Relações entre Brasil e EUA estão contaminadas pela polarização política
Politização dos laços entre os dois países muda uma dinâmica histórica deixando de lado o foco em temas de importância bilateral para enfatizar conexões pessoais entre os líderes –especialmente entre Trump e Bolsonaro. Em entrevista, a professora de estudos latino-americanos Britta Crandall analisa o cenário e diz que os EUA esperam que o Brasil se mantenha alinhado ao ocidente e dentro do campo democrático da política global
Politização dos laços entre os dois países muda uma dinâmica histórica, deixando de lado o foco em temas de importância bilateral para enfatizar conexões pessoais entre os líderes –especialmente entre Trump e Bolsonaro. Em entrevista, a professora de estudos latino-americanos Britta Crandall analisa o cenário e diz que os EUA esperam que o Brasil se mantenha alinhado ao ocidente e dentro do campo democrático da política global
Por Daniel Buarque
As relações bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos, que sempre foram muito marcadas pelo foco em temas de importância para os dois países, nos últimos anos passaram a ser pautadas pela politização, enfatizadas pela relação pessoal entre os líderes dos dois países. Para a professora de estudos latino-americanos do Davidson College Britta Crandall, essa transformação começou sob Donald Trump e Jair Bolsonaro, e contaminou as conversas bilaterais de alto nível desde então.
Em entrevista à Interesse Nacional, Crandall analisou o atual cenário das relações entre os dois países, explicou que os EUA tradicionalmente têm negligenciado o Brasil, mas que o país tem um papel relevante nas trocas com a maior potência do mundo.
Autora de livros como Hemispheric Giants: The Misunderstood History of U.S.-Brazilian Relations (Rowman and Littlefield, 2011) e o recente Our Hemisphere? (Yale University Press, 2021), a professora alega que os EUA querem que o Brasil se alinhe ao Ocidente e aos interesses americanos na atual divisão global em disputas da Otan com a Rússia e a China. Segundo ela, o governo americano também está atento em relação à situação da democracia brasileira, e acredita que pode ter relações construtivas com o Brasil no caso de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições deste ano. “Se tivermos uma situação onde Bolsonaro diga que a eleição foi roubada e comece a trilhar um caminho semelhante ao de Trump, isso afetará negativamente a relação bilateral”, disse.
Leia abaixo a entrevista completa
Daniel Buarque – Como você interpreta a hesitação do Brasil em ir à Cúpula das Américas deste ano? O que acha que isso diz sobre as relações do Brasil com os EUA?
Britta Crandall – A relação entre o Brasil e os Estados Unidos é obviamente complexa, e precisamos ter uma visão histórica. A crítica aos EUA tem tradicionalmente sido que há uma negligência benigna em relação à região. As relações têm sido vistas sempre por um prisma dos Estados Unidos negligenciando a região. Brasilianistas tradicionalmente brigam contra isso, reclamando que os EUA não prestam atenção a este importante país, uma das maiores economias e democracias do mundo. Acredito que essa negligência se dá não por descaso, mas pelo fato de termos esses dois países imensos que realmente só precisam interagir quando suas prioridades se cruzam. Acredito muito na importância do comportamento do Brasil como agente. Não se trata apenas de uma relação liderada pelos EUA. Essa dinâmica é bilateral.
O que é diferente agora é o quão politizado o relacionamento se tornou. É conduzido no nível mais alto pela dinâmica política entre dois líderes. Até aqui, a relação bilateral sempre foi baseada em temas e assuntos que eram relevantes para os dois países, como direitos humanos, meio ambiente, comércio exterior. Desde Donald Trump e desde Jair Bolsonaro tornou-se um alinhamento de dois populistas de direita. E essa relação entre Brasil e Estados Unidos realmente se tornou uma relação entre Bolsonaro e Trump. Foi uma resposta bilateral personalista. Bolsonaro estava alinhado a Trump, não aos Estados Unidos e vice-versa. Isso muda a dinâmica, pelo menos no nível mais alto de como é esse relacionamento bilateral. E isso continuará assim enquanto Trump continuar sendo viável como uma presença política nos Estados Unidos, o que ele ainda é.
Por um lado, o que é diferente agora, novamente, é essa politização da relação bilateral, mas também sinto que, ao mesmo tempo, essa é uma dada realidade, o que limita muito o progresso em algo importante de questões bilaterais que podem ser feitas entre os dois países.
No entanto, o que sempre permaneceu, uma realidade e que eu sinto que não se perdeu é a relação estrutural, fundacional, institucional entre Brasil e Estados Unidos. Esta é robusta, significativa, e continua, apesar do barulho e do elemento politizado dessa camada superior em termos da parte executiva do relacionamento. Mas se você pensar sobre os avanços realmente significativos no engajamento militar que foram feitos, ou no que acontece em termos de comércio, vida selvagem, USAID, ou Nasa. Há interações robustas e significativas e trabalho que está acontecendo sob a superfície que é significativo
Daniel Buarque – Não há perigo de um conteúdo contaminar o outro? A politização pode atingir estas relações mais fundamentais entre os dois países?
Britta Crandall – Houve muita cobertura nos Estados Unidos sobre a demora de Bolsonaro, o último líder do Hemisfério Ocidental a reconhecer a vitória de Biden. Isso é simbólico sobre o barulho que se impõe nessas relações. A questão crucial para tocar em sua pergunta é tratar da questão ambiental, da Amazônia, que são pontos centrais da relação entre o Brasil e os Estados Unidos. Nesse caso, se temos esse tipo de elemento politizado do âmbito superior do relacionamento bilateral, é possível progredir em questões importantes nas negociações abaixo da superfície? E parece que houve alguma correção de curso por parte de Bolsonaro, pelo menos do ponto de vista de retórica, com uma carta aberta dizendo que o Brasil protege o meio ambiente. É um movimento que tenta uma correção de curso à medida que ele se tornou mais isolado internacionalmente, de reconhecer a questão ambiental e desistir de sua promessa de deixar o Acordo de Paris, por exemplo. E se isso é algo que retoricamente pode ser mudado, acho que pode haver um trabalho real da USAID, por exemplo. Ainda podem ocorrer trocas significativas.
Daniel Buarque – Como isso fica no caso da democracia? Quanto a questão da democracia e as ameaças contra ela no Brasil influenciam a relação do país com os Estados Unidos?
Britta Crandall – A narrativa sobre Bolsonaro nos Estados Unidos desde o princípio foi de que ele era ‘Trump tropical’, e o medo sempre foi de que Bolsonaro seguisse a cartilha de Trump e a usasse de maneira bastante eficaz contra a democracia. Há uma expectativa de acusações de fraude eleitoral ou rejeição de um resultado negativo para ele. Com as eleições de outubro se aproximando, a expectativa é que Bolsonaro se apoie mais nesse tipo de método para energizar sua base, e me parece que sua base é trumpista em relação a isso. Então eu acho que isso é uma preocupação real. Além disso, o Congresso tem um grande interesse no Brasil, como vimos em várias questões propostas com o clima, também temos um Congresso dos EUA engajado no Brasil. Que está preocupado com essas questões.
Se tivermos uma situação onde Bolsonaro diga que a eleição foi roubada e comece a trilhar um caminho semelhante ao de Trump, isso afetará negativamente a relação bilateral.
Daniel Buarque – Seu trabalho lida com uma perspectiva histórica, e quando falamos sobre democracia no Brasil sempre olhamos para 1964 e como os EUA apoiaram o golpe militar. Devemos levar a sério quando Biden fala sobre a defesa da democracia no Brasil?
Britta Crandall – Biden apoia legitimamente a democracia no Brasil? Sem dúvida. Não estamos mais na Guerra Fria. Não estamos em um ambiente em que os regimes militares ofereçam qualquer benefício para os interesses geopolíticos dos Estados Unidos. Apoiamos a democracia, mas claro que esse objetivo retórico é complicado por outras dinâmicas geopolíticas. Se pensarmos na atual disputa brasileira entre Lula e Bolsonaro, vale lembrar que os Estados Unidos tiveram uma relação muito produtiva com Lula, apesar de ele ter adotado uma política externa brasileira de não alinhamento e independência em relação aos EUA. Isso é muito mais preferível do que o alinhamento de Bolsonaro com os Estados Unidos, que, novamente, foi apenas um alinhamento com Trump e não foi um alinhamento com as políticas dos EUA. Olhando de forma cética para os interesses dos EUA, Lula é um candidato muito mais seguro em termos de alinhamento com esses objetivos geopolíticos dos Estados Unidos do que Bolsonaro.
O mundo está se transformando e se dividindo em novas esferas de influência, entre a China e regimes mais autocráticos versus os Estados Unidos e a Europa Ocidental. Onde o Brasil fica nessa divisão? Novamente, os Estados Unidos se beneficiam mais se o Brasil estiver no campo democrático. A comparação de 1964 é difícil, pois não poderíamos estar em uma situação mais diferente que essa.
Daniel Buarque – A China está buscando uma aproximação com a América Latina. Como os EUA estão observando isso e como esse movimento pode afetar a relação entre o país e a região?
Britta Crandall – Isso não passa despercebido pelos Estados Unidos. A China tem um pé ativo na América Latina, e há alertas de que os EUA estão ficando para trás nesse sentido. O governo Biden intensificou seu compromisso de preencher espaços e tentar ser um jogador nessa questão, o programa Build Back Better é parte disso, há uma tentativa de competir com a China no mundo dos mercados emergentes, e especificamente na América Latina.
Os Estados Unidos estão muito conscientes de que perderam o bonde na relação econômica com com América Latina, o que a China facilitou por muitos e muitos anos. A preocupação que os Estados Unidos articulam, entretanto, é que a China está afundando esses países em endividamento, e a esperança é que os Estados Unidos possam preencher essa lacuna com investimentos mais significativos e mais produtivos para o crescimento sustentável para esses países de uma forma que a crítica é que a China não é.
Daniel Buarque – Com a Guerra na Ucrânia, muito tem se falado do rearranjo dos pólos de poder globais, e você mencionou isso ao tratar do alinhamento do Brasil com os EUA. Mas de forma mais ampla, como acha que o Brasil e a América Latina se encaixam nessa nova geopolítica global?
Britta Crandall – A designação que Trump conferiu ao Brasil de não membro aliado à Otan é até certo ponto simbólica, mas continuou valendo no governo Biden e também tem implicações que não são insignificantes em termos de privilégios que o Brasil teria em termos de elegibilidade para projetos cooperativos de pesquisa e desenvolvimento. Essa é uma forma de incluir o Brasil nessa espécie de esfera de influência dos Estados Unidos.
É difícil pensar no longo prazo porque estamos até o início de outubro em um período em que simplesmente não sabemos o que vai acontecer, pois temos dois cenários muito diferentes sobre o futuro do país dependendo de quem vencer as eleições presidenciais. O Brasil desempenhou e pode desempenhar um papel importante na resposta internacional ao conflito russo. Se Lula fosse eleito, isso abriria o caminho para relacionamentos mais propícios e harmoniosos no hemisfério. O Brasil desempenha um papel importante nesse tipo de dinâmica internacional. A questão é que nada deve ocorrer até sabermos o resultado das eleições de outubro. Os parâmetros de como você mede as relações bilaterais mudam quando elas são tão politizadas.
Daniel Buarque – Por que os Estados Unidos tiveram tanta dificuldade em organizar a Cúpula das Américas deste ano?
Britta Crandall – A situação é dramaticamente diferente do que houve no passado, quando todos os países convidados iam ao encontro e havia discussão sobre livre comércio das Américas. O governo Biden está em uma situação complicada em termos dos países que foram banidos, como Venezuela e Cuba, e os países que não demonstraram interesse, especialmente o Brasil e o México.
Se pensarmos que toda a política, em última análise, é doméstica, uma necessidade realmente premente para os EUA é lidar com a questão da imigração, então a relação com o México é muito importante. Então a ausência do presidente do México pode ser vista como um problema.
Daniel Buarque – Você menciona a importância da política interna nessa questão regional. Isso é um problema dos EUA, ou é uma tempestade perfeita de problemas internos nos EUA e no restante da América Latina?
Britta Crandall – Sim. Os Estados Unidos não têm mais o monopólio dos desafios da migração. Dada a crise dos refugiados venezuelanos e haitianos, toda a região está sendo afetada. Ambos os lados, tanto os Estados Unidos quanto os colegas latino-americanos, estão experimentando isso. Isso exacerba a complexidade de lidar com a questão migratória. Então há um elemento de tempestade perfeita.
A migração tem sido um problema com o qual o governo Biden tem lutado desde a eleição. A crítica é que seu tipo de retórica facilitou e exacerbou o incentivo para ir e ou para migrar para os EUA, e isso não foi totalmente corrigido ainda.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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