23 dezembro 2022

Armadilhas ideológicas

Denis Lerrer Rosenfield é escritor, professor universitário de filosofia e articulista em várias mídias, como o jornal O Estado de S. Paulo. Participou da fundação do Instituto Millenium


O quadro político brasileiro sofreu uma profunda mudança com a eleição de Bolsonaro, pois, ao ser eleito, aparecia como um líder de direita que seguiria uma pauta conservadora nos costumes, liberal na economia e institucional na obediência às regras democráticas. Já apareciam, no entanto, traços que, logo depois, foram desenvolvidos em função de posições mais propriamente de extrema direita, com a utilização reiterada da distinção schmittiana entre amigos e inimigos. Segundo o teórico do nazismo, o político, em sua definição, se definiria como um campo de luta à morte, onde adversários se considerariam como inimigos a serem exterminados, não importando, para tanto, a periculosidade real do inimigo, mas tão somente a sua representação. Não esqueçamos que, no caso alemão, os judeus não chegavam a 1% da população, estando totalmente desarmados. O inimigo pode bem ser fictício ou imaginário, sendo essencial somente que seja representado como um perigo.

No transcurso de seu mandato, essas características foram progressivamente se consolidando. Não é casual o menosprezo que propagou pelas vítimas da Covid, não mostrando nenhum tipo de solidariedade com o próximo. Houve o que se poderia denominar de uma utilização política da morte – o presidente apresentando-se como uma espécie de “super-homem”, que não poderia ser atingido por essa doença. Com seu exemplo, exigia emulação. Os outros, os que se pretendiam vacinar ou, posteriormente, se vacinaram efetivamente, foram tidos por “fracos” e “maricas”. Houve algo propriamente macabro nesta postura, manifestando-se, mesmo, na defesa da prescrição da cloroquina, identificada a um tipo de “poção mágica”, em um completo desrespeito para com a ciência. Tornou-se sua conduta um meio de mobilizar a sua massa de apoiadores, seguindo-o por um ato de fé.

Hitler ostentava o mesmo “saber” – o de ser considerado por todos um gênio, alguém que sempre tinha razão, não importando o que fizesse. O funeral de seus conhecimentos militares foi a batalha de Stalingrado. Inclusive, algo completamente irracional era tido por uma sabedoria, só por ele alcançada, ao arrepio de qualquer ponderação crítica e critério científico. Bolsonaro adota a mesma postura, sendo percebido por seus seguidores como alguém que tudo sabe, líder incansável e certeiro, tido, portanto, como um “mito”. Por mais bobagens que pronunciasse, seus seguidores o aclamavam: mito, mito, mito! Famílias se dividiam, a crença em sua sabedoria se generalizou e pessoas anteriormente sensatas tornaram-se meras repetidoras de suas falas. “Duce”, em italiano; “Führer”, em alemão; “Mito”, em português.

O armamento indiscriminado da população brasileira, por sua vez, não se fez segundo o direito de autodefesa, como quando uma pessoa detém uma arma em sua casa ou em uma propriedade rural para defender-se da violência. Algo totalmente justificável. Pelo contrário, o armamento ganhou uma conotação política, expressa em palavras como “um povo armado jamais será escravizado”. É como se o Brasil vivesse em uma situação de guerra civil ou sendo invadido por outro país, estando obrigado a defender-se nas ruas. Algo totalmente implausível, mas correspondendo à sua noção imaginária de um inimigo potencial, em clima de confronto permanente. Fuzis foram assim facultados, como se aqui estivesse em questão não o direito à autodefesa, mas um direito ao ataque.

As motociatas exibiram uma estética da violência. Homens com motos potentes, vestidos com casacos de couro, apresentavam-se como “fortes”, seguindo maciçamente o “mito”, que se mostrava como um líder vigoroso. Muitos estavam provavelmente armados. As imagens de milhares de pessoas nessas procissões políticas apareciam como o coroamento de uma nova forma de organização, sustentada por mídias sociais, que os apresentavam como ativistas contra o “sistema”. Motociclistas em ruas e estradas e militantes digitais vieram a configurar uma nova cena pública, segundo a qual uma nova forma de política estaria nascendo, contra políticos podres e uma democracia decrépita. Os transbordamentos democráticos já se faziam presentes, para além dos partidos tradicionais e por fora dos parâmetros constitucionais. A ideia de golpe tornou-se uma decorrência.

Aclamação popular como vontade popular

Havia, todavia, a firme convicção de que Bolsonaro ganharia as eleições, com a ideia de golpe tornando-se uma ameaça e um instrumento de mobilização popular. Funcionaria o que eles consideravam, na bolha em que viviam, uma forma de democracia totalitária, baseada na concepção de que a aclamação popular, nas ruas, nas motos e nas redes sociais, seria a vontade popular, situada acima de quaisquer instituições democráticas e da própria Constituição. Com efeito, Bolsonaro e seus seguidores enveredaram para o questionamento do sistema eleitoral e das urnas eletrônicas. Ainda segundo ele, só haveria democracia em caso de vitória sua; em caso de derrota, as instituições democráticas não mais seriam de nenhuma serventia.

No entanto, para não ser apeado do poder, evitando um impeachment cada vez mais provável, o presidente foi obrigado a compor. Não lhe interessava propriamente governar, mas fortalecer-se visando à reeleição. Políticas de saúde e sociais nem foram aventadas, salvo na compra de vacinas, quando tornou-se visível que não poderia se sustentar apenas em seu negacionismo. As mortes se avultavam e a população não mais admitia tal grau de insanidade. O suposto liberalismo apregoado por sua equipe econômica foi progressivamente saindo de cena em proveito de uma espécie de social darwinismo, com os mais carentes sendo deixados à sua própria sorte. Quando apareciam, era em virtude de interesses eleitorais como o Auxílio Brasil. O orçamento, por sua vez, foi transferido para a Câmara dos Deputados e o Senado que cobraram um alto preço pelo apoio político, cuja expressão mais visível é o denominado “Orçamento Secreto”.

A pauta bolsonarista de extrema-direita continuou atuante em seus discursos, em seus ataques ao Supremo, ao TSE, ao sistema eleitoral ou, resumindo, às instituições democráticas, mas não na prática parlamentar, que ganhou um perfil mais conservador, ancorado na manutenção do status quo. O fenômeno é aqui particularmente interessante, visto que a política bolsonarista propriamente dita é a da retórica extremista, a das motociatas, a das manifestações de rua, a dos bloqueios de estradas e a das mídias digitais, que criaram um mundo à parte, o das suas concepções extremistas, alheias ao conhecimento e à verdade. Eis a força do Bolsonarismo como movimento, e não em sua representação partidária e parlamentar.

Para efeitos eleitorais, em função da expectativa de poder por Bolsonaro criada, alguns partidos políticos em torno dele se aglutinaram, em particular o PL, o PP e o Republicanos. Tais partidos já vinham atuando juntos na Câmara dos Deputados e no Senado, tendo tal aglutinação recebido a denominação de Centrão. Acontece, porém, que o Centrão não é bolsonarista raiz, só o sendo de ocasião, segundo os seus interesses particulares, mormente emendas parlamentares, ocupação de ministérios e órgãos públicos. Vivem da manutenção do status quo, e não de qualquer ruptura democrática ou convulsão social. É-lhes estranho qualquer ideia de revolução, de extrema direita ou de extrema esquerda.

Se observarmos o resultado das urnas, o único partido que se destaca por ter parlamentares identificados plenamente ao bolsonarismo é o PL, e isto em torno de 50% dos seus deputados. Os bolsonaristas em outros partidos são marginais. O restante não possui nenhuma convicção de extrema direita, aí estando por interesses e conveniências pessoais. O PP vive também em função do atendimento de seus interesses, particularmente regionais, seguindo todos os parâmetros democráticos, deles não se desviando. O deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, apressou-se em reconhecer o resultado das eleições, cumprimentando o novo presidente. O ministro da Casa Civil, senador Ciro Nogueira, encabeçou a equipe de transição e colocou-se à disposição do novo presidente. O Republicanos trilhou o mesmo caminho, reconhecendo o resultado eleitoral. Se sua pauta conservadora coincide em vários aspectos com o Bolsonarismo, isto se deve às críticas que fazem aos petistas, por se afastarem dos seus valores. Contudo, tampouco há aqui alguma convicção antidemocrática. Note-se que tanto o PP quanto o Republicanos começaram a se entender imediatamente com o novo presidente, iniciando negociações.

Assim, Lula ganha a eleição graças a uma aversão muito acentuada dos eleitores em relação a Bolsonaro e ao bolsonarismo em geral. É significativo notar que as mulheres, desprezadas nos discursos do então presidente, foram as que mais votaram contra ele. O eleitorado lulista, neste sentido, não foi exclusivamente petista. Liberais, conservadores ou pessoas de centro em geral já não mais aceitavam essa radicalização de extrema direita, procurando dela desvencilhar-se. Foi o voto do não que caracterizou a eleição presidencial, e não qualquer aprovação de uma pauta de esquerda, aliás inexistente do ponto de vista das ideias. Lula conseguiu encarnar uma ampla frente antibolsonarista, e não necessariamente petista – uma “Frente democrática”. Alguns escolheram dentre os males o menor!

Centrão como protagonista político

A questão, porém, para o novo governo, reside em que, para além do não, ele não possui uma plataforma do sim, tendo se restringido, durante a campanha, a palavras de ordem sobejamente conhecidas, como quando Lula afirma que sua própria pessoa é a prova de responsabilidade fiscal, crescimento, emprego e assim por diante. Apresenta-se, deste modo, como uma espécie de mito, como se fosse a garantia do presente e do futuro do Brasil. Organiza uma equipe de transição que mais parece uma assembleia, reservando-se toda a decisão, como se a sua intervenção por si só fosse um toque de mágica que tudo resolveria. A realidade reage a este tipo de quimera.

Imediatamente cometeu um erro estratégico, ao negociar, com o Centrão e outros partidos aliados, a presidência da Câmara dos Deputados, a presidência do Senado, a composição das mesas diretoras das respectivas Casas, a liberação de emendas parlamentares presentes e futuras, a composição dos ministérios e assim por diante. Isto porque pediu uma autorização para gastar durante quatro anos, como se não tivesse nenhuma limitação, contratando uma inflação futura, baixo crescimento, dívida pública ascendente, juros maiores dentre outras consequências. Seguiu a concepção, própria do PT, de pensar em seu poder futuro e nas supostas virtudes de despesas incontroladas. Na verdade, terminou por antecipar um processo político, tornando o Centrão novamente um protagonista político, ao contrário de sua promessa de campanha. O Brasil ganha em governabilidade imediata, perde em ideias para governar e em políticas públicas.

A negociação com o Centrão e a partilha dos ministérios, da forma atabalhoada como foi feita, pode talvez evitar a repetição dos escândalos de corrupção que caracterizaram os diferentes governos petistas, com os codinomes bem conhecidos de “mensalão” e de “petrolão”. A corrupção foi a marca destes governos seja em benefício próprio, seja na “compra” de parlamentares, esgarçando o tecido institucional. Ficará muito mais difícil para o PT enveredar novamente por esse caminho, pois haverá uma atenção especial da opinião pública, assim como a fiscalização dos órgãos públicos. O partido, no passado, já tinha abandonado a sua bandeira de “ética na política”; agora, abandona também a sua proposta de uma nova política, contraposta a do governo Bolsonaro. Lula pede licença ilimitada para gastar; em contrapartida, oferece benesses e privilégios dos mais diferentes tipos a parlamentares e partidos políticos.

Há um vácuo de ideias. Há muito burburinho no teatro da equipe de transição, que faz uma grande encenação visando mostrar que algo está sendo feito, enquanto a única coisa que apresenta consiste em criar novos gastos, como se assim o novo governo, graças um passe de mágica, fosse se viabilizar. Velhas ideias são expostas como se fossem a exibição de algo novo. Qualquer incauto poderia ter, mesmo, a impressão de que se trata da volta de uma idade de ouro petista, um paraíso que teria sido destruído por Bolsonaro. De fato, os governos petistas, sobretudo no estertor da ex-presidente Dilma, sucumbiu a suas próprias contradições, na perda de apoio parlamentar, na contabilidade criativa, no baixo crescimento, na inflação, no desemprego, nos juros altos e na quebra generalizada das expectativas da população de baixa renda.

Ocorre, contudo, que as propostas que estão sendo apresentadas em muito se parecem com as que nortearam o governo Dilma, e não as que presidiram o primeiro mandato do presidente Lula. Havia uma expectativa generalizada de que o novo presidente se aproximaria da responsabilidade que exibiu quando conquistou o poder, falando demagogicamente de uma herança maldita de seu antecessor quando ela lhe foi infinitamente bendita. Agora, vocifera contra o suposto golpe do presidente Temer, não reconhecendo que o impeachment seguiu todos os trâmites constitucionais, nem os imensos feitos daquele governo ao pôr novamente o país nos trilhos. Lula, contudo, está se apresentando como uma contrafação da ex-presidente Dilma.

O PT é um partido que não soube se renovar, nem reconhecer seus próprios erros. Segue pautas heterodoxas na economia, no manejo do orçamento, sempre procurando tudo empacotar sob a forma de uma novidade, quando foi isto a causa de seu próprio fracasso final. Ficou preso a suas velhas ideias de esquerda, tendo, porém, feito anteriormente avanços em uma política socialdemocrata, que foi esboçada e perseguida no primeiro governo Lula. E o fez adotando igualmente uma política liberal, na mesma linha da realizada pelo governo Fernando Henrique. A continuidade foi evidente. A retórica esquerdista, todavia, continuava presente, tendo finalmente conseguido se impor em seu segundo mandato e no de sua sucessora.

A título de exemplo, nada mudou no que toca o desrespeito ao direito de propriedade. Lula segue alinhado ao MST e ao Movimento dos Sem Teto, como se invasões fossem a melhor solução para a desigualdade social, para além da violência destes atos. A demagogia baseada na fraseologia da luta de classes continua imperando, sendo a condutora dessas ações. Consequentemente, seu efeito propriamente político reside na retomada de bandeiras ideológicas como “terras improdutivas”, “latifúndio”, luta contra os “rentistas”, contra a “especulação imobiliária” e assim por diante. A “especulação financeira” continua aparecendo como outro bode expiatório. Nada indica que haverá algum tipo de arrefecimento, sobretudo porque o deputado Guilherme Boulos, agora reforçado pelo crescimento do PSOL, almeja a conquista da Prefeitura de São Paulo. É um dos preferidos do presidente Lula.

Por último, as credenciais democráticas do PT são duvidosas. Contra Bolsonaro, o partido efetivamente soube defender a democracia, tendo tido uma postura responsável, mas tal comportamento não se repete quando ditadores e autocratas são de esquerda. Prima aqui a afinidade ideológica e os interesses partidários, tornando-se a democracia um mero instrumento a ser manipulado segundo as conveniências. As ditaduras chavista e cubana, além da de Nicarágua atualmente, são motivos de elogios por serem “socialistas”, quando a sua realidade é cruel no desrespeito aos direitos humanos, a prisões arbitrárias, a mortes, ao controle policial de suas populações, à miséria generalizada e a imigrações forçadas. O paraíso socialista é literalmente um inferno. Cabe também ao novo governo decidir se continuará caminhando no respeito às instituições democráticas ou se essas serão apenas instrumentos de subversão da própria democracia. Espera-se que experiência bolsonarista tenha sido um poderoso antídoto, pois essa não pode se apresentar com uma nova roupagem. 

Graduado em Filosofia na Universidade Nacional Autônoma do México, doutor pela Universidade de Paris I e pós-doutor na École Normale Supérieure de Fontenay-St.Cloud. É professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

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