Preços dos alimentos: como os países estão usando a crise global para ganhar poder geopolítico
Guerra na Ucrânia desorganizou os sistemas de suprimento global de grãos e fertilizantes e pode gerar fome no mundo. Crise leva a aumento do nacionalismo e gera uma disputa por ‘poder alimentar’ entre nações mais ricas
Guerra na Ucrânia desorganizou os sistemas de suprimento global de grãos e fertilizantes e pode gerar fome no mundo. Crise leva a aumento do nacionalismo, amplia a diplomacia relacionada a alimentos e gera uma disputa por ‘poder alimentar’ entre nações mais ricas
Por Sarah Schiffling e Nikolaos Valantasis Kanellos*
Cerca de 20 milhões de toneladas de grãos ficaram presos em silos ucranianos, exacerbando a crise alimentar global desencadeada pela invasão russa do país. Além da necessidade de levar os grãos aos mercados mundiais, liberar área de armazenamento será crucial para abrir espaço antes da próxima safra do país.
As negociações entre a Rússia e o governo turco para garantir a passagem segura dos grãos estão focadas no estabelecimento de um corredor de exportação. O objetivo é encorajar a Rússia a levantar o bloqueio aos portos da Ucrânia, com a marinha turca fornecendo uma escolta para os navios que transportam esses grãos pelo Mar Negro.
Assim como os esforços de diplomacia de vacinas vistos durante a pandemia de Covid-19, os governos agora estão se acotovelando para satisfazer a demanda global com uma quantidade limitada de alimentos cada vez mais caros. Mas alguns países estão dando um passo além de garantir que os alimentos estejam disponíveis para seus próprios cidadãos, sugerindo uma nova era de diplomacia alimentar sendo usada para fortalecer alianças antigas e novas.
Os preços dos alimentos em maio de 2022 caíram 0,6% em relação a abril, mas ainda 22,8% acima do mesmo mês do ano passado, de acordo com o índice mensal de preços dos alimentos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Pesquisas recentes mostram que três quartos das pessoas no Reino Unido estão preocupadas com o custo dos alimentos.
A situação é ainda pior em muitos países de baixa renda. Espera-se que a guerra na Ucrânia aumente a insegurança alimentar existente e leve a fome aos níveis mais altos deste século em algumas partes do mundo.
As cadeias de fornecimento de alimentos foram severamente interrompidas pela guerra porque tanto a Rússia quanto a Ucrânia são grandes fornecedores de produtos agrícolas importantes, como trigo, cevada e óleo de girassol. Espera-se também que tenha um impacto duradouro no comércio global de alimentos.
No entanto, retirar os suprimentos de alimentos da Ucrânia não é fácil. Antes da guerra, 90% dessa carga saía da Ucrânia por via marítima, mas a ocupação russa dos portos marítimos da Ucrânia bloqueou essa rota de exportação. A UE intensificou o apoio ao transporte rodoviário, ferroviário e fluvial, mas a movimentação de 20 milhões de toneladas de grãos levaria 10 mil barcaças fluviais ou até 1 milhão de caminhões grandes. As passagens de fronteira por estrada são lentas, e o transporte de mercadorias por trem é complicado por diferentes bitolas ferroviárias nos países vizinhos da Ucrânia.
Resolvendo a crise alimentar
Mesmo que as questões de acordos internacionais, disponibilidade e capacidade de navios de carga e tripulação e questões de seguro sejam resolvidas, uma crise alimentar não será completamente evitada. A Associação de Produtores de Grãos da Ucrânia espera que a colheita de grãos e oleaginosas de 2022 caia quase 40% em relação aos níveis de 2021. Isso, juntamente com o impacto potencial da seca e dos altos preços dos insumos na produção agrícola em muitos países, terá consequências devastadoras para o abastecimento mundial de alimentos.
Fertilizantes e grãos não faltam, mas preços e desafios político, logístico e financeiro dificultam o envio de grandes quantidades para importadores de baixa renda. Nos países pobres, grãos e fertilizantes se tornarão inacessíveis para a população e limitarão a produção doméstica. A crise alimentar também está afetando os países ricos, com a UE reconsiderando a oportunidade de sua ambiciosa estratégia de reforma Farm to Fork.
Diante desses desafios, muitos países produtores proibiram as exportações de alimentos. No final de maio, 10% das calorias nos mercados globais estavam sob restrições de exportação. Isso lembra as proibições da exportação de vacinas Covid-19 em 2021.
Em meio a uma onda mortal de infecções, a Índia concentrou- se em vacinar sua própria população com vacinas produzidas internamente, em vez de fornecê-las ao mundo. Também houve tensões entre o Reino Unido e a UE sobre disputas em relação à distribuição de vacinas.
O nacionalismo de vacinas em 2021 pode agora ser seguido pelo nacionalismo alimentar. As vacinas da COVID-19 foram distribuídas de maneira muito desigual, com taxas de vacinação em países de baixa renda muito atrás das dos países mais ricos. À medida que as nações mais ricas procuram reforçar seus suprimentos de alimentos, desigualdades semelhantes podem surgir.
Armas diplomáticas
Em 2021, o nacionalismo em torno das vacinas levou à diplomacia de vacinas. Os países exportaram suas vacinas Covid-19 para reforçar as relações com certas regiões. Por exemplo, tanto a China quanto os EUA implementaram extensos programas de vacinas na América Central e do Sul.
Antes de sua proibição, a Índia fornecia vacinas a parceiros regionais como o Butão. A China e a Rússia mostraram um domínio inicial na diplomacia de vacinas, enquanto as nações ocidentais foram acusadas de acumular.
Da mesma forma, 2022 viu o aumento da diplomacia alimentar, tornando as cadeias de suprimentos agrícolas tão políticas quanto as de petróleo e gás. A oferta restrita e a alta demanda significam que países e blocos com excedente de alimentos devem decidir para onde exportar commodities vitais. A Índia recebeu pedidos de suprimentos de trigo de Bangladesh, Egito e do Programa Mundial de Alimentos da ONU, por exemplo.
Ao disputar influência em uma região, as exportações de alimentos podem se tornar um instrumento diplomático na forma de “poder alimentar”. Assim como a UE está interessada em lidar com a escassez esperada no Oriente Médio e Norte da África para reforçar sua influência na região, por exemplo, a China está apoiando os países africanos que enfrentam crises alimentares.
Enquanto isso, também há uma batalha pelo controle da narrativa sobre a escassez de alimentos. Acusações de uso de alimentos como arma estão sendo feitas contra a Rússia, enquanto a China tem sido acusada e acusadora quando se trata de temores de acúmulo de alimentos. O presidente da União Africana, o presidente senegalês Macky Sall, também culpou as sanções ocidentais por problemas na cadeia de suprimentos.
Como as principais potências mundiais culpam umas às outras por seu papel na condução da crise atual, distribuir uma quantidade limitada de alimentos para atender à demanda global será uma questão definidora de 2022.
* Sarah Schiffling é professora de administração de cadeias de suprimento na Liverpool John Moores University
Nikolaos Valantasis Kanellos é professor de logística na Technological University Dublin
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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