Xi Jinping, o líder inconteste da China
A desintegração da União Soviética, em 1991, e o colapso de seu Partido Comunista chocaram Xi Jinping, que classifica os eventos como “dolorosos demais para serem lembrados”. A obsessão em evitar destino similar na China motiva suas políticas de fortalecimento ideológico, centralização do poder e cultivo de um sentimento de propósito e disciplina. A outra fonte de inspiração remonta ao passado glorioso do antigo Império do Meio, que teve a maior economia do mundo durante grande parte da Era Cristã – até encontrar a Revolução Industrial britânica no século XIX.
A exemplo de Donald Trump, nos EUA, o líder inconteste da China também ambiciona tornar seu país grande de novo. No seu léxico pessoal, esse processo significa o “rejuvenescimento da nação” para a realização do “Sonho Chinês”, que só estará completo com o retorno de Taiwan e o restabelecimento da integridade territorial ameaçada durante o “Século de Humilhação” – o período entre meados dos séculos XIX e XX, no qual a China foi invadida por potências estrangeiras.
A narrativa de Xi coloca o Partido Comunista como protagonista imprescindível nessa trajetória. Também inclui estratégias para colocar a China na liderança tecnológica em setores chave da economia do futuro, entre os quais Inteligência Artificial, baterias e carros elétricos, energia solar e eólica e semicondutores. Tudo isso embalado na crença de que o Ocidente, em particular os EUA, está em decadência, enquanto a China e o Sul Global, em ascensão. “O mundo está passando por mudanças profundas não vistas em um século, mas o tempo e o momentum estão do nosso lado”, disse Xi em 2019.
A relação entre ele e a organização a que se dedica a fortalecer é marcada por uma alta voltagem de drama, perdas e sacrifício pessoal. Desde a infância, sua história se confunde com a história da China e do Partido. Seu pai, Xi Zhongxun, lutou ao lado de Mao Zedong na guerra civil contra os nacionalistas de Chiang Kai-Shek, que terminou na vitória dos comunistas em outubro de 1949. Na primeira década do novo governo, Zhongxun assumiu vários cargos de liderança na capital do novo governo, Pequim, entre os quais chefe do Departamento de Propaganda e Vice-Primeiro-Ministro. Mas, como muitos revolucionários, ele foi tragado pela turbulência de disputas internas que tomou conta do Partido a partir do fim dos anos 50. No início da década seguinte, Xi Zhongxun foi acusado de permitir a publicação de um livro com supostas críticas veladas a Mao. Como resultado, perdeu suas posições e foi colocado em prisão domiciliar, o que abalou o sentimento de segurança e estabilidade em que a família vivia em Pequim. Xi Jinping tinha 9 anos quando o pai caiu em desgraça.
Pouco tempo depois, a situação se agravaria ainda mais. Em 1966, Mao deu início à Revolução Cultural, um dos mais traumáticos eventos da história recente da China, que levou a um violento ataque a líderes do Partido Comunista e a intelectuais, ao fechamento de escolas e universidades, à demonização da cultura ocidental e à perseguição, pelos temidos Guardas Vermelhos, dos classificados como inimigos de classe.
Historiadores estimam que entre 1,5 milhão e 2 milhões de chineses morreram no período. “Bombardear o quartel general!” era o grito de guerra de Mao para a ofensiva contra as instituições estabelecidas. No caos que tomou conta da China, as acusações contra Xi Zhongxun transformaram todos os integrantes de sua família em alvos de campanhas e ataques contra supostos antirrevolucionários. No fim dos anos 60, a meia-irmã de Xi Jinping, Heping, mãe de dois filhos, cometeu suicídio.
Sessões públicas de humilhação
Estigmatizado como filho de um “reacionário”, o futuro líder da China foi submetido a sessões públicas de humilhação e, quando tinha cerca de 14 anos, colocado em uma detenção juvenil durante o inverno. “À noite, eu dormia no chão gelado. Eu usava um tijolo de gelo como travesseiro. Meu corpo todo estava coberto por piolhos. Eu desabei, consumido pela doença e até pensei na morte”, relatou em 1984, segundo o livro The Party’s Interests Come First: The Life of Xi Zhongxun, Father of Xi Jinping, de Josef Torigian. A família ficaria oito anos sem ver o patriarca Zhongxun.
Quando os Guardas Vermelhos começaram a sair do controle, Mao decretou que os jovens estudantes das cidades deveriam deixar as escolas e viver na zona rural, para realizar trabalhos braçais e aprender com os camponeses. Aos 15 anos, Xi Jinping foi enviado à vila Liangjiahe, a 870 km de Pequim. Desolada, pobre e sem eletricidade nem saneamento básico na época, Liangjiahe fica na província de Shaanxi, conhecida por ter Xi’an e os milenares Guerreiros de Terracota e Yan’an, o lugar que serviu de base para os comunistas nos últimos anos da Guerra Civil contra os nacionalistas. Os revolucionários, incluindo Mao e Xi Zhongxun, viviam em cavernas escavadas nas montanhas da região. Xi Jinping permaneceu em Liangjiahe até 1975 e gradualmente se destacou como uma liderança local. Em 1973, ele protagonizou a primeira de nove tentativas frustradas de ser aceito como membro do Partido Comunista da China. Seu histórico familiar depunha contra suas pretensões.
A tentativa bem-sucedida veio em 1974, quando Xi tinha 21 anos e caminhava para o fim de sua experiência na zona rural. No ano seguinte, ele entraria na Universidade Tsinghua, em Pequim, onde se formou em Engenharia Química. Os sete anos em que passou na zona rural acabaram se tornando uma referência para medir sua tolerância ao sofrimento. “Mais tarde na vida, sempre que eu encontrei dificuldades, eu pensava naquele período. Como eu poderia não seguir em frente agora quando eu pude trabalhar sob aquelas condições extremamente difíceis? As dificuldades de agora não se comparam às dificuldades de então”, escreveu em um texto autobiográfico de 1998.
O destino da China e da família Xi mudou depois de 1976, quando a morte de Mao colocou fim à Revolução Cultural e ao turbulento período da história do país. Como muitos revolucionários que caíram em desgraça nos anos 60, Xi Zhongxun foi reabilitado. Outro comunista com trajetória semelhante foi Deng Xiaoping, o líder que saiu vitorioso na disputa de poder que se seguiu à saída de cena de Mao. Sob seu comando, o Partido Comunista iniciou, em dezembro de 1978, o processo de reforma e abertura que provocaria uma nova revolução na China, com o mergulho na globalização e sua transformação na fábrica do mundo.
Com Deng, o pragmatismo passou a orientar as decisões do Partido. A China normalizou as relações diplomáticas com os Estados Unidos, vistas pelo novo líder como essenciais para a atração de capital, tecnologia e know how de gestão empresarial. Xi Zhongxun se tornou o chefe do Partido na Província sulista de Guangdong, próxima de Hong Kong e Macau e conectada com a diáspora chinesa na Ásia. Nessa posição, ele desempenhou papel central na criação das primeiras Zonas Econômicas Especiais (ZEE), áreas regidas por regras favoráveis à atração de investimentos estrangeiros. A mais célebre delas é Shenzhen, uma vila de pescadores que se transformou em um dos motores de inovação da China e do mundo – é lá que estão as sedes da Huawei e da BYD.
A trajetória do pai alimentou a expectativa de que Xi Jinping aprofundaria as reformas liberalizantes na China, com gradual redução do papel do Estado e até uma maior abertura política. Depois de assumir o comando do Partido em 2012, o novo líder se revelou transformador, mas não na direção que muitos esperavam.Sua ascensão na hierarquia de poder começou pouco depois da formatura na Universidade Tsinghua, com posições em governos local, provincial e nacional. De 1985 a 2002, ele desempenhou uma série de funções em Fujian, a província costeira que fica em frente a Taiwan. De 1999 a 2002, ele foi governador da região, cargo que deixou para assumir o comando de Zhejiang, uma das províncias mais ricas da China, célebre pelo protagonismo do setor privado – entre outras empresas, é a sede do Alibaba e do DeepSeek, a revelação chinesa na área de Inteligência Artificial.
Chegada ao Politburo e à liderança do país
Xi alcançou projeção nacional em 2007, quando se tornou um dos nove integrantes do Comitê Permanente do Politburo, o órgão máximo de poder na China, depois de chefiar a cidade de Xangai por alguns meses. Na época, o líder do Partido Comunista e do país era Hu Jintao. Logo ficou claro que Xi o sucederia em 2012, no 18º Congresso Nacional do Partido Comunista. No dia 15 de novembro daquele ano, o novo dirigente da China subiu a um palco no Grande Palácio do Povo, na Praça da Paz Celestial, como líder do Comitê Permanente do Politburo, que havia sido reduzido de nove para sete integrantes.
Quando chegou ao topo do poder, Xi era menos conhecido na China do que sua mulher, Peng Liyuan, uma célebre cantora de músicas folclóricas e patrióticas, que ganhou proeminência na trupe artística do Exército de Libertação Popular. Em algo raro na época, eles se conheceram quando Xi era divorciado. O casamento veio em 1987. Quatro anos mais tarde nasceu a filha do casal, Xi Mingze, que estudou na Universidade de Harvard.
O novo timoneiro tinha uma visão crítica da organização que passaria a comandar. Na década decorrida desde a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, o crescimento do PIB havia alcançado a média de 10,4% ao ano. A corrupção se expandiu, ao mesmo tempo em que a busca do enriquecimento se estabeleceu como a nova crença do país. Xi acreditava que o Partido Comunista vivia uma crise existencial e precisava se purificar do ponto de vista moral e ideológico. Logo que assumiu o controle da China, ele lançou uma campanha anticorrupção que, desde então, levou à punição de 4,7 milhões de pessoas. “Nosso Partido enfrenta muitos desafios severos e existem muitos problemas urgentes que precisam ser resolvidos, particularmente problemas como corrupção, distanciamento do povo e comportamento excessivamente formalista e burocrático”, disse quando chegou à nova posição. “Se permitirmos que a corrupção se espalhe, ela acabará levando à destruição do Partido e do Estado”, ressaltou no ano seguinte.
Na visão de Xi, a organização necessitava ser revitalizada, com aumento da disciplina e do comprometimento ideológico com o marxismo-leninismo, o maoísmo e seu próprio pensamento. Com isso, a legenda poderia exercer com maior eficácia seu papel essencial na condução da China. “Leste, Oeste, Sul, Norte e Centro – o Partido lidera tudo”, declarou na sua recondução ao poder, em 2017. Além da crença na liderança absoluta da organização, Xi via a necessidade de centralização do poder em suas mãos para promover as mudanças que considerava necessárias. Entre o início das reformas econômicas de Deng Xiaoping, em 1978, até a chegada de Xi ao poder, em 2012, o Partido implementou um sistema de liderança coletiva entre os integrantes do Comitê Permanente do Politburo, em reação aos anos de Mao, que exerceu o poder de maneira personalista e, muitas vezes, arbitrária.
Em 2016, o Comitê Central do Partido Comunista emitiu um comunicado no qual apresentava Xi Jinping como o “núcleo” da liderança da organização. Nos dois anos seguintes, o “Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para a Nova Era” foi inscrito nas Constituições do Partido e do Estado chinês. Até então, só o “pensamento” de Mao era mencionado. Xi também assumiu de maneira imediata, em 2012, os três cargos que definem o poder na China: secretário-geral do Partido Comunista, presidente do país e chefe da Comissão Militar Central, que comanda as Forças Armadas. Seu antecessor, Hu Jintao, teve que esperar dois anos para acumular todas as funções. O nacionalismo aumentou, o estudo das ideias de Xi se disseminou no Partido, em escolas e em universidades, e surgiram aplicativos de celular para propagá-las.
A centralização de poder levou ao abandono de regras e instituições adotadas para dar previsibilidade ao processo sucessório e evitar a perpetuação de um único líder. Em 2018, o Congresso Nacional do Povo aboliu o limite de dois mandatos consecutivos que vigorou nos governos de Jiang Zemin e Hu Jintao, antecessores de Xi. Quatro anos mais tarde, ele foi reconduzido ao comando pela terceira vez. Com 72 anos, poderá manter a posição por prazo indeterminado.
Em outra quebra de tradição, Xi abandonou o princípio de Deng Xiaoping que havia orientado a política externa da China desde o começo do processo de reforma e abertura: “Oculte sua força, espere o momento certo, nunca assuma a liderança”. Quando ele chegou ao comando do Partido Comunista, em 2012, a China já ocupava havia dois anos o posto de segunda maior economia do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.
Políticas industriais Made in China
O novo líder adotou uma postura muito mais assertiva do que a seus antecessores no cenário internacional. Lançada no segundo semestre de 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota se propunha a ligar a China à Ásia Central, ao Oriente Médio e à Europa, em uma recriação da antiga rede de conexões que formava a Rota da Seda. Até agora, 150 países aderiram ao programa, que movimentou US$ 1 trilhão em investimentos e contratos de construção.
Três dias antes da posse de Donald Trump em seu primeiro mandato, em 2017, Xi se tornou o único presidente da China a participar do Fórum de Davos, a meca das elites pró-globalização. Em seu discurso, ele defendeu o livre mercado, as instituições multilaterais, em especial a Organização Mundial do Comércio, e o Acordo de Paris sobre combate às mudanças climáticas – todos alvos de Trump. E mandou um recado nada velado ao futuro dirigente dos EUA: “Adotar o protecionismo é como trancar-se em um quarto escuro. O vento e a chuva podem ser mantidos do lado de fora, mas também a luz e o ar”.
A ofensiva internacional sofreu um revés menos de três anos depois, com o início da pandemia de Covid-19, que teve sua origem na cidade chinesa de Wuhan. O surto levou à deterioração das relações com Washington e a Europa, que sofreram novo abalo em 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia 20 dias depois de Xi e Vladimir Putin professarem uma parceria “sem limites”.
Mas o pano de fundo da disputa geopolítica com os Estados Unidos é o rápido avanço tecnológico da China em áreas como 5G, baterias e carros elétricos, energia renovável, Inteligência Artificial, robótica, drones e trens de alta velocidade. O presidente chinês transformou a visão do Partido em relação à economia e passou a dar mais ênfase à qualidade do que à quantidade do crescimento. O ritmo de expansão do PIB saiu dos dois dígitos registrados do período de 2002 a 2012 para um patamar de 6%, que agora se aproxima de 5%. Xi buscou mudar os motores de propulsão da economia, com foco em autossuficiência tecnológica e manufaturas avançadas. O desenvolvimento desses setores ganhou o impulso de políticas industriais adotadas por Xi logo no início de seu governo, como o Made in China 2025, lançado em 2015.
No dia 20 de janeiro de 2025, quando Trump tomou posse em seu segundo mandato, a chinesa DeepSeek lançou um novo modelo de linguagem que abalou seus competidores americanos, cujas ações registraram quebras brutais. Apesar dos avanços, o país continua dependente de importações em áreas estratégicas, como semicondutores, o que o torna vulnerável a restrições de exportação de chips avançados impostas pelos EUA. Em contrapartida, a China desenvolveu nas últimas quatro décadas uma imensa capacidade de refino de minerais críticos para indústrias ligadas à transição energética, semicondutores, telecomunicações e defesa. No caso de terras raras, esse domínio chega a 92%, e Xi usou essa posição dominante para se contrapor às barreiras americanas.
O líder chinês também priorizou a modernização e o comprometimento ideológico do Exército de Libertação Popular, as Forças Armadas da China, que são subordinadas ao Partido Comunista, e não ao Estado. Além de afastar oficiais por suspeita de corrupção e aumentar o profissionalismo da corporação, Xi promoveu a modernização tecnológica e o desenvolvimento das capacidades “inteligentes” de combate, com uso de Inteligência Artificial e recursos cibernéticos. Sob Xi, a Marinha se tornou a maior do mundo em número de navios e a segunda maior em quantidade de porta-aviões. A China também registrou avanços significativos em seu programa espacial, que só está atrás ao dos EUA.
Prestes a completar 13 anos à frente da segunda maior economia do mundo, Xi tem muito a festejar, mas muito com o que se preocupar. A transição da China para um novo modelo de crescimento ainda enfrenta incertezas, em um cenário externo que continuará a ser marcado pela rivalidade geopolítica com Washington.
Com queda nos índices de natalidade, a população chinesa envelhece rapidamente e começou a encolher em 2022. Ainda que a pobreza extrema tenha sido erradicada, há grande desigualdade de renda nas cidades e entre as cidades e as zonas rurais. E a diferença com os Estados Unidos em termos de prosperidade continua enorme: aos US$ 13,3 mil, o PIB per capita dos chineses equivale a 15,5% dos US$ 85,8 mil dos americanos. Mas a experiência ensina que não se deve subestimar a capacidade de Xi de navegar águas turbulentas.
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