Choque econômico triplo causa agitação social e tensão política nos emergentes
Uma combinação tóxica de efeitos da pandemia, guerra na Ucrânia e alta de juros está causando o que ameaça se tornar uma das mais graves crises econômicas globais em décadas. Os efeitos sociais desse choque triplo, como aumento da pobreza e da fome, começaram a assombrar vários países. E há um risco elevado de que essa deterioração da economia e das condições sociais gere ondas de protestos e até processos de ruptura político-institucional, principalmente nos países em desenvolvimento, como o que já aconteceu neste ano no Sri Lanka. O mundo parece rumar para um período de maior turbulência social e política.
A intensidade e a duração dessa crise econômica ainda são incertos e vão depender muito da evolução dos três fatores causais, que ainda estão em andamento e que se alimentam mutuamente. Disso vai depender também o agravamento das condições sociais e políticas pelo mundo.
Além de milhões de mortes e do imenso sofrimento, a pandemia de Covid-19 deixou um rastro de destruição econômica. Empresas fecharam, empregos e produção foram perdidos. O mundo empobreceu de 2020 para cá, e de modo desigual. Centenas de milhões de pessoas caíram na pobreza ou na miséria, principalmente nos países mais pobres e em desenvolvimento, já que os países ricos puderam gastar mais para amortecer o impacto da pandemia, como, por exemplo, por meio dos programas de preservação de empregos. A dívida pública disparou em todo o mundo, devido aos gastos extraordinários dos governos com a Covid-19 e com a ajuda econômica a empresas e indivíduos.
Apesar de o pior da pandemia aparentemente já ter ficado para trás, graças à imunidade adquirida pela vacinação e por quem contraiu a Covid-19, muitos dos seus efeitos econômicos persistem. Nos últimos dois anos, houve uma redução de investimentos e de produção que agora, com a retomada do consumo no pós-covid, gerou escassez e gargalos. Faltam insumos importantes, de chips de computador a petróleo, o que eleva os preços e prejudica a produção em todo o mundo.
Além disso, os surtos recentes na China se tornaram um problema global. Após o surto inicial de Covid-19, no início de 2020, o governo chinês adotou uma política de covid zero, isto é, de restringir ao máximo o número de casos de transmissão local da doença. Isso foi feito por meio de vacinação, testagem maciça, isolamento de casos positivos e uma dura política de controles e de restrição de mobilidade. Ainda hoje é quase impossível para estrangeiros entrarem na China. Essa política teve efeitos graves sobre os negócios, a produção e os transportes, agravando os gargalos globais.
Mais recentemente, porém, a variante ômicron do vírus da Covid-19, mais transmissível e contra a qual as vacinas chinesas aparentemente são menos eficazes, tornou essa política de covid zero muito difícil de ser mantida. Para isso, o governo chinês teve de colocar em isolamento (lockdown) várias regiões do país, incluindo o centro industrial de Shenzen, a capital financeira, Xangai, e até partes da capital, Pequim.
Apesar de elevadíssimo custo econômico e social, o governo chinês dá sinais de que manterá a estratégia de covid zero. Estudos chineses indicaram que o país poderia sofrer um tsunami de casos e de mortes caso as restrições fossem levantadas. Além disso, o regime chinês fez do sucesso no combate à pandemia um pilar da sua propaganda oficial, inclusive sugerindo, com isso, que seu modelo de governo autoritário seja mais eficiente que as democracias liberais do Ocidente. Recuar agora é politicamente muito difícil para o presidente Xi Jinping, que neste ano deve ser reconduzido a um inédito terceiro mandato presidencial, o que fará dele o líder mais poderoso na China desde Mao Tsé-Tung.
Guerra na Ucrânia
Quando esse cenário chinês já era grave, irrompeu a guerra na Ucrânia, com a invasão do país por forças russas, em 24 de fevereiro. Os Estados Unidos, a União Europeia (UE), o Reino Unido e alguns outros países aliados, o chamado Ocidente, responderam com sanções políticas e econômicas sem precedentes, incluindo um amplo embargo comercial, que devem causar uma recessão profunda na Rússia neste ano e possivelmente no próximo. As estimativas vão de uma queda de 10% a 15% do PIB russo neste ano.
A guerra e as sanções desestabilizaram os dois grupos de commodities mais importantes globalmente: o de energia e o de alimentos. A Rússia é o maior exportador de petróleo do mundo e era o principal fornecedor de petróleo e gás da UE.
O petróleo tipo Brent, que é referencial mundial, estava cotado a quase US$ 90 o barril no dia em que a guerra na Ucrânia começou. Esse já era o maior nível em quase oito anos. Desde então, o preço foi subindo, chegando a US$ 120 no final de maio. O preço do gás natural disparou na UE, o que está reduzindo o consumo de outros bens e serviços.
Algo similar aconteceu com as commodities agrícolas. Rússia e Ucrânia estão entre os principais produtores e exportadores de trigo, cevada, milho e girassol. Além disso, Rússia e Belarus (país que também está sob sanções ocidentais) estão entre os maiores exportadores de fertilizantes do mundo. Com as sanções, os preços dos fertilizantes dispararam e há escassez no mercado global, o que ameaça reduzir a produção agrícola pelo mundo e elevar ainda mais os preços dos alimentos.
A guerra ainda está em andamento, com a Rússia avançando lentamente na ocupação de território ucraniano. O objetivo final de Moscou não está claro, mas certamente inclui a ocupação total da região de Donbas (leste da Ucrânia), que a Rússia já reconheceu como independente, e possivelmente de toda ou da maior parte da costa ucraniana no Mar Negro. Isso pode levar meses. Além disso, os líderes ocidentais já disseram que as sanções só serão retiradas quando Ucrânia e Rússia chegarem a um acordo de paz, o que pode levar anos. Kiev diz que não negociará nenhum acordo que implique ceder território à Rússia. E Moscou dificilmente aceitará um retorno ao status quo anterior, após iniciar um conflito que custará ao país centenas de bilhões de dólares. Assim, a perspectiva de uma resolução rápida desse imbróglio é muito improvável.
Alta de juros
Por fim, o terceiro fator da choque triplo é a alta de juros pelo mundo, após quase 15 anos de taxas muito baixas e de política monetária excepcionalmente relaxada, especialmente nos países ricos. Esse processo está apenas começando e deve adentrar por 2023.
A alta dos juros é uma resposta dos bancos centrais ao aumento da inflação, causado principalmente pelos motivos expostos acima, isto é, o aumento rápido do consumo com a redução da pandemia, a disrupção nas cadeias produtivas e o choque de oferta das commodities. A inflação está no maior patamar em 40 anos na Europa e nos EUA. E está em alta também em quase todo o mundo. Na Turquia, a taxa de inflação anual beirou os 70% em abril; na Argentina, atingiu 58%, o maior nível desde 1992.
Por muito tempo os principais bancos centrais ocidentais esperaram para ver, sob o argumento de que a inflação seria temporária. Hoje, eles admitem que a alta de preços veio para ficar e que exige ação. A expectativa de que a inflação começasse a ceder, tanto no Brasil como no exterior, a partir do segundo trimestre deste ano também parece cada vez mais improvável. Os preços dos combustíveis e da energia continuam aumentando (o preço médio da gasolina bateu seguidos recordes nos EUA em maio), o que continuará gerando reajustes de preços em toda a cadeia produtiva por algum tempo ainda.
A alta de juros visa desaquecer as economias e, assim, reduzir a demanda e a inflação. Os BCs da América Latina começaram a elevar as taxas de juros há mais de um ano, mas a inflação na região ainda não dá sinais de recuo. O Federal Reserve (Fed, o banco central americano) começou esse processo em maio, com o primeiro aumento de 0,5 ponto desde o ano 2000. Na zona do euro, o Banco Central Europeu deve começar elevar os juros em julho. Segundo levantamento do jornal “Financial Times”, divulgado em 29 de maio, desde março está ocorrendo o maior processo de alta de juros pelo mundo em 20 anos. Analistas de mercado acreditam que os juros continuarão subindo nos EUA e na Europa em 2023. O teto do aumento ainda não está claro e dependerá da resistência da inflação.
Deterioração global e risco de estagflação
O resultado desse choque triplo é que a economia global está passando por fortes tensões negativas, tanto do lado da demanda quanto do lado da oferta.
O choque na demanda por consumo já é claro na China e começa a se espalhar pela Europa, mas ainda não nos EUA. Isso enfraquecerá o crescimento. Em abril, o Fundo Monetário Internacional rebaixou a sua projeção de crescimento da economia global de 4,4% para 3,6%. No final de maio, o Instituto Internacional de Finanças (IIF, entidade global do setor bancário) foi além e reduziu pela metade a sua projeção global, para 2,3%.
Apesar de a atividade econômica nos EUA ainda estar aquecida, o debate do momento no país é se a economia americana conseguirá ter um pouso suave, isto é, reduzir a inflação sem gerar uma recessão. Autoridades americanas obviamente se dizem confiantes, mas muitos economistas discordam. O ex-secretário do Tesouro Larry Summers, um democrata, sugeriu recentemente que o pouso suave é improvável. Uma recessão nos EUA provavelmente não virá neste ano, mas crescem as apostas de que já está contratada para 2023. Assim, os agentes econômicos começam a se ajustar, o que por si só já induz a uma desaceleração.
A China, cuja demanda é vital para países exportadores de commodities, como o Brasil, atravessa o seu pior momento econômico desde a crise do final dos anos 80. Os problemas nas cadeias de produção induzidos pela pandemia, a campanha do governo contra alguns setores (como as empresas privadas de tecnologia) e, mais recentemente, os lockdowns infligiram um duro golpe à economia chinesa. A meta oficial de crescimento deste ano é de cerca de 5,5%, que seria o menor desde 1991. Mas economistas privados já falam de expansão do PIB na casa de 3%.
Na Europa, que esperava um ano de retomada após a pandemia, a guerra na Ucrânia está induzindo a uma inesperada freada da economia, causada principalmente pelo aumento dos custos da energia. O risco de uma recessão neste ano é grande. Seguidos indicadores vêm apontando retração na atividade econômica na região.
Já o choque na oferta de produtos, causado principalmente pelos problemas nas cadeias de suprimento (em especial na China) e pela guerra na Ucrânia, aumenta os preços globais. O governo dos EUA prevê, por exemplo, uma queda da produção global de trigo neste ano, o que pressiona o preço.
Essa combinação de choque de demanda e choque de oferta é pouco comum e ameaça gerar o fenômeno conhecido como estagflação, isto é, quando ocorre ao mesmo tempo estagnação econômica e inflação elevada. Normalmente, a inflação sobe quando a economia está aquecida e cai quando ela esfria.
O caso mais recente de combinação de choques globais de oferta e demanda ocorreu no final dos anos 70 e início dos anos 80 e levou os EUA a aumentarem fortemente a sua taxa de juros, o que jogou quase toda a América Latina numa crise da dívida na década de 80.
Riscos para os emergentes
Os países emergentes são particularmente vulneráveis à deterioração econômica atual, por vários fatores. Muitos dependem de capital estrangeiro para financiar seu déficit público e rolar sua dívida, e esse capital ficará cada vez mais caro com a alta dos juros. Além disso, em momentos de incerteza econômica, o investidor tende a fugir de ativos de risco (como títulos públicos, ações de empresas e moedas de países emergentes) e a buscar proteção nos ativos mais seguros, nos países ricos. Segundo dados da consultoria EPFR, US$ 36 bilhões deixaram os mercados de títulos de países emergentes desde o começo do ano, até maio. Essa é a maior fuga de capital em décadas.
Muitos emergentes são ainda importadores de combustíveis e/ou de alimentos, cujos preços estão em forte alta. A maioria tem a China como maior mercado de exportação, e uma queda no consumo chinês terá forte repercussão. Uma queda simultânea na demanda nos dois maiores mercados do mundo (EUA e EU) também afetará toda e economia global, mesmo aqueles países exportadores de commodities (como o Brasil) que neste primeiro momento estão ampliando as suas exportações.
Ao contrário de países ricos, que podem elevar o gasto público e minimizar o impacto da inflação para sua população, a maioria dos emergentes não tem margem fiscal para isso, após dois anos de gastos elevados com a pandemia.
Essa deterioração do cenário econômico mundial vai piorar uma situação social já abalada pelos mais de dois anos de pandemia. A inflação causa empobrecimento, especialmente das parcelas pobres das populações, que não têm acesso a investimentos. A inflação funciona como uma política fiscal regressiva, que tira dinheiro dos pobres para dar aos mais ricos, aqueles que detêm a dívida pública. Após décadas de redução da pobreza pelo mundo, a pobreza aumentou com a pandemia e tende a continuar aumentando com a deterioração econômica global.
Autoridades de todo o mundo chamam a atenção para o risco de fome, com a crescente insegurança alimentar causada pelo aumento das commodities agrícolas. Para tentar proteger a sua população, muitos países têm adotado políticas protecionistas, como a proibição de exportação de produtos agrícolas. Em maio, por exemplo, a Índia proibiu a exportação de trigo. Essas medidas desequilibram ainda mais os mercados e impulsionam os preços internacionais.
O diretor-executivo do Programa Alimentar Mundial da ONU, David Beasley, disse no Fórum Econômico Mundial, realizado em maio, em Davos (Suíça), que 323 milhões de pessoas pelo mundo “estão marchando para a fome”. Ele pediu que os países se abstenham de adotar medidas protecionistas em relação aos alimentos. Governos de países desenvolvidos temem que uma onda de fome pelo mundo aumente os fluxos migratórios, num momento em que um recorde de 100 milhões de pessoas já estão fugindo de conflitos e perseguições, segundo a ONU. Em maio, a União Africana (entidade de congrega os países do continente) alertou para o risco de uma crise alimentar por causa do bloqueio pela Rússia dos portos ucranianos (usados para exportação de alimentos) e das sanções ocidentais à Rússia, que dificultam a compra de alimentos russos.
Agitação social e tensão política
Com a deterioração econômica, está crescendo o mal-estar social em muitos países. E isso ameaça gerar crises políticas.
Em abril, manifestantes invadiram a casa do premiê de Sri Lanka em protesto contra a grave crise econômica no país. O premiê, que já estava demissionário, teve de ser resgatado por militares. O Sri Lanka é o caso mais clamoroso, até agora, de agitação social e tensão política causados pelo choque econômico triplo. O país insular de 22 milhões de habitantes, ao sul da Índia, importa a maior parte da comida e do combustível que consome. Com o aumento dos preços e a dificuldade crescente de se financiar, o Sri Lanka deixou de pagar sua dívida e ficou sem moeda forte para importar itens básicos. No final de maio, o país pediu ajuda para comprar medicamentos e alimentos.
Em discurso em abril, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, disse que os efeitos econômicos do conflito na Ucrânia serão enormes e “o alastramento global da crise está colocando em evidência as vulnerabilidades de muitos países que já enfrentam uma carga de dívida maior e opções de políticas limitadas, num momento em que se recuperam da [crise da] Covid-19”.
Economistas vêm alertando para o risco de uma nova onda de crise da dívida nos emergentes. O Sri Lanka, assim como Líbano, Tunísia e Egito, está negociando um pacote de ajuda com o FMI.
Na América Latina, o Peru já enfrentou uma violenta onda de protestos contra a alta dos preços dos combustíveis e dos alimentos, em março e abril, que causou a morte de sete pessoas. As manifestações elevaram a pressão pelo afastamento do presidente Pedro Castillo. O Peru importa cerca de 75% do petróleo que consome e depende também de grãos importados, o que o torna particularmente vulnerável à alta dessas commodities. Além disso, foi um dos países mais duramente atingidos pela pandemia de Covid-19.
Apesar de a alta de preços ser um problema global, as pessoas tendem a culpar o governante de turno. Segundo indicou pesquisa Datafolha no final de maio, 75% dos brasileiros responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro pela alta da inflação no Brasil. O mesmo parece estar ocorrendo no Chile, onde houve protestos contra a inflação nas últimas semanas, e a aprovação do recém-empossado presidente Gabriel Boric despencou.
Esse processo de desgaste político dos governos está apenas começando e suas consequências ainda são difíceis de prever. Pode gerar apenas trocas normais de governo, como já vem acontecendo (candidatos governistas perderam todas as eleições nacionais na América Latina de 2021 para cá). Mas certamente esse desgaste aumenta também o risco de rupturas político-institucionais. n
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional