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Interesse Nacional
30 setembro 2022

A ideologia de Putin teria a Rússia como centro da civilização global

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A invasão da Ucrânia pelos russos não é apenas um episódio geopolítico decorrente da expansão da OTAN para as fronteiras russas, o que teria aguçado o sentimento predominante naquele país de cerco por inimigos, mas tem raízes profundas na ideologia russa, no modo mediante o qual seus teóricos representam a sua missão no mundo. Não se pode entender o que lá ocorre atualmente se não atentarmos igualmente para a concepção de mundo aí envolvida. Mais concretamente, não se trata somente de uma recuperação da história russa, dos czares, após a derrocada do comunismo, mas também da eficácia das ideias que vieram a orientar a elite russa.

Ideias, como bem assinalou Hobbes em seu livro “Do Cidadão”, são guias da ação, máximas que orientam a conduta humana, determinando aquilo que fazemos ou deixamos de fazer. Elas produzem, neste sentido, efeitos no mundo. Se uma determinada concepção considera que o inimigo é o Ocidente, a democracia, o relativismo e a economia de mercado, as ações daí decorrentes voltar-se-ão contra aqueles que as encarnam ou representam. E, no cenário político e geopolítico atual, Ivan Ilyin e Alexander Dugin são líderes espirituais, formuladores de ideias, com profunda influência sobre o presidente Vladimir Putin e, no caso deste último pensador, sobre o establishment militar e de inteligência russos.

Após o colapso da União Soviética em 1991, Ivan Ilyin foi objeto de uma espécie de renascimento com suas obras ganhando grande divulgação, sendo amplamente apreciadas. Sua influência alcançou o nível propriamente político, tendo os seus restos sido transplantados para Moscou, no monastério de Donskopy, em novas exéquias, sob o beneplácito de Putin. Note-se que se trata de um pensador de extrema-direita, autoritário, antidemocrático, que é elevado à categoria de ideólogo do novo regime[1]. Nascido em Moscou em 1883, abandonou a União Soviética devido à perseguição comunista, tendo se estabelecido em Berlim em 1922. Putin o menciona frequentemente em seus discursos. Foi ele citado nos discursos presidenciais de 2005 e 2006 e, no ano seguinte, em outro discurso no Conselho de Estado. Em 2009, o presidente depositou flores em seu túmulo[2].

Advogava Ilyin um forte poder central e a anexação da Ucrânia e do Cáucaso, sem que nenhum direito em relação à Rússia. Inicialmente próximo dos nazistas, tendo o seu escritório, inclusive, no Ministério da Propaganda de Goebbels, terminou por ter problemas com a Gestapo. Deixou o seu trabalho em 1935, movendo-se para a Suíça. Apesar de compartilhar boa parte das pressuposições do nazismo, seu distanciamento deveu-se sobretudo a dois fatores: 1) o fato de a concepção nazista ver os eslavos como sub-humanos, inferiores aos arianos, era para ele inaceitável, considerando a sua própria ideia da civilização e do império russo; daí não se segue, contudo, nenhuma simpatia para com os judeus, também considerados como outra forma de sub-humanos. Não há nenhuma universalidade em suas ideias; 2) o fato de o nazismo ser contrário à religião cristã, uma vez que ele era defensor incondicional da Igreja Ortodoxa Russa, o que não se estenderia a nenhuma outra religião. De nova conta, é a particularidade russa que é oposta à particularidade ariana.

Segundo sua concepção, seria a Igreja Ortodoxa Russa expressão de uma superioridade civilizatória, e não somente teológica, que teria como missão levar a cabo a salvação do mundo, a começar pelos Estados eslavos. Isto significa dizer que a Igreja Ortodoxa estaria justificada para impor, mesmo coercitivamente, seu credo a todos os que dela discordam, pois ela seria a representante divina em sua luta contra a maldade. Qualquer arbitrariedade por ela cometida estaria, então, justificada. A violência poderia ser uma delas. Isto torna-se especificamente claro ao escrever que quando um homem é incapaz de um autoconvencimento para o bem, estudando e seguindo os Evangelhos, não pretendendo sair de suas próprias convicções religiosas, ele pode tornar-se objeto de um convencimento (coerção) externo, por uma conversão feita por aqueles que teriam a ideia correta de Deus, da bondade e da maldade[3]. Na ausência de eficácia da persuasão política, pode tomar o seu lugar a coerção militar, como estamos observando hoje na Ucrânia, com os russos impondo sua forma de russianidade, com apoio da Igreja Ortodoxa, a partir de sua ideia própria de Império. Segundo esta perspectiva, a Rússia estaria recuperando um território “perdido”, a própria noção de perda pressupondo evidentemente que se tinha anteriormente uma coisa, sobre a qual se exerce um direito.

Note-se que a aversão de I. Ilyin e, depois dele, A. Dugin, pelos valores ocidentais, identificados ao relativismo, ao hedonismo, ao apego aos bens materiais, à tolerância pelos princípios e religiões dos outros, ancora-se em sua própria concepção do caráter absoluto, sacro, dos princípios e dos valores da Igreja Ortodoxa Russa. Sua expressão, do ponto de vista da vontade, logo do caráter de sua ação mesma, reside em que os ocidentais seriam dotados de uma fraqueza da vontade, de falta de personalidade para lutarem por suas ideias baseadas no relativismo, enquanto os valores russos, eurasianos, seriam os da vontade forte, melhor preparada, inclusive, para a guerra. 

Povo russo com missão teológica

Na esteira de I. Ilyin, A. Dugin, ele mesmo membro da Igreja Ortodoxa, fazendo parte de uma de suas correntes mais tradicionalistas, os Velhos Crentes, sustenta que o povo russo não é um povo qualquer, mas destinado a exercer uma missão única, de cunho teológico, como se tivesse sido escolhido por Deus. O povo russo não é igual a outros povos, visto que sua essência é divina, algo que se concretiza na Igreja Ortodoxa, em um amálgama entre os dois. O espírito do povo russo e o messianismo são os dois lados da mesma moeda[4]. Eis por que o povo, a civilização e o império russos são de cunho eurasiano, possuem um valor absoluto, como se outros povos devessem a eles se curvar. Não são ocidentais nem europeus, ao contrário, por exemplo, do sustentado por Fiódor Dostoiévski em Os Irmãos Karamázov. É precisamente este caráter absoluto que se contrapõe ao relativismo ocidental, ou ainda, a particularidade absoluta russa se opõe à falsa e precária universalidade ocidental, sendo-lhe, portanto, superior.  Ou seja, a história mundial se faria através da “absolutidade” russa, pela qual alcançaria o seu ápice escatológico: o povo russo como povo escolhido[5].

Do ponto de vista teórico, sua concepção da política é a de Carl Schmitt[6], ao qual dedica todo um capítulo, baseada que está na distinção entre amigo e inimigo. Interna e externamente, o inimigo é um fator de agregação, de coesão, dos assim denominados amigos que visam à aniquilação daquele que por seus valores, interesses ou formas de ser deles divergem. Uma vez que o competidor, o adversário e o concorrente ganham a denominação de inimigo, ele se torna, ipso facto, o alvo a ser eliminado, inclusive fisicamente. Civilizações e Estados então tidos por inimigos serão objetos de toda uma política voltada para a sua destruição, aí incluindo ações que visam minar os seus valores, via soft power, até ações propriamente militares, como as que estamos presenciando na Ucrânia.

Observe-se que Vladimir Putin e Sergey Lavrov (ministro de Relações Exteriores), entre outros, consideram os dirigentes ucranianos como nazistas e genocidas, ao arrepio de qualquer confrontação com a realidade. Volodymyr Zelensky é judeu, e a tentativa de anexação do Leste da Ucrânia por forças e milícias russas nada tem a ver com um suposto genocídio que estaria sendo cometido contra a população de língua russa desta região. Se genocídio houve, foi o da fome vermelha[7] empreendida pelos soviéticos, pelos russos, contra os camponeses ucranianos na década de 30 do século passado, memória essa até hoje presente. Ou seja, Putin e seu grupo tentam reescrever a história, utilizando para este fim uma concepção schmittiana (Carl Schmitt) de circunscrição do campo político pela noção do inimigo, na qual entram em linha de conta as mais distintas narrativas, inclusive as ficcionais: para a “política eurasiana, a definição de amigos e inimigos é muito importante”[8]. Ou ainda, aqueles que ajudam os russos a construírem um império são tidos por amigos, enquanto os que se opõem a este projeto são considerados como inimigos a serem destruídos ou subjugados[9].

Muitos regimes ditatoriais caracterizam-se exclusivamente pelo exercício da força, pelo atendimento às necessidades materiais de seus súditos, sob medo de enfrentarem uma insurgência, não carecendo de nenhuma justificação de tipo ideológico, tal como foi formulado por Xenofonte[10]. Não é este, porém, o caso da Rússia, estando sua cultura perpassada por componentes ideológicos e doutrinários, dentre os quais: a) religião, cujos elementos constitutivos mais importantes são os da Igreja Ortodoxa, no sentido de ser possuidora de uma missão sagrada, com a posição de Terceira Roma e Nova Jerusalém; b) patriotismo/nacionalismo, com forte pendor chauvinista; c) sua ideia geopolítica, ela própria ancorada na noção de Império e reconquista de territórios que considera perdidos, devendo, portanto, ser recuperados/conquistados, a exemplo, do que ocorreu com a Ucrânia e os países bálticos, posteriormente ao esfacelamento da União Soviética; d) o Eurasionismo, conduzindo a Rússia para uma conotação mais fortemente asiática, em todo caso afastada da Europa e da significação universal desta cultura, sendo Dugin o seu mais importante teórico, o de maior influência junto a Putin e aos centros civis e militares de Poder; e) o sentimento de uma fortaleza cercada que deve ser de qualquer maneira defendida, o ataque a outros países, sendo uma forma sua de libertação do cerco sofrido, segundo a sua percepção da ameaça atlantista; f) o medo da cultura ocidental, de sua hegemonia cultural, de suas ideias de liberdade, tolerância, relativismo moral, ateísmo, pluralidade religiosa, características essas que são tidas por daninhas para a afirmação de cultura eurasiana, considerada superior à europeia.

O comunismo é página virada

Para a concepção autoritária russa, religiosamente ancorada, o comunismo seria uma página virada, devendo ser substituído por uma outra ideologia que remonta, em vários aspectos, à cultura pré-bolchevique. Neste sentido, a mensagem internacionalista do marxismo-leninismo é objeto de completa rejeição, levando consigo Trotsky e a elite bolchevique judaica por seu internacionalismo, Lenin por seu legado ateu, materialista e de desprezo pela religião e pela propriedade privada. A cultura russa seria totalmente alheia ao internacionalismo proletário! Contudo, Stálin é objeto de uma reavaliação por ter defendido a ideia do socialismo em um só país, significando isto a reafirmação da nacionalidade e do patriotismo, particularmente presentes na narrativa da Segunda Guerra Mundial e, igualmente, o fato de a União Soviética ter se tornado uma superpotência, inclusive nuclear, reafirmando o orgulho russo, visto por muitos, então, como uma superioridade cultural[11].

Consequência geopolítica deste novo posicionamento ideológico consiste na captura da Crimeia, no conflito militar no Leste da Ucrânia e na queda do avião da Malaysia Airlines, derrubado por um míssil russo, disparado por milícias apoiadas e armadas pela Rússia[12]. Interessa aqui ressaltar a conexão entre o desenvolvimento ideológico em suas feições autoritárias, inclusive militares, com eventos de invasão direta ou indireta da Ucrânia, traduzindo-se agora pela pura e simples invasão deste país, tornando, inclusive, a anexação da Crimeia uma questão menor. A invasão russa, nesta perspectiva, seria algo ideologicamente justificado, mesmo necessário para que esse país preencha sua missão de potência mundial.

Chega A. Dugin a escrever, no que diz respeito à Ucrânia, que se trata apenas da remoção de sua elite política, a soldo dos americanos, visto que a maior parte de sua população seria pró-Rússia, obediente às diretrizes da Igreja Ortodoxa do Patriarcado de Moscou. Segundo ele, escrevendo em 2017, a batalha pela conquista de Kiev e do Leste ucraniano estariam no horizonte[13]. Logo, as fronteiras ucranianas seriam meramente fictícias, pois não se pode separar artificialmente o que é um organismo vivo, fazendo existencialmente parte de um mesmo todo. Neste sentido, o “projeto atlantista” visa secionar a civilização russa de seu próprio corpo, de seu próprio ethos, como se o seu organismo mesmo estivesse sendo amputado. Eis por que, do ponto de vista ideológico, a OTAN é o “mal absoluto”[14], que deve ser eliminado.

A propósito dos custos da invasão da Ucrânia e eventuais sacrifícios que estejam ou serão sentidos pelo povo russo, entendidos como um obstáculo ao prosseguimento da guerra, deve-se frisar que o sacrífico é compreendido pela Igreja Ortodoxa como um componente essencial da salvação, um necessário sofrimento para que a Rússia cumpra com sua missão única e escatológica (teoria acerca das últimas coisas que vão acontecer no fim da humanidade). O que para um ocidental poderia ser visto como um impedimento para uma guerra de médio ou longo prazos é visto, em outra perspectiva, como um elemento central para uma ideologia que carece deste tipo de necessidade, digamos religiosa. Nos escritos de Ivan Ilyin[15] este ponto é particularmente ressaltado, correspondendo politicamente e historicamente a uma nova experiência da Cruz, como se os russos estivessem seguindo os ensinamentos de Cristo. 

Rússia como o centro da civilização global

A máxima duginista e putinista da ação está, assim, fundamentada no conceito de nação, em sua acepção inclusive imperial, considerando tradições, costumes, religião ortodoxa e uma suposta civilização eurasiana como essencialmente distinta da ocidental. A Rússia seria o seu centro, daí espraiando-se, primeiramente, para o mundo eslavo, que supostamente compartilharia dos mesmos valores, embora estejam separados por fronteiras territoriais, a bem dizer para esses pensadores e políticos, artificiais. Isto significa que seus valores, princípios, instituições, costumes e história teriam uma dimensão sagrada, traduzindo-se por uma validade absoluta, pois remontando a Deus conforme a crença ortodoxa. Validade absoluta, observe-se, não quer dizer universal, uma vez que está assentada na particularidade nacional.

Por via de consequência, os interesses nacionais russos se sobreporiam a todos os demais, em particular aos do mundo eslavo em um primeiro momento, justificando qualquer invasão ou conquista territorial. A política imperial russa, assim concebida, envolve um componente geopolítico, na medida em que territórios de outros países passam a ser considerados como “seus”, embora não os sejam atualmente. O próprio vocabulário é característico: não se trata de uma “conquista” ou “invasão”, mas de “retomada” e “recuperação”. Está assim justificado o uso da força militar para a “recuperação” de territórios considerados “seus”, que foram injustamente perdidos. Os que se opuserem passarão ipso facto a serem considerados como inimigos, a serem tratados sem misericórdia. Pense-se nos bombardeios da Ucrânia, não poupando populações civis, escolas e hospitais.

Uma vez que o conceito de nação serve como guia da ação passa a ser logicamente necessário o reconhecimento de outras nações que estejam fundadas em outras “civilizações”, como a chinesa, a hindu e o Estado Islâmico, que se tornam, assim, aliados atuais ou potenciais, em uma mesma cruzada contra o inimigo comum, a civilização ocidental, os seus valores universais e as democracias capitalistas. Os amigos tornam-se, portanto, os que compartilham do mesmo inimigo, cada qual em busca de seus interesses nacionais, sempre e quando estejam engajados no combate contra o “Ocidente”, a “democracia”, o “capitalismo (economia de mercado)”, os “direitos humanos”. Quaisquer massacres, atrocidades e violências políticas passam a ser justificadas na perspectiva dos interesses nacionais assim concebidos. Uma vez que os “direitos humanos”, por serem ocidentais, não mais possuem validade enquanto critério e parâmetro de juízo, toda política de morte torna-se válida.    n


[1]. Ilyin, Ivan Alexandrovich. On Resistance to Evil by Force. Svolen, Slovakia/London, Taxiarch Press/K. Benois, 2018. Introdução, p. XII.

[2]. Laqueur, Walter. Putinism. Russia and its future with the West. New York, Thomas Dunne Books/St. Martin’s Press, 2015.

[3]. Ilyin, Ilyin, Ivan Alexandrovich. On Resistance to Evil by Force. Svolen, Slovakia/London, Taxiarch Press/K. Benois, 2018, p.31.

[4]. Dugin, Alexander. The Rise of the Fourth Political Theory. London, Arktos, 2017, p. 78.

[5]. Dugin, Alexander. Putin versus Putin.  Rio Tinto, Episch Verlag, 2021, p. 83.

[6]. Rosenfield, Denis. Jerusalém, Atenas e Auschwitz. Pensar a existência do mal. Rio de Janeiro, Topbooks, 2021.

[7]. Cf. Applebaum, Anne. A fome vermelha. A guerra de Stalin na Ucrânia. Rio de Janeiro, Record, 2021 e Snyder, Timothy. Terras de sangue. A Europa entre Hitler e Stálin. Rio de Janeiro, Record, 2012.

[8]. Dugin, Alexander. The Rise of the Fourth Political Theory. London, Arktos, 2017, p. 142.

[9]. Ibid., p. 110.

[10]. Xenofonte. Da Tirania. Incluindo a correspondência Strauss-Kojève. São Paulo, É Realizações Editora, 2016.

[11]. Laqueur, op.cit., p. 2-3.

[12]. Ibid, p. 12.

[13]. Dugin, op. cit., p. 107.

[14]. Ibid, p. 134-5.

[15]. Ilyin, Ivan. Foundations of the Christian Culture. Waystone Press.

Graduado em Filosofia na Universidade Nacional Autônoma do México, doutor pela Universidade de Paris I e pós-doutor na École Normale Supérieure de Fontenay-St.Cloud. É professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

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