Ruptura democrática afetaria parcerias que garantem a segurança nacional do Brasil
Ameaça golpista de Bolsonaro põe em risco a capacidade de o país se envolver em relações internacionais fundamentais para manter a soberania militar do Brasil. Para o professor de relações internacionais na Universidade de Carleton, no Canadá, uma intervenção militar traria o colapso da cooperação internacional com o país
Ameaça golpista de Bolsonaro põe em risco a capacidade de o país se envolver em relações internacionais fundamentais para manter a soberania militar do Brasil. Para o professor de relações internacionais na Universidade de Carleton, no Canadá, uma intervenção militar traria o colapso da cooperação internacional com o país
Por Daniel Buarque
A reunião convocada pelo presidente Jair Bolsonaro com embaixadores para promover sua desconfiança em relação ao sistema eleitoral foi incapaz de convencer seus interlocutores da conspiração que o brasileiro diz existir. Para observadores internacionais, o sistema eleitoral brasileiro é um dos melhores que existem, e o encontro serviu apenas para mostrar ao mundo que o presidente está “desesperado e enlouquecido”.
“Bolsonaro está desesperado por aprovação externa do que ele quer fazer”, explicou o professor de relações internacionais na universidade de Carleton, no Canadá, Sean Burges, em entrevista à Interesse Nacional.
Especialista em política externa brasileira, Burges é autor do livro Brazil in the world (Manchester University Press) em que analisa a posição global do país e o trabalho para tentar promover o Brasil internacionalmente. Segundo ele, enquanto governos passados focaram em problemas internos e colheram o reconhecimento internacional pelos avanços do país, o governo atual fracassa no âmbito doméstico e busca apoio no exterior. Essa estratégia não funciona e o mundo mantém um certo distanciamento das relações com o Brasil desde a chegada de Bolsonaro ao poder.
O maior problema, segundo Burges, é que ao defender uma auditoria militar nas eleições e ameaçar a democracia, ele arrisca levar o país ao colapso da cooperação internacional que garante a soberania do Brasil. “A capacidade dos militares de proteger o Brasil, sua capacidade de se envolver nas parcerias internacionais para manter o que é necessário para a soberania militar do Brasil é de fato altamente dependente das relações internacionais. Se os militares intervierem, a primeira coisa que você verá é um colapso repentino da cooperação, especialmente com os Estados Unidos. E por mais que os brasileiros não queiram admitir publicamente, isso é algo muito importante”, explicou.
Leia abaixo a entrevista completa
Daniel Buarque – O que você achou da apresentação de Bolsonaro a embaixadores?
Sean Burges – Uma das coisas que me impressionaram é que acho que ele realmente acredita em tudo o que diz. Ele não parece estar deliberadamente fingindo, ou estar tentando vender uma ideia que sabe ser falsa. Acho que ele e as pessoas ao seu redor acreditam genuinamente na narrativa que estão apresentando. Eles estão encarando a questão do sistema eleitoral como uma questão de fé. E evidências não são relevantes em questões de fé. A visão deles é de que estão tão corretos e são tão perfeitos que a única razão pela qual podem não ser amplamente aceitos é porque eles estão sendo prejudicados, alguém está trapaceando. Isso é uma questão importante para entender o que está acontecendo. E acho que isso provavelmente se aplica bem a Bolsonaro e às pessoas em torno dele em toda uma gama de políticas públicas.
Quando olhamos para coisas como Covid-19 e luta contra a pobreza e a violência, relações raciais. Há uma ausência fundamental e completa de empatia pelos outros. Não é uma questão de simpatia, não é apenas sentir pena dos outros, mas empatia de poder entender que existe um outro ponto de vista, que existe outra forma de ver as coisas, que existem outras prioridades –concordando ou não com elas. Não parece que eles tenham a capacidade de empatia. Isso não é exclusivo de Bolsonaro, pois houve um colapso de empatia em sociedades de muitos países, mas é particularmente fatal quando você está tentando administrar um país tão complexo quanto o Brasil.
Daniel Buarque – Mesmo que ele acredite no que fala, Bolsonaro está conseguindo convencer mais alguém dessa crença dele na insegurança do sistema eleitoral brasileiro? Algum dos embaixadores saiu da reunião acreditando em alguma coisa que ele disse?
Sean Burges – Não. Parece uma resposta muito curta, mas é a melhor forma de deixar claro. Não, ninguém acreditou. E a ironia disso é que, se você for a qualquer lugar envolvido em estudos eleitorais de qualquer forma séria, e pedir para eles listarem os cinco principais países para se executar uma votação de forma mais próxima da perfeição, o Brasil vai estar nessa lista. A tecnologia que o Brasil usa é segura, clara, limpa. Claro que no país há todos os tipos de trapaças em que pessoas saem com milhares de reais para tentar comprar votos. Sabemos que isso acontece, mas a ideia de que a urna pode ser manipulada é totalmente falsa. Bolsonaro apenas se mostrou desesperado e enlouquecido. Essa estratégia não vai funcionar.
Daniel Buarque – E quanto isso afeta o posicionamento global do Brasil? Conseguir aprovação internacional realmente importa?
Sean Burges – É importante para o público doméstico. A verdadeira questão é: para quem Bolsonaro estava falando? Ele estava falando para uma sala cheia de embaixadores, mas era mais uma questão de mostrar a força presidencial, a capacidade de convocar os embaixadores de todos os países. E isso sequer é uma grande conquista, já que sempre que um presidente convocar, os embaixadores vão comparecer. Mas, em última análise, há uma definição muito reducionista de democracia que é usada em todo o mundo. Desde que o processo de votação e das urnas seja razoavelmente limpo, as eleições são aceitas em todo o mundo. E o Brasil simplesmente não vai falhar nesse teste.
O ponto de inflexão assustador é que Bolsonaro quer que os militares façam uma auditoria, basicamente uma contagem paralela dos votos. E tenho certeza que há setores nas Forças Armadas muito próximos de Bolsonaro que acham que isso é uma ideia maravilhosa. E precisamos avaliar as reações internacionais, como as que saíram da embaixada e do Departamento de Estado dos EUA logo após o discurso de Bolsonaro. Eles dizem não ver nenhum problema e esperar mais uma votação limpa, bem sucedida, bem gerida, organizada, com as quais eles possam aprender.
Se os generais entrarem nessa questão e fizerem o que Bolsonaro quer, pode haver problemas. Eles precisam lembrar que sua capacidade de proteger o Brasil, sua capacidade de se envolver nas parcerias internacionais para manter o que é necessário para a soberania militar do Brasil é de fato altamente dependente das relações internacionais. Se os militares intervierem, a primeira coisa que você verá é um colapso repentino da cooperação, especialmente com os Estados Unidos. E por mais que os brasileiros não queiram admitir publicamente, isso é algo muito importante. Também veremos um provável colapso do programa de compra de caças, pois a Suécia também não vai tolerar isso. Acordos para compra de armas, negociação para que o Brasil tenha submarinos nucleares. Tudo vai ser interrompido. O treinamento conjunto, as missões conjuntas, as consultas conjuntas, tudo isso vai desaparecer muito rapidamente.
Então imagino que haja uma enorme gama de parceiros militares importantes em todo o mundo, incluindo argentinos, chilenos, peruanos, colombianos e até paraguaios deixando claro que o governo não pode fazer isso. O presidente pode falar o que quiser, mas, em última análise, na hora de agir, isso vai ter um peso muito grande. E esse tipo de pressão provavelmente está acontecendo nos bastidores. A esperança é que haja uma divisão dentro das Forças Armadas entre os politicamente ativos e engajados e um grupo que está realmente genuinamente preocupado com a segurança nacional do Brasil.
Daniel Buarque – Você está falando dos militares, mas isso também é importante em termos de diplomacia. Uma das perguntas que eu queria fazer é sobre o papel do Itamaraty nessa reunião de Bolsonaro com embaixadores? Desde que Ernesto Araújo deixou o MRE fala-se em uma normalização da diplomacia sob Carlos França. Mas então temos este encontro com diplomatas estrangeiros. Qual o papel do Itamaraty nessa questão?
Sean Burges – Eles fazem o que mandam eles fazerem. Temos a tendência de esquecer disso. Mesmo considerando que nos últimos 20 anos houve diferentes níveis de estilos de engajamento, não há uma discussão no Itamaraty em relação ao fato de que eles são funcionários públicos. Os diplomatas respondem ao ministro das Relações Exteriores, que responde ao presidente. O Itamaraty não define a política externa do Brasil. É verdade que, como a burocracia encarregada de implementá-la, ele tem bastante peso em dar sugestões e ideias. Mas, quando um presidente diz o que deve ser feito, eles têm que fazer. A única alternativa é o pedido de demissão. Há registros históricos de diplomatas falando, especialmente disso na época da ditadura. Eles discordavam fundamentalmente da posição do Brasil e do que estava acontecendo, mas era seu trabalho fazer o que era indicado pelo governo. Vimos isso com o governo de Michel Temer, por exemplo, quando os diplomatas ao redor do mundo enviaram relatórios sobre o impeachment, com diferentes graus de entusiasmo. Eles fazem o que o governo manda. Quando Bolsonaro, como presidente, diz o que os diplomatas vão fazer, desde que não seja contra a Constituição e não seja ilegal, eles têm que fazer.
Daniel Buarque – Mas eles também podem perder muito, em termos de parcerias, da mesma forma que você disse em relação aos militares?
Sean Burges – A política externa é uma terra estranha. Há a ideia famosa de que o diplomata é um profissional pago para mentir em nome do seu país. Quando quando você lida com diplomatas, há uma distinção clara entre o que o funcionário público está dizendo e o que o indivíduo está dizendo. E há um claro reconhecimento em todo o mundo de que agora não é um bom momento para interagir com o Brasil, pois um louco está no comando. A percepção é de que não há racionalidade ou razão, e a imprevisibilidade é muito alta. O que muitos dos diplomatas estrangeiros com quem tenho conversado dizem é que eles sabem que o Brasil está aí, e sabem quais são as capacidades do país, sabem da competência do Itamaraty, mas simplesmente não podem fazer nada por quatro anos. Então podemos esperar que diplomatas brasileiros em todo o mundo apresentem oficialmente o posicionamento de Bolsonaro sobre a questão eleitoral, sejam ouvidos, mas que logo em seguida o assunto seja deixado de lado. Diplomatas vão ter que falar coisas que prefeririam não falar, mas isso não deve causar grandes dores de cabeça para as relações exteriores no longo prazo.
Daniel Buarque – Essas relações podem voltar ao normal no caso de termos outro presidente em 2023?
Sean Burges – Provavelmente, sim. É a mesma coisa que aconteceu com Trump. O mundo inteiro olhou para os EUA e viu quatro anos sendo jogados no lixo, mas as relações voltaram ao normal em seguida.
Daniel Buarque – Mas os EUA perderam muita credibilidade internacional com Trump, e mesmo com Biden ainda há uma luta para convencer as pessoas de que algumas posições dos EUA são sérias agora.
Sean Burges – Sim, é verdade, mas parte disso se dá por conta de posições do Congresso. Não acho que haja problemas no que o próprio Biden fala ou sobre o que o Departamento de Estado de Biden quer fazer. O problema é a sua capacidade de fazer as coisas acontecerem, e essa é uma questão política estrutural interna.
No caso do Brasil, o enfoque em termos de política externa é a visão e o propósito claros que o presidente tem para a política externa do país. E o plano de Bolsonaro é bastante destrutivo, negativo e não é consistente. Você não pode dizer que quer criar uma aliança de civilizações ocidentais para proteger o catolicismo no mundo ocidental e então ter como um de seus principais aliados a Rússia. Isso simplesmente não faz sentido.
Com Lula, se ele voltar, você vai ver uma volta ao que ele fazia antes, tratar a questão da fome e da miséria como a mais importante do país. E isso é algo que o resto do mundo vai perceber e respeitar.
Daniel Buarque – É possível entender como o Brasil tinha conquistado essa percepção internacional e como isso mudou?
Sean Burges – Há algum tempo eu estava trabalhando com mais dois colegas e estávamos tendo um debate realmente vibrante sobre Hugo Chávez e a Venezuela. Um dos pesquisadores do grupo era mais à esquerda e achava que Chávez era ótimo, outro se colocava intermediário, vendo coisas positivas e negativas. E eu sempre fui muito crítico. A partir dessas discussões, o que encontramos foi essa ideia de que houve uma pressão maciça da mídia mundial sobre a Venezuela em uma direção específica. Mas as pessoas na Venezuela não pareciam se preocupar, e continuaram vivendo suas vidas. E acabamos publicando um artigo explicando que não concordávamos em nossa avaliação de Chávez, e que isso era irrelevante. O que nós concordávamos é que todo o barulho internacional não fazia diferença. A Venezuela estava ocupada com assuntos internos venezuelanos.
No Brasil, sob Lula e sob Fernando Henrique Cardoso, as elites dominantes no Brasil fizeram algo parecido. Eles se colocaram como brasileiros soberanos focados em resolver as questões internas e sem dar atenção à opinião internacional. Bolsonaro não tem essa postura. Bolsonaro está desesperado por aprovação externa do que ele quer fazer. Não consigo pensar em nenhum outro presidente brasileiro que teria uma reunião daquele tipo.
Sei que Fernando Henrique fez um esforço enorme com os mercados financeiros internacionais e com o Tesouro dos EUA para ter o apoio necessário para estabilizar o real, mas isso é apenas diplomacia econômica padrão. O grupo de Lula, em cooperação com Fernando Henrique, deu continuidade a um trabalho deste tipo. Mas isso é manter um relacionamento estratégico. Não é tentar obter um julgamento internacional de que seus próprios sistemas internos estão fundamentalmente destruídos.
Daniel Buarque – É curioso você dizer que FHC e Lula estavam focados em questões internas do Brasil, pois ao mesmo tempo eles estavam recebendo muitos aplausos externos pelo que estavam fazendo. Os dois governaram em um período em que as pessoas começaram a acreditar que o Brasil ia ser um ator importante no mundo. Ao mesmo tempo, Bolsonaro está tentando obter essa aprovação, mas estamos vendo a pior situação da imagem internacional em décadas…
Sean Burges – Bem, FHC e Lula conseguiram aprovação internacional porque eles estavam enfrentando os grandes desafios do país e estavam tendo sucesso. FHC controlou a inflação, administrou o que poderia ter sido uma desvalorização catastrófica do real, tirou um número enorme de pessoas da pobreza e deu a estrutura fiscal para o próximo presidente fazer coisas incríveis. Lula entrou e renomeou, reembalou e mudou a marca dos programas de transferência criados por FHC e ampliou seu alcance. Além disso, instituiu vários tipos de políticas sobre equidade racial e social que funcionaram. O Brasil deixou o mapa da fome da ONU. Até a Dilma, com os desafios que ela teve, foi capaz de manter isso e ter resultados positivos. Ninguém estava dizendo a Dilma era tecnocraticamente incompetente — ela era politicamente incompetente. Não é o mesmo. Mas a aprovação veio dos sucessos que estavam acontecendo com políticas internas concretas.
Então, se olharmos para o que Bolsonaro fez: falha total na luta contra a Covid-19, realmente catastrófica. As taxas de pobreza estão subindo de forma como nunca se viu. Nada aconteceu em termos de investimentos substanciais em infraestrutura e políticas econômicas. Ele não fez nada de relevante. Não houve nenhum movimento relevante em termos de reforma tributária, nenhum movimento relevante em termos de reforma trabalhista, nenhum movimento relevante em termos da reforma dos serviços sociais. Nada do que precisa ser resolvido. Ele não fez nada.
Daniel Buarque – Voltando ao contexto do início da conversa e da postura de Bolsonaro em relação ao sistema eleitoral brasileiro, qual é a sua expectativa para os próximos meses no Brasil?
Sean Burges – É claro que ele vai rejeitar o resultado das urnas, se perder. Isso é bem transparente. A menos que alguém realmente o pressione. O Brasil vai enfrentar uma jornada difícil. Não parece haver uma tendência histórica no Brasil de as pessoas se matarem por violência política. E eu acho que essa é a questão realmente preocupante hoje. O Brasil precisa voltar a um perfil tradicional em que as pessoas gritam, discutem, mas depois saem juntas para comer um churrasco, mudar de assunto e ter uma boa relação. O problema de Bolsonaro é que ele rompeu essa tradição de as pessoas se darem bem mesmo com seus opositores.
É uma situação parecida com a que se vê nos EUA, em que um grupo de nacionalistas cristãos brancos sentem que sua posição na sociedade e os bons empregos e o serviço e todas essas coisas são deles por direito de nascença. E à medida que a demografia muda, as qualificações educacionais mudam e a forma da economia muda, eles não estão se adaptando, enquanto todos os outros grupos estão seguindo em frente. E eles estão reagindo com atitude rebelde. O Brasil tem o mesmo problema. Se o Brasil vai ficar mais rico e ser o país que as elites dizem que querem que ele seja, economicamente dinâmico, um bom lugar para fazer negócios de forma rentável e segura, isso significa que as pessoas em que eles sempre confiaram que vão trabalhar quase de graça e estão disponíveis a qualquer momento não vão mais estar, pois elas vão ficar mais ricas, vão se tornar partes dinâmicas da economia. E, finalmente, isso é uma coisa boa. Significa apenas que as pessoas precisam se adaptar, mas o que vai acontecer nesse processo é que as percepções das pessoas sobre o prestígio social vão mudar, criando uma pressão. Isso é uma grande luta social, e demora para se resolver. Não é a primeira vez que isso acontece, e o Brasil não é o único país a passar por isso.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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