Voluntariado e o ‘animus’ caritativo
Enfrentamos atualmente diversas modificações sociais, culturais, econômicas e ético-morais. Dizem que vivemos como um pêndulo de um relógio: ora vai para um lado, ora vai para outro, entre avanços e retrocessos. A priori, muitas vezes deixamos de evoluir devido à onda de ódio a que estamos frequentemente submetidos também em razão das denominadas fake news e, do mesmo modo, por causa da frequente tentativa de redução de nossos direitos. Como dissemos: dizem! Talvez neste aspecto Zigmunt Bauman tornou-se para nós um profeta ao descrever a modernidade/ contemporaneidade com o conceito “amor-líquido”, “realidade-líquida” etc. Provavelmente, Edgar Morin, Maturana e Luhmann nos ensinam/ ensinaram novos caminhos para interpretar a realidade.
Sim, podemos enxergar a realidade por vários prismas (Maturana), ver nossa rotina como um grande sistema interligado (Luhmann) ou como uma complexidade que está sendo tecida conjuntamente (Morin). Então, podemos retomar a crença de que nem tudo está perdido, nem tudo é preto e branco e que nem tudo é avanço ou retrocesso. Estamos sempre caminhando ou tecendo juntos.
Ao nos depararmos com o que foi noticiado no “Jornal Hoje” da TV Globo, no dia 5 de fevereiro de 2019[1], sobre os trabalhos voluntários desenvolvidos na região de Brumadinho, com o seguinte título “Voluntários montaram uma lavanderia em Brumadinho para limpar as roupas dos bombeiros”, podemos ver na edição vários voluntários que foram auxiliar os bombeiros com as lavagens de suas roupas. Como de praxe, todo militar é responsável pelo seu uniforme e, por isso, deve zelar por ele. Entretanto, diante da catástrofe (ou crime) ambiental, a rotina de salvamento foi e ainda é um trabalho incessante e, para auxiliá-los, um grupo de voluntários dispôs-se a ajudar na lavagem de suas roupas. E mais: diante da tamanha comoção (fraternidade ou amor humano), os voluntários ainda colocaram bilhetes, mensagens de incentivo aos bombeiros.
Daí nos perguntamos: a humanidade está perdida? Ou alguns seres humanos não encontraram a razão de viver? Assim, partimos para compreender que o trabalho voluntário é um meio pelo qual o ser humano pode se encontrar e desenvolver para, assim, encontrar razões que o façam viver, não somente motivados por preceitos religiosos de auxílio, mas pelo desejo de amar cada vez mais.
Sementes de esperanças
Também podemos repetir “a ação voluntária, o serviço voluntário ou o voluntariado é a forma com que cada vez mais pessoas procuram contribuir para uma nova ordem social, conscientes da sua responsabilidade ante uma sociedade desigual”. (Paes, 2017. p. 440). O amor não é reconhecido somente em palavras, mas em atos concretos, o que tornou La Fraternité um dos grandes alvos da Revolução Francesa, em 1789, sobrevindo o Iluminismo. Inspirados por este ideal, positivamos na Constituição Federal de 1988 a busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I) e depois estabelecemos a ordem social nos pilares do trabalho, do bem-estar e da justiça social. Neste propósito, o trabalho voluntário no Brasil aparece como um meio de alcançar esses objetivos.
A prestação de serviço gratuito sempre esteve presente em nossa história, desde a descoberta do Brasil pelos portugueses, mas apenas ganhou notoriedade com as Organizações da Sociedade Civil ou entidades do Terceiro Setor (Cardoso, 2005, 2006 e 2008).
Ao longo dos anos, principalmente com a chamada reforma do Estado nos anos 1990, criou-se a Lei nº 9.608, do serviço voluntário, de 18 de fevereiro de 1998, formalizando, assim, o trabalho voluntário prestado por pessoas físicas a pessoas jurídicas, sejam elas de direito público interno (prestado aos órgãos públicos), sejam para entes de direito privado sem fins econômicos ou fins não lucrativos.
Consoante o entendimento do eterno mestre Amauri Mascaro, “os voluntários procuram dar parte do seu tempo para esse atendimento (…), oferecem seus serviços em hospitais e clínicas públicas cuidando de pacientes, inclusive aidéticos. Milhares são pais ‘postiços’ ou irmãos mais velhos para crianças órfãs. Aumenta a colaboração daqueles que querem ajudar com o seu trabalho as creches e os programas escolares, educacionais e habitacionais. Voluntários reformam apartamentos destruídos e constroem conjuntos habitacionais para a população carente”.
O terceiro setor, também conhecido como independente e voluntário, é o domínio no qual padrões de referência dão lugar a relações comunitárias, em que doar o próprio tempo a outros toma o lugar de relações de mercado impostas artificialmente, baseadas em vender a si mesmo ou seus serviços a outros. Nesse setor, muitos estão envolvidos em programas de autoajuda, como os Alcoólicos Anônimos, e de reabilitação de drogados. Profissionais (advogados, contadores, médicos e executivos) doam seus serviços a organizações voluntárias. (2014. p. 248).
Mesmo diante de um serviço prestado à população de forma voluntária, ainda encontramos aspectos práticos, de ordem jurídica e até confusão por parte do Poder Judiciário quando se levanta a questão sobre relação de emprego e/ ou de trabalho, qual regime aplicar, como reconhecer etc. A doutrina verifica essa realidade e leciona que a justiça do trabalho não pode obstar o trabalho voluntário, literis:
“O serviço comunitário é, sem dúvida, uma forma de trabalho indispensável para a sociedade, numa época em que a solidariedade faz-se cada vez mais necessária. O direito do trabalho não deve ser um obstáculo para a sua ampliação, e assim seria caso pretendesse estender sua mão a esse setor para declarar relações de emprego prestadas a organizações não governamentais ou pelo voluntariado, sem fins lucrativos, com espírito assistencial. Não é empregador aquele que organiza serviços comunitários sem caráter profissional, porque o vínculo que se forma entre as pessoas que querem colaborar nessas atividades é assistencial, sem o animus contrahendi, indispensável para a formação do contrato de trabalho disciplinado pelas leis.” (Nascimento, 2014. p. 249).
O amor requer mais gestos do que palavras
Abordados alguns dos aspectos motivacionais e legais concernentes ao tema, citemos dois casos de trabalho voluntário desenvolvidos por instituições ligadas à Igreja Católica: uma é o Voluntariado Jovem, dentro do Programa Magis Brasil, desenvolvido pela Companhia de Jesus[2] (ordem religiosa dos jesuítas), e o trabalho voluntário desenvolvido pelo Centro de Referência para Refugiados, mantido pela Caritas Arquidiocesana de São Paulo, organismo ligado à Igreja Católica na cidade de São Paulo.
O Programa Magis Brasil[3] é uma ação de evangelização dos jesuítas no Brasil para auxiliar os jovens no encontro consigo, com a sociedade e com Deus, através de algumas ações, tais como a aplicação dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, Voluntariado (Jovem) e inserção sociocultural, pedagogia e metodologia do trabalho (com base na pedagogia inaciana), formação socioambiental e promoção da vocação jesuíta. Para nós, o que chama mais a atenção é o trabalho voluntário desenvolvido pelo Voluntariado Jovem.
Antes de mais nada, é necessário ter ciência de que a Companhia de Jesus está espalhada em quase todo o território brasileiro e possui diversos centros de trabalho com os jovens, considerados também como trabalho em rede[4], situados nas cidades de Belém (PA), Brasília (DF), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Cascavel PR), Rio de Janeiro (RJ), Teresina (PI), Manaus (AM), Santa Luzia (MG), Russas (CE), Recife (PE), Capim Grosso (BA), São Leopoldo (RS), Curitiba (PR), Santarém (PA), Belo Horizonte (MG), João Pessoa (PB), Feira de Santana (BA) e Anchieta (ES).
Nestes espaços são proporcionadas experiência de voluntariado e inserção sociocultural, em que jovens são estimulados ao desafio à convivência de modo simples, comunitário e despojado, e os trabalhos voluntários são realizados em outras entidades, assim chamadas de parceiras, entidades que trabalham com moradores de rua, imigrantes, refugiados etc. Geralmente, estas atividades são desenvolvidas nos períodos das férias escolares.
Basicamente, os jovens ficam hospedados nesses locais, onde realizam suas refeições, descanso, formação e momento de espiritualidade, tendo por base o voluntariado realizado, ou seja, a proposta é receber formação, praticar momentos de espiritualidade e fazer o trabalho voluntário nas entidades parceiras. Com isto, há um misto de fé e prática propostas aos jovens, ocasionando a eles momentos de contemplação da realidade e da dimensão espiritual onde estão inseridos. Assim, busca-se acreditar que através da realidade vivida é possível “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”.
Nesta dinâmica, encontramos todo respaldo em nosso ordenamento jurídico brasileiro, porque além de poder expressar toda a liberdade religiosa (art. 5º, incisos IV e VIII da Constituição Federal), os jesuítas utilizam da organização religiosa (art. 44, inciso IV do Código Civil) para proporcionar o trabalho voluntário junto às organizações da sociedade civil existentes nas cidades onde possuem os centros Magis[5].
Um pouco diferente disso, o Centro de Referência para Refugiado na Caritas Arquidiocesana de São Paulo, busca somente fomentar o trabalho voluntário, chamando, assim, de Programa de Voluntariado.
A Caritas é uma entidade da sociedade civil brasileira ligada à Caritas Brasileira, Caritas Internacionalis e diretamente à Arquidiocese de São Paulo, que mantém trabalho de assistência, integração, saúde mental e proteção aos refugiados e solicitantes de refúgio há mais de 30 anos em São Paulo, sendo compreendida também aqui como organização religiosa nos termos da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, no art. 2º, inciso I, alínea “c”.
Numa iniciativa que remonta à Comissão de Justiça e Paz, o Centro de Referência para Refugiados tem sido responsável por ações em prol do desenvolvimento das políticas públicas necessárias ao cumprimento do compromisso brasileiro pela proteção internacional de pessoas.
A Caritas possui convênio com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), além de parceria com dezenas de outras entidades (dos setores público e privado e do terceiro setor). Ao lado da Caritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, a Caritas ocupa a posição de representante da sociedade civil junto ao Conare – Comitê Nacional para os Refugiados, órgão vinculado ao Ministério da Justiça (Camargo, 2015), algo estabelecido pelo art. 14, inciso VII da Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.
Geralmente, duas vezes ao ano, a Caritas lança um edital chamado de termo de referência[6] para anunciar a possibilidade de selecionar os voluntários, que geralmente desenvolvem o trabalho por quatro meses, com exigência mínima de oito horas semanais, às segundas, terças, quintas ou sextas.
O voluntário da Caritas – ou assistente voluntário – será designado para auxiliar o serviço de um dos seguintes setores do Centro de Referência para Refugiados: primeiro atendimento, assistência social, integração local, proteção, saúde mental ou assessoria de comunicação. O voluntário pode desempenhar algumas das seguintes atividades: atendimento geral de solicitantes de refúgio e refugiados, realização de triagem e agendamento dos solicitantes de refúgio e refugiados que buscam os serviços da Caritas, realização de registro dos novos solicitantes de refúgio, orientação sobre procedimentos para a solicitação de refúgio e sobre os direitos e deveres dos solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil, auxílio no encaminhamento para os serviços de moradia, saúde, cursos e inclusão profissional, atuação como intérprete e tradutor quando necessário, auxílio ao setor de comunicação da Caritas na produção de conteúdo e relação com a mídia, auxílio ao setor de saúde mental da Caritas, no atendimento psicológico de solicitantes de refúgio e refugiados, além de outras atividades necessárias aos trabalhos do Centro de Referência para Refugiados da Caritas.
Mesmo em se tratando de um organismo da Igreja Católica, não há nesse local a possibilidade de propagação da fé como no caso do Programa Magis Brasil, tendo em vista o alto nível de circulação de migrantes, solicitantes de refúgio e refugiados com outras profissões de fé, sem contar que alguns empregados que trabalham lá professam outra fé. Todavia, vale salientar que o que motiva os dirigentes da Caritas é a fé em Jesus Cristo, segundo a expressão: “Estava nu e vestistes-me; adoeci e visitastes-me; estive na prisão e foste me ver.” (Evangelho de Mateus, capítulo 25, versículos 35 a 45). Ademais, importa considerar que Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, in memoriam, esteve à frente da Arquidiocese de 1970 até 1998 e tanto lutou pelos direitos humanos na ditadura militar no Brasil e auxiliou na promulgação da Lei dos Refugiados (Andrade, 2017. p.66).
Por outro lado, temos que reconhecer que é uma experiência inexplicável, pois o voluntário tem a possibilidade de conhecer a realidade de um migrante ou deslocado, seja ele de algum país da África, da Síria, do Líbano ou até mesmo da Oceania e, com isto, pode aprender na prática o que é empatia, o que é ser perseguido, o que é ter forças para lutar e encontrar coragem de buscar a escolha pela vida, podendo então fazer aquilo que chamamos de experiência humana, com a qual contribuirá para a sua própria formação humana, não dada por livros ou professores, mas lecionada pela própria convivência humana.
Outro aspecto relevante é a qualificação ou requisitos que o candidato ao trabalho voluntário precisa ter para auxiliar a Caritas no atendimento ao solicitante de refúgio e refugiado, como: conhecimento avançado de inglês, espanhol, francês ou árabe, por conta do atendimento de pessoas que não falam português; ensino superior cursando ou completo em quaisquer áreas, mas, principalmente, em serviço social, relações internacionais, ciências sociais, direito, psicologia, jornalismo, comunicação social; ter, no mínimo, 21 anos; flexibilidade e adaptabilidade para lidar com pessoas em um contexto cultural diversificado (pois o local chega a receber mais de 85 nacionalidades diferentes); capacidade de trabalhar sob pressão de forma eficiente; capacidade e ética profissional para manter sigilo e confidencialidade a respeito das informações sobre os solicitantes de refúgio e refugiados das quais tiver conhecimento no desempenho de suas funções (isto porque o processo de reconhecimento da situação de refúgio exige o sigilo, tendo em vista que algumas pessoas precisam sair da sua terra natal às pressas, devido a perseguições).
Mesmo diante da complexidade do trabalho da Caritas e da motivação cristã, a instituição segue os parâmetros de transparência e prestação de contas estabelecidas no ordenamento jurídico e resoluções do Conselho Federal de Contabilidade – CFC, principalmente as relativas ao trabalho voluntário, Resolução CFC nº 1.409, de 21 de setembro de 2012 e Norma Brasileira de Contabilidade – ITG 2002 (R1), de 21 de agosto de 2015.
No balaço patrimonial em 31/12/2017, a Caritas[7] contabilizou como receita através do trabalho voluntário no Centro de Referência o montante de R$ 73.612,80; ou seja, esse valor somente entra como serviço voluntário. Contudo, isso não gera receita para a instituição. Serve para mensurar a importância do trabalho voluntário e de sua frequente necessidade.
Do princípio ao fim, sempre amor
Como podemos observar, o amor à humanidade pode transpor barreiras, mesmo quando elas são construídas para acender o ódio e a raiva humana. São, porém, desfeitas. O amor pode surgir de várias formas, como na lavagem de um uniforme de bombeiro, numa experiência humana e espiritual ou até mesmo na solidariedade a um migrante ou refugiado.
O ser humano apresenta complexidades. É capaz de sentir um amor líquido, esvaindo-se a cada nova experiência. Ao observarmos as nossas realidades sob diversos pontos de vista, podemos encontrar nas pessoas o desejo de ajudar.
Nas lições de Amauri Mascaro, o que alimenta o trabalho voluntário não é o animus contrahendi, mas o animus assistencial, que, aliás, pode ser compreendido como animus caritativo nas lições da Caritas, que, por acaso, não se chama assim, mas é assim conhecido justamente para resgatar na humanidade o amor que lhe é existente em abundância[8].
Referência bibliográfica:
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S, Jose Eduardo Sabo. Fundações, Associações e Entidades de Interesse Social. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[1]
Ver matéria no site. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/7356713/programa/>. Acesso em: 07 mar. 2019.
[2]
Disponível em: <http://www.jesuitasbrasil.com/newportal/juventude/>. Acesso em: 07 mar. 2019.
[3]
Disponível em: <https://magisbrasil.com/quem-somos>. Acesso em: 07 mar. 2019.
[4]
Disponível em: <https://magisbrasil.com/nossa-rede>. Acesso em: 07 mar. 2019.
[5]
Aqui, utilizamos Magis para referenciar os espaços onde são desenvolvidas as atividades. Mas, a palavra Magis possui o seguinte significado: Magis, termo em latim que quer dizer o mais, o maior, o melhor, é algo que sempre podemos descobrir dentro de cada pessoa, como um impulso a desejar grandes coisas, uma sede de infinito, um excesso que habita cada ser humano.
[6]
Disponível em: <https://www.caritassp.org.br/voluntariado/>. Acesso em: 07 mar. 2019.
[7]
Disponível em < https://www.caritassp.org.br/wp-content/uploads/2018/12/Balan%C3%A7o-2017-1.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2019.
[8]
Assim terminam estas frases, devido à crença no amor e na humanidade.
É advogado, mestrando em Direito pela PUC/SP, membro do NEATS – Núcleo de Estudos Avançados do 3º Setor e da comissão do Direito do Terceiro Setor da OAB/SP.
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