Restrições ao aborto nos EUA não devem influenciar tendências internacionais, que estão se tornando amplamente mais liberais
Decisão da Suprema Corte americana vai na contramão de uma tendência global de expansão do direito ao aborto e pode servir para isolar ainda mais os EUA e minar sua credibilidade como líder global em direitos das mulheres
Decisão da Suprema Corte americana vai na contramão de uma tendência global de expansão do direito ao aborto e pode servir para isolar ainda mais os EUA e minar sua credibilidade como líder global em direitos das mulheres
Por Martha Davis*
A decisão da Suprema Corte dos EUA que derrubou Roe v. Wade em 24 de junho de 2022 já está tendo efeitos profundos nos Estados Unidos, da Flórida a Wisconsin. A decisão também contraria uma clara tendência mundial. Em países da Islândia a Zâmbia, as restrições ao aborto foram levantadas nas últimas duas décadas, não reforçadas.
Hoje, apenas 24 de um total de 195 países proíbem o aborto, representando apenas 5% das mulheres em idade reprodutiva em todo o mundo. O dobro de países tornaram mais fácil fazer um aborto legalmente nos últimos 20 anos.
Os EUA se juntaram à pequena lista de países que estão aumentando as restrições ao aborto quando a Suprema Corte anulou o direito constitucional ao aborto em Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization. A decisão por si só não tornou o aborto ilegal – disse, em vez disso, que não há direito federal de fazer um aborto e que o poder de regular pertencia aos estados. Muitos estados estão agora apertando as restrições ao aborto.
No passado, algumas decisões da Suprema Corte, como Brown v. Board of Education, que considerou a segregação escolar ilegal, tiveram influência no exterior, citadas por outros tribunais em suas decisões em todo o mundo. Da mesma forma, alguns defensores dos direitos das mulheres estão preocupados que a decisão de Dobbs possa dar suporte legal a políticas de aborto mais restritivas em outros países.
Sou uma professora de direito que estudou as tendências mundiais na lei do aborto. Em vez de desencadear uma nova onda de leis restritivas ao aborto em outros países, a decisão de Dobbs parece ter pouca influência internacional. Duas razões principais são o amplo impulso global em direção a um maior acesso ao aborto e a diminuição da influência internacional dos Estados Unidos na área dos direitos das mulheres.
De fato, a decisão de Dobbs pode servir para isolar ainda mais os EUA e minar sua credibilidade como líder global em direitos das mulheres.
Tendências do aborto em outros países
Trinta países mudaram suas leis para permitir ou facilitar o aborto desde 2000, de acordo com o think tank Council on Foreign Relations. Essa tendência inclui África, Ásia, Europa, América do Sul e Oceania. Países ricos como Nova Zelândia e Suíça, juntamente com países mais pobres como Togo e Micronésia, aumentaram a possibilidade de se fazer um aborto nas últimas duas décadas.
Durante o mesmo período, apenas um país ocidental rico, a Polônia, aumentou as restrições ao aborto, juntando-se a regimes autoritários como a Nicarágua na curta lista de nações com proibições quase completas ao aborto.
Nepal, Irlanda e Argentina são exemplos de três países que recentemente adotaram leis de aborto mais liberais.
Em cada um desses países, essa mudança ocorreu apenas após anos de protestos, brigas judiciais e pessoas se organizando para mudanças políticas. O sucesso desses ativistas dependia da construção de coalizões dentro de seus países –não da influência dos EUA.
Leis mais liberais no Nepal e na Irlanda
No Nepal, ativistas do direito ao aborto garantiram a aprovação do parlamento para uma nova lei de aborto em 2002, depois de destacar as altas taxas de mortalidade materna do país resultantes de abortos inseguros.
Atualizada em 2018, a lei do Nepal agora permite o aborto antes de 12 semanas de gravidez e, nos casos de estupro, incesto, anormalidade fetal ou risco à vida ou à saúde da mulher, a qualquer momento antes de 28 semanas.
Na Irlanda, ativistas trabalharam por décadas para superar a oposição ao aborto de forças poderosas dentro da Igreja Católica. Usando mensagens estratégicas para desestigmatizar o aborto e chamar a atenção para o status isolado da Irlanda entre outros países europeus, os ativistas influenciaram gradualmente a opinião pública.
Em 2018, um referendo nacional revogou decisivamente a proibição constitucional de longa data do aborto. A nova lei permite o aborto até 12 semanas de gravidez. Se houver risco à vida ou à saúde da gestante, no entanto, o aborto é permitido até que o feto possa sobreviver fora do útero.
Terreno instável
A Argentina também mudou suas políticas de aborto em 2020, revogando uma lei que permitia o aborto apenas em casos de estupro ou quando havia risco grave à saúde da gestante.
Agora, as pessoas podem fazer abortos até 14 semanas de gravidez. Neste país predominantemente católico, a oposição das pessoas à lei por motivos religiosos retardou a implementação dessa mudança nas áreas rurais. No entanto, a Argentina também estimulou uma onda de direitos ao aborto expandidos na América Latina –chamada de “onda verde” por causa dos lenços verdes usados por ativistas do aborto na região.
Em maio de 2022, por exemplo, o tribunal superior da Colômbia manteve o direito de fazer um aborto até 24 semanas, adotando um padrão como o da Holanda e do Canadá.
Alguns observadores especulam que a reversão de Roe poderia dar nova energia às facções antiaborto que buscam reverter os ganhos recentes obtidos por meio de leis de aborto mais liberais em outros países.
Outros países provavelmente não seguirão o exemplo dos EUA
Mas, dada a extensa construção de coalizões por grupos de cidadãos que levaram a mudanças em lugares como Argentina, Nepal e Irlanda, rescindir o direito ao aborto não será fácil.
Seria equivocado atribuir muita influência aos desenvolvimentos dos EUA e supor que os países reverteriam os direitos ao aborto por causa da decisão de Dobbs.
Houve uma época no final do século XX em que as opiniões constitucionais dos EUA eram influentes globalmente, mas esse não é mais o caso. Uma razão é que as democracias de outros países amadureceram e seus tribunais construíram seu próprio marco legal, dando-lhes menos ímpeto para olhar para as decisões dos EUA.
E quaisquer vestígios de influência desproporcional dos EUA terminaram durante a presidência de Donald Trump, quando os EUA abandonaram sistematicamente grupos internacionais como o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Os EUA também têm se destacado negativamente há muito tempo em relação aos direitos das mulheres no contexto internacional.
Por exemplo, mais mulheres morrem nos EUA durante ou logo após a gravidez do que em qualquer outro país rico. Os EUA também são um dos poucos países que não têm licença médica e familiar remunerada.
A derrubada de Roe e dos direitos ao aborto protegidos pelo governo federal depois de quase 50 anos é certamente um sinal de advertência para os defensores do direito ao aborto em todo o mundo. Mas dada a força do movimento global de mulheres e a defesa robusta dos direitos ao aborto na maioria dos países, a relevância de Dobbs pode se mostrar isolada aos EUA. Não é provável que seja um sinal de reversão da tendência global de expansão do direito ao aborto.
Martha Davis é professora de direito na Northeastern University
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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