrário parece ser verdadeiro frente à perversidade constatada pelo sofrimento humano no desemprego, na pobreza e na desigualdade social.
Também pelo âmbito da economia global, não há sinais positivos à vista. O quadro de estagnação secular tem sido cada vez mais uma marca do capitalismo deste início do século 21, conforme atestam os sinais de desempenho econômico e piora social.
O impasse Brasil
A transição política pelo alto, da ditadura militar (1964 – 1985) para o regime democrático atual, se mostrou suficiente para acomodar o impasse existente na sociedade brasileira proveniente do governo autoritário. Com isso, o fardo do passado anacrônico e antidemocrático prolongou-se sobre o novo que se quisera construir a partir de 1985, com o ciclo político iniciado pela Nova República.
Por força disso, o País já percorre 30 anos sem a realização das reformas de qualquer natureza, não obstante identificadas e defendidas por muitos, conforme constou de esplêndido documento de 1982 divulgado pelo PMDB (Esperança e Mudança). Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 foi um marco no avanço democrático da condição de cidadania no Brasil, porém, a sua regulamentação a posteriori foi realizada por governos refratários muitas vezes aos desígnios originais dos constituintes.
Ademais, o ritmo de expansão das atividades econômicas, necessário para materialmente sustentar o salto civilizatório proposto pela carta magna se apresentou frustrante ao longo dos anos. No período de 1981 a 2015, por exemplo, o crescimento da economia brasileira foi de apenas 2% como média anual, o que significou a semiestagnação da renda per capita dos brasileiros.
Não fosse a elevação da carga tributária, ocorrida especialmente nos segmentos mais pauperizados da população, as políticas sociais dificilmente teriam apresentado avanços, uma vez que o conjunto dos gastos sociais elevou-se de 13% para 23% do Produto Interno Bruto (PIB) entre as décadas de 1980 e 2010. Na mesma progressão relativa do gasto social transcorreu o aumento da ciranda financeira, capaz de absorver parte crescente dos recursos públicos com o pagamento governamental dos juros da dívida pública que saltou de menos de 2% para 8% do PIB a partir dos anos de 1980.
Para além da elevação da carga tributária, a política dos distintos governos democráticos adequou-se ao crescente poder dos mercados, acolhendo e implementando a desregulamentação da economia, a flexibilização dos direitos sociais e a privatização de parcela considerável do setor produtivo estatal. A equivocada crença difundida de que as forças de mercado se tornariam autorreguláveis foi a mesma que confiou à espontânea naturalidade retomada do desenvolvimento nacional.
Paralelamente, a prevalência do quadro de semiestagnação da renda per capita brasileira desde a crise da dívida externa (1981 – 1983) levou gradualmente à desconstrução da estrutura social que havia possibilitado o surgimento de novos sujeitos políticos relevantes nas lutas pelas reformas ao final da ditadura militar. Em outras palavras, o protagonismo da burguesia industrial e da classe trabalhadora alimentadora do novo sindicalismo terminou sendo gradualmente rebaixado.
Razão disso terminou sendo a decadência que assumiu a representatividade do setor industrial a menos de um décimo do PIB na década de 2010, ante a responsabilidade de 1/3 no conjunto da produção de bens e serviços do País nos anos de 1980. O encolhimento industrial no contexto vigente do baixo dinamismo nas forças de mercado esvaziou o poder da política assentado nos interesses produtivos empresariais e laborais, bem como enfraqueceu consideravelmente o centro geográfico de dominância econômica e política nacional.
Nesse sentido, destaca-se o processo concomitante de esvaziamento da importância de São Paulo no cenário nacional, cujo sintoma associa-se ao enfraquecimento dos atores vinculados à burguesia industrial e à classe trabalhadora organizada pelo novo sindicalismo. Este, que por sinal chegou a sindicalizar 1/3 da força de trabalho na década de 1980, registra como afiliados, atualmente, somente 1/7 dos trabalhadores.
As mudanças no interior da composição econômica e, por conseqüência, na estrutura social, com a emergência – em maior grau – da dominância financeira, expressaram o poder ampliado dos banqueiros e dos acionistas do mercado bursátil e, secundariamente, do agronegócio. São eles que centralizam o poder econômico e, por consequência, do sistema eleitoral de financiamento privado, desviam a cena política enquanto subordinação às forças dos mercados.
Os segmentos dos mercados especulativos, como o financeiro e o bursátil, além do agronegócio, conectam-se, em maior medida, com os interesses internacionais, ao contrário do observado durante a predominância da burguesia industrial e da classe trabalhadora organizada pelo novo sindicalismo. Juntos constituíam a capacidade de integrar interesses, formar convergência e liderança nacional.
Sem isso, a longa trajetória paulista no exercício da dominação dos interesses nacionais foi se perdendo no tempo. Os novos sujeitos econômicos que entraram em cena logo revelaram a ascensão decisiva das forças dos mercados especulativos sobre a dinâmica política. Sua ligação mais intensa com o conjunto dos interesses da globalização financeira deslocou a capacidade e a vontade de congraçar objetivos nacionais.
Nesse sentido, o estado de São Paulo passou a perder o protagonismo na política nacional, sem que outras expressões das forças regionais ou estaduais pudessem substitui-lo a tal ponto de ocupar idêntica função. No passado, a industrialização conferia a São Paulo o entrelaçamento de distintos interesses no conjunto do País, permitindo assumir a posição de liderança econômica e política nacional.
O aparecimento de certa divisão geográfica no território nacional, conforme observado nas votações atinentes às eleições presidenciais entre oposição e situação política, aponta, desde os anos 2000, para mais uma dimensão do complexo e atual impasse político brasileiro. De todo modo, confirma o esgotamento do ciclo político da Nova República em prover acomodação, seja pelo arcaico sistema político a operar sem representatividade e dominado pelo poder econômico, seja pela viciada relação corrupta do Estado com os mercados, especialmente com os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros.
Em síntese, o impasse Brasil decorre tanto da força dos mercados a impor a irrelevância da política, sobretudo dos seus principais resultados eleitorais, como do enfraquecimento paulista na formação de convergência e liderança nacional. Assim como o resultado das eleições presidenciais de 2014 não foi suficiente para viabilizar o programa econômico vencedor nas urnas, a federação brasileira segue sem um geográfico centro dinâmico e articulador político e econômico nacional.
A inflexão da política econômica
A significativa inflexão que a política econômica sofreu no Brasil desde o final de 2014, com a mudança da equipe governamental, se expressou rapidamente pela virulência da recessão e suas consequências nefastas, a mais grave dos últimos 25 anos. Nos 12 meses de 2015, a redução nominal do Produto Interno Bruto (PIB), estimada em R$ 745,3 bilhões, atingirá fundamentalmente 99% da população.
Os rentistas – que representam apenas 1% dos brasileiros mais ricos – receberão, em contrapartida, R$ 548 bilhões como ganho financeiro adicional devido à alta taxa de juros. Após 32 meses de elevação contínua na taxa básica de juros (Selic), o País direciona quantia próxima de 9% do PIB com o pagamento dos serviços do endividamento público.
Com isso, a dominância dos gastos financeiros responde por 94% de todo o déficit nominal do setor público brasileiro. Ao mesmo tempo, os recursos comprometidos com o pagamento dos serviços da dívida pública representarão quase a metade de todo o orçamento do governo federal.
Além de comprometer o funcionamento do Estado, uma vez que representa o desvio crescente dos recursos que deveriam ser aplicados nas despesas públicas, como nas áreas sociais e investimento, a política monetária inviabiliza o crescimento econômico e eleva o custo de produção do setor produtivo. Dessa forma, a dominância financeira gera recessão econômica, mais inflação e o aprisionamento do governo em torno do ajuste fiscal sem fim.
O programa de austeridade fiscal em curso desde 2015 impôs à economia brasileira um recuo entre 3% a 4% do nível de produção em relação ao ano passado, assim como inflação quase 60% maior e taxa média de desemprego quase duas vezes superior. A piora do quadro econômico e social deriva diretamente da reorientação da política econômica após o encerramento das eleições de 2014.
Naquela época, era a oposição a dizer que o País vivia uma crise brava e profunda desorganização nas finanças públicas. Por abandonar a trajetória da política econômica anterior, aceitando o diagnóstico da oposição e passando a governar com o programa dos perdedores, o Brasil terminou por confirmar, na sequência, o vaticínio neoliberal.
Não há saídas positivas sem a retomada do crescimento econômico, desprendendo-se radicalmente da dominância financeira que torna cada vez mais irrelevante a política no Brasil. Com o atual programa de austeridade, dificilmente a atividade produtiva obterá retorno positivo, capaz de competir com a dominância financeira. Salvo as atividades ilegais.
Desde 2011, os ganhos financeiros vêm proporcionando retornos positivos e maiores do que aqueles provenientes das atividades produtivas, pelo menos o que se observa a partir de uma amostra de empresas consideradas as maiores companhias de capital aberto e fechado que operam no Brasil. Enquanto, entre 2011 e 2015, a taxa de retorno das atividades produtivas decresceu 89,7%, em média, o ganho financeiro subiu 39,8% no mesmo período.
O movimento contrário ocorreu justamente na segunda metade dos anos 2000. Enquanto a taxa de retorno nas atividades produtivas caiu 4,1%, em média entre os anos de 2006 e 2010, os ganhos financeiros foram reduzidos em 35,9%.
Nesse sentido, não pode haver dúvidas de que se houve algum tipo de ensaio desenvolvimentista neste início do século 21, ele pode ter ocorrido no segundo mandato do presidente Lula (2006-10). Mesmo assim, com taxas de retorno levemente decrescentes nas atividades produtivas ante a queda brusca dos ganhos financeiros.
Apesar dos esforços da presidente Dilma em seu primeiro mandato na defesa do crescimento econômico, a taxa de retorno das atividades produtivas caiu aceleradamente, sendo de 73,9% entre 2001 e 2014. Com a recessão, em 2015, a queda na taxa de retorno das atividades produtivas desabou ainda mais (33,1%).
Paralelamente, aumentaram os ganhos financeiros, sendo de 11, 2% entre 2011 e 2014. No ano de 2015, a dominância financeira tornou-se imbatível.
A centralidade das finanças públicas tende a desviar cada vez mais a definição de qual é o papel do Estado brasileiro, tendo como indicador da qualidade o conceito fiscal de superávit ou déficit primário. Mas, a despesa governamental com o pagamento dos juros da dívida pública equivale a qualquer outro tipo de despesa do Estado. Nem mais, nem menos.
Ao isolar do conjunto das despesas governamentais o pagamento incomprimível do custo da dívida pública, introduz-se a diferenciação entre juros e as demais despesas consideradas menos importantes. Por conta disso, a contabilidade das contas governamentais realça o fato de o Estado fazer ou não economia com as despesas para garantir recursos orçamentários ao pagamento dos juros aos rentistas do dinheiro público. É a riqueza absorvida sem trabalho.
Em geral, a variável fundamental na determinação do comportamento das despesas financeiras é a taxa básica de juros estabelecida pelo Banco Central. Como a trajetória dos juros, por definir o preço do dinheiro, impacta o conjunto dos preços da economia e motiva o crescimento ou não das atividades produtivas, cabe relacionar o seu comportamento no tempo com a situação do salário médio real dos trabalhadores.
Assim, percebe-se, por exemplo, que, entre os anos de 2003 e 2014, a taxa de juros básica do Banco Central (Selic) foi, em média, de 6,8% acima da inflação anual. Para o mesmo período de tempo, o crescimento real do salário médio do trabalhador nas seis principais regiões metropolitanas foi de 1,3% ao ano.
Em síntese, para cada 1 ponto percentual de aumento real na taxa básica de juros do Banco Central, o salário médio real do trabalhador cresceu 0,19 pontos percentuais ao ano.
O mais grave ainda ocorreu no governo FHC. Entre os anos de 1995 e 2002, por exemplo, a taxa de juros básica do Banco Central (Selic) foi, em média, de 15,1% acima da inflação anual.
No mesmo período de tempo, o decréscimo real do salário médio do trabalhador nas seis principais regiões metropolitanas foi de -1,1% ao ano. Noutras palavras, a cada 1 ponto percentual de aumento real na taxa básica de juros do Banco Central, o salário médio real do trabalhador diminuiu -0,07 pontos percentuais ao ano.
O diferencial de tratamento entre os preços do dinheiro e do trabalho no Brasil revela preferências governamentais distintas. Ao mesmo tempo indica o poder do rentismo, capaz de encapsular o Banco Central na defesa de taxa de juros reais sempre positivas.
Em outras economias, o poder do rentismo também segue expressivo, porém não comparável com o Brasil. Nas economias ricas, a taxa de juros tem se mantido próxima de zero, com resultado real negativo, mesmo que sejam países com endividamento público muito maior que o brasileiro.
Por conta disso, o gasto público com o serviço do endividamento público tem sido muito menor do que o verificado no País. Os defensores dos juros altos insistem que o governo deve sempre cortar os demais gastos públicos, sobretudo aqueles de investimentos e sociais, para que, assim, seja possível economizar mais recursos orçamentários para dar solvência ao rentismo.
Atualmente, cresce a defesa da redução dos direitos sociais contidos na Constituição de 1988. A alegação é que parcela do povo brasileiro não cabe mais na economia, especialmente os mais pobres.
Somente a transição para uma nova política econômica pode salvar os brasileiros da regressão da trajetória constituída desde 2003. Para isso, três são as diretrizes gerais de orientação do conjunto das políticas governamentais que poderiam constituir um novo rumo à continuidade do projeto de Brasil justo e democrático.
A primeira diretriz encontra-se comprometida com a estabilização da economia brasileira a ser alcançada por meio da necessária convergência sistêmica entre as políticas cambial, monetária e fiscal. A segunda diretriz refere-se ao planejamento governamental orientador do médio e longo prazo, comprometido com o movimento maior da transição ecológica no interior dos processos produtivo e distributivo atualmente em curso no País.
Para isso, a redefinição do padrão de financiamento do conjunto dos investimentos que busque a valorização do ambiente de negócios assentados na economia de baixo carbono e reconexão do papel da Petrobras e defesa da engenharia nacional. Essa determinação deveria contar com a reorientação tanto do sistema tributário e de incentivos governamentais como a constituição de orçamento público que tratem de assegurar a passagem para atividades de produção e consumo ecologicamente sustentáveis.
A política de desenvolvimento produtivo deve definir metas que assegurem este compromisso governamental. Da mesma forma, a constituição do orçamento de capital, imune aos cortes orçamentários no governo federal, deveria seguir o estabelecimento de uma coordenação no conjunto dos investimentos em infraestrutura econômica e social para que sejam realmente implementados.
O objetivo na redução do custo de vida da população, especialmente àquela de menor poder aquisitivo e residente nos grandes centros urbanos, bem como na ampliação das atividades de produção e distribuição possibilitaria tornar o sistema econômico mais eficiente e competitivo. Isso porque os investimentos em infraestrutura promovem a eficiência e os custos menores de produção e distribuição no transporte fluvial e terrestre, melhorando o bem-estar da população em habitação, saneamento, saúde e educação. O Brasil segue sendo, ainda, um país em construção.
A terceira diretriz trata da recomposição da capacidade de gasto do Estado que deveria ocorrer por meio da progressividade do sistema tributário, objetivando simultaneamente reduzir o peso relativo dos impostos indiretos e elevando os diretos (propriedade e grandes fortunas). Ademais, proceder-se-ia a necessária revisão do sistema de isenções e subsídios adotados pelos governos federal, estaduais e municipais, atualmente.
Também as despesas públicas deveriam estar submetidas ao novo sistema de planejamento e monitoramento capaz de elevar sua qualidade e eficácia distributiva. Em função disso, uma segunda geração de ações no enfrentamento da desigualdade no Brasil estaria a caminho de ser aberto para reduzir tributos dos pobres e elevar os dos ricos, sem aumentar a carga tributária geral.
Da mesma forma, a simplificação e a transparência da gestão pública implicariam elevar eficiência e reduzir custos com o funcionamento do setor público, sobretudo, aquelas vinculadas às atividades meio. A passagem para o governo digital e de gestão matricial implicará coordenação e monitoramento de todo o gasto público compatível com a maior produtividade neste início do século 21.
O avanço da direita
Após a unificação em torno do golpe de 1964 e sua longeva hegemonia durante a ditadura militar, a direita no Brasil se fragmentou suficientemente para perder importância relativa a partir da retomada do regime democrático na segunda metade da década de 1980. Apesar de silenciosa, a direita conseguiu manter-se minimamente ativa e aguerrida aos seus interesses para manter a transição política pelo alto do autoritarismo à democracia. Ou seja, sem a participação popular, como na derrota das eleições diretas em 1984 e bem representada nos governos neoliberais de F. Collor (1990-92) e FHC (1995-2002).
Com a ascensão dos governos de composição PTistas desde 2003, a direita reduziu-se consideravelmente. Juntando as agremiações partidárias do campo conservador, nota-se a sua redução de 42,1%, em 1998, para 33,2%, em 2006, no total da participação dos parlamentares brasileiros eleitos. Isto é, uma queda de 21,1% entre os anos de 1998 e 2006.
Mas, a partir da reeleição do presidente Lula, em 2006, a direita voltou a gradualmente se unificar e atuar organizadamente em várias frentes do espectro político nacional. O fortalecimento da direita no Brasil encontra-se cada vez mais disperso no interior dos meios religiosos, policiais e jurídicos, como exemplo do crescimento nas pautas conservadoras de família, gênero e segurança pública.
Também se percebe a reorganização da direita através da atuação direta no interior dos meios de comunicação, seja pela imprensa monopolizada em poucas famílias, seja pela internet e pelas redes sociais. Nas ruas e manifestações, a direita voltou a se fazer presente, especialmente pela manipulação do ideário neoliberal no interior da classe média tradicional.
No sistema partidário, a ascensão da direita se apresenta ainda mais significativo a partir da segunda metade dos anos 2000. Se, em 2006, a representação parlamentar nas agremiações partidárias conservadoras contava 33,2% do total dos parlamentares eleitos, em 2014, passou a ser de 43,5%, o que implicou crescimento de 37% na presença de direita no legislativo federal.
Nos dias de hoje, a pauta econômica da direita brasileira requer mais do que reformas neoliberais de segunda geração, com a desconstitucionalização dos direitos sociais gravados na Constituição Federal de 1988. Defende a derrocada dos setores empresariais ainda descontaminados dos capitais estrangeiros, como na engenharia nacional.
Também constam do ânimo recente da direita a recuperação dos valores conservadores e o esforço contínuo pela inviabilização das forças progressistas. Nesse sentido, há o traço continuado da trajetória direitista brasileira se colocar sempre em contraposição à possibilidade de construção de um país justo e democrático.
A direita tradicional não reivindica a defesa do passado e seus valores, como se verifica em outros países, até porque o passado no Brasil tem sido, em geral, muito inferior ao presente. Por isso, os conservadores de hoje tampouco defendem, por exemplo, os anos de 1990, mas se apresentam contrários aos avanços que foram possíveis de ser construídos desde o ano de 2003.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos pertencentes à Universidade Estadual de Campinas. É presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-presidente do IPEA.
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