23 dezembro 2022

2022: última chance de eleição presidencial sem candidato evangélico

Juliano Spyer é doutor em Antropologia pela University College London (UCL), autor de Povo de Deus – quem são os evangélicos e por que eles importam e colunista da Folha de S.Paulo

Vinicius do Valle é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, autor do livro Entre a Religião e o Lulismo e diretor do Observatório Evangélico


A mobilização e o uso do discurso e da identidade religiosas ganharam destaque inédito nas eleições de 2022. Neste artigo, pretendemos discutir a importância do voto evangélico no contexto eleitoral brasileiro contemporâneo. Para tal, percorremos a trajetória desse segmento social na sociedade brasileira, analisando também o perfil ideológico desse grupo. Por fim, discutiremos a forma como a questão religiosa foi mobilizada durante o pleito eleitoral de 2022. Nosso argumento é de que, pela trajetória de crescimento dos evangélicos na sociedade brasileira e pelas características político-ideológicas consolidadas no segmento, a eleição de 2022 pode ter sido a última em que o candidato apoiado pelo grupo religioso pode ser derrotado.

Dados eleitorais

O cristianismo evangélico é um dos fenômenos sociais mais importantes do Brasil no século 21. Em termos quantitativos, os evangélicos cresceram de 6,6% da população brasileira, em 1980 (IBGE, 1982), para cerca de 30% em 2020, segundo o DataFolha (Balloussier 2020). Estatísticos como José Eustáquio Diniz (EcoDebate 2020) já calculam que, mantendo o ritmo de crescimento atual, em 2032 o número de evangélicos se igualará e em seguida superará o de católicos no país. Os evangélicos são um grupo heterogêneo e plural, tanto em termos de dinâmicas de culto, leitura teológica, visão política, entre outras. Em termos sociais, são predominantemente compostos por mulheres e pretos. 

A despeito de toda heterogeneidade existente no grupo dos evangélicos, podemos identificar a atuação política institucional do segmento como historicamente conflituosa com a esquerda, no geral, e com o PT, em particular. Ainda na constituinte, Pierucci (Pierucci, 1989) retrata os deputados evangélicos como compostos por um pequeno grupo de progressistas e uma fração predominante que aliaria pautas conservadoras da dimensão moral/dos costumes com pautas conservadoras também do plano econômico. Essa fração dominante é denominada por Pierucci de “nova direita”, trazendo talvez pela primeira vez o termo na classificação de um grupo político no pós-ditadura.

Após a constituinte, nas eleições presidenciais até os dias atuais, podemos identificar no segmento evangélico uma clara predominância no apoio de candidatos adversários ao PT. Pierucci e Mariano (1992) trazem, na análise da eleição de 1989, a posição desse segmento em prol do candidato Fernando Collor de Melo, em oposição a Lula. Já nas eleições de 1994 e de 1998, em que Lula, do PT, concorreu com Fernando Henrique Cardoso, os estudos de Pierucci e Prandi (1995) e Campos (2006) trazem, a partir de estatísticas com o eleitorado, o segmento evangélico manifestando apoio preponderante ao candidato do PSDB.

A eleição presidencial de 2002 contou com a presença de Antony Garotinho (PSB), um candidato evangélico, membro da Igreja Presbiteriana e também ex-governador do Rio de Janeiro. Nesse turno da eleição, segundo dados do ESEB, retratados por Bohn (2004), Garotinho conquistou a votação expressiva de mais de 50% dos do segmento evangélico. 

No período dos governos federais sob o comando do PT, a partir de 2002, parlamentares de distintas denominações evangélicas estiveram em partidos da base de parlamentar do governo. Em especial, destacamos o PRB que, como braço político da Igreja Universal do Reino de Deus (VALLE, 2018), esteve aliado ao lulismo até meados de 2016. 

Apesar dessa aproximação com parte dos parlamentares evangélicos, a relação desses com o PT passou por abalos ao longo do tempo e, especialmente, entre os anos de 2010 e 2014, com a polarização em torno da pauta dos costumes que inspiraram políticas como o PNDH3 (Programa Nacional de Direitos Humanos 3) e o PLC122/2006. Nesse período, os principais líderes evangélicos que eram próximos ao governo petista se afastaram e estabeleceram com o PT uma relação de antagonismo (VALLE 2019).

Em torno desses acontecimentos, e tendo as pautas morais como fio condutor dos discursos, a polarização entre evangélicos e PT foi se acentuando. No discurso evangélico, a polarização com o PT foi também se tornando uma polarização verbalizada contra o campo político da esquerda, que foi associado a uma posição contrária à família e aos valores cristãos. Como resultado dessa polarização, temos que no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, 93% da bancada evangélica votou pelo afastamento da ex-presidente. Já em termos eleitorais, em 2018, segundo dados da pesquisa do Instituto DataFolha na véspera do pleito, 68% do eleitorado evangélico declarou intenção de voto em Bolsonaro (Diniz Alves, 2018).

Evangélicos e Bolsonaro 

Vários analistas associaram a vitória de Jair Bolsonaro em 2018 ao apoio dos evangélicos. Segundo o antropólogo Ronaldo Almeida, “quem fez, de fato, a diferença a favor de Bolsonaro em números absolutos foram os evangélicos” (2019). O demógrafo José Eustáquio Diniz Alves (2020) afirmou que “não há dúvida de que o voto evangélico foi fundamental para a eleição de Jair Bolsonaro. Mesmo sendo menos de um terço do eleitorado, as lideranças evangélicas são muito atuantes na política e estão colhendo o resultado de anos de ativismo religioso na sociedade” (Ecodebate 2020). 

Analisando o segmento evangélico em intersecção com outras características sociais, o sociólogo Marcos Coimbra, presidente do Instituto Vox Populi, afirmou que a parcela feminina pobre e evangélica do eleitorado – e não os evangélicos como um todo – que decidiu a eleição a favor de Bolsonaro (Brasil 247, 2019). Ajudando a desvendar essa relação entre gênero, religião e posicionamento político, a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, a partir do monitoramento de grupos femininos no WhatsApp, afirmou que muitas mulheres evangélicas resistiram à ideia de votar no ex-capitão até muito próximo do pleito eleitoral (Rossi 2019). O que as fez mudar de posição foi a pressão pela comunidade da igreja e familiares. Mudarem seu voto quando o candidato petista Fernando Haddad, em entrevista à TV Aparecida, chamou o bispo Edir Macedo de “charlatão fundamentalista” e de ter “fome de dinheiro”. Teixeira diz que, a partir desse momento, o discurso predominante foi o de que votar contra Bolsonaro seria negar a própria identidade religiosa e defender um candidato que perseguia a Universal.

Mesmo considerando os dados empíricos e as análises desses especialistas, não existe uma explicação simples para o resultado da eleição de 2018. O país passava por um momento conturbado, com a sobreposição de crises econômica e política, com índices altos de desemprego e as instituições políticas abaladas com os efeitos da operação Lava-Jato. Nesse contexto de instabilidade, não só religiosos, mas vários setores da sociedade, compuseram o grupo de indignados que escolheram o candidato que se apresentou como o representante da política antissistema. Ainda assim, apesar da indignação estar presente em diversos segmentos sociais, no segmento evangélico a preferência por Bolsonaro não foi por acaso, tendo sido construída ao longo de vários anos antes da eleição. 

Bolsonaro, apesar de ter uma formação católica e de nunca negar seu catolicismo, foi “batizado em águas”, seguindo o rito evangélico, em Israel, pelo pastor Everaldo Pereira, ex-presidente do Partido Social Cristão e membro da Assembleia de Deus. Michelle Bolsonaro, sua atual esposa, é evangélica. O casamento de ambos, inclusive, foi realizado pelo pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. O ataque à faca que Bolsonaro sofreu foi narrado, em meio à campanha eleitoral, sob a forma de um testemunho evangélico, no qual a ação do Diabo foi contida pela Providência Divina. Demonstrando sua gratidão ao eleitor evangélico, além de seu discurso oficial para a sociedade transmitido pela TV, o então presidente eleito fez outro pronunciamento em transmissão ao vivo via redes sociais, por meio de uma oração no estilo pentecostal, de mãos dadas e olhos fechados. 

Eleito sob o lema de “Deus acima de todos”, a composição do governo Bolsonaro trouxe a presença de evangélicos no primeiro escalão da sua administração. Damares Alves, que esteve à frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, nesse sentido, foi um dos nomes mais significativos. Filha de um pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular, e com sua trajetória intimamente ligada à atuação religiosa, Damares Alves também se tornou pastora, exercendo essa função primeiramente na Igreja Quadrangular e, posteriormente, na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte. Já havia sido também assessora parlamentar e diretora da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – Anajure, uma entidade com o objetivo de aumentar a influência evangélica no poder judiciário brasileiro. Damares, segundo Jacqueline Teixeira e Olívia Barbosa (2002), mais do que uma figura excêntrica, trazia os evangélicos para a disputa dos marcos dos direitos humanos no país, colocando temáticas como a proibição do aborto e concepções como a de papéis de gênero e de família nos marcos tradicionais. 

O evangélico Milton Ribeiro, da Igreja Presbiteriana, também foi um dos ministros do governo Bolsonaro, no MEC. Sua gestão foi marcada pela concepção, emitida algumas vezes pelo próprio Ribeiro, de que a educação brasileira seria doutrinária – ou seja, converteria os jovens ao “esquerdismo”. Além disso, Ribeiro se envolveu em um escândalo de corrupção, sendo acusado de condicionar o destino de verbas do MEC à intermediação de pastores na transação com os municípios que seriam destinos das verbas. Ainda que as investigações não tenham sido até o momento concluídas, elas revelam que o acesso de pastores ao poder foi expandido durante a gestão Bolsonaro. Nesse sentido, nos ministérios  e nos órgãos que tratam de temas de interesse das igrejas, como a questão dos direitos humanos, do direito das mulheres e da educação, houve uma forte presença de figuras ligadas ao meio evangélico. Fora a administração federal, Bolsonaro nomeou um ministro “terrivelmente evangélico” para o STF: André Mendonça. 

Por fim, para além da ocupação de postos no governo e no Estado por figuras do meio evangélico, houve também medidas que beneficiaram setores evangélicos: Bolsonaro perdoou a dívida das igrejas e aumentou a isenção de impostos para o salário de pastores.  

O conjunto dessas nomeações, medidas e discursos ilustra a relação de proximidade e aliança do governo Bolsonaro com os evangélicos conservadores brasileiros. Nesse sentido, ainda que consideremos a heterogeneidade deste segmento religioso, temos que Bolsonaro soube dialogar com a maior parte do desse grupo.

Eleições de 2022

Durante as eleições de 2022 a aliança entre Bolsonaro e evangélicos resultou num esforço conjunto das maiores denominações evangélicas para a reeleição do então presidente. Esse esforço resultou em uma campanha ativa e longa realizada pelos principais pastores dessas igrejas. A mobilização de lideranças religiosas iniciou-se, de forma sistemática, em de março de 2022, a partir de uma reunião com pastores e políticos no Palácio do Alvorada[1].

A campanha feita pelos líderes religiosos ganhou as igrejas, mas também as redes sociais[2] dos pastores e instituições religiosas. A intensidade desse engajamento foi tão forte que o assunto dominou boa parte da cobertura da imprensa sobre as eleições. Os discursos emitidos por esses religiosos podem ser divididos em dois eixos: o das pautas morais e o da guerra religiosa.

O discurso da pauta moral envolve a temática da família, além da questão do aborto e da pauta LGBTQIA+. Basicamente, o sentido desse discurso envolve a ideia de que Bolsonaro seria um defensor da família tradicional, contra a legalização das drogas, contra o aborto e defensor de um modelo de sexualidade heteronormativa. Em oposição, Lula seria contrário à família, a favor do aborto, da legalização das drogas e de políticas voltadas à população LGBTQIA+. Ainda que tenha esses aspectos gerais, esse tipo de discurso pode abordar nuances, acusações sem fundamento e variações de ênfase em cada um desses elementos em diferentes interlocutores e espaços.

Já o discurso da guerra religiosa se desvia da discussão de pautas específicas, ganhando um contorno propriamente religioso. Nele, Bolsonaro, Michele e seu grupo político são vistos e retratados como representantes do bem e de Deus, enquanto Lula, o PT e a esquerda, de forma geral, são retratados como representantes do mal e do demônio. Esse tipo de discurso poderia trazer eventualmente conexões com pautas específicas, mas ele foi baseado na ideia de que as eleições não seriam uma disputa política, e sim a manifestação de uma guerra espiritual. Nesse sentido, o fiel é pressionado a votar no campo político bolsonarista sob o argumento de que ele deve apoiar ao seu Deus.

Do lado da campanha lulista, a comunicação envolveu a tentativa de se defender de acusações de que um futuro governo Lula iria perseguir igrejas. Houve também uma carta aos evangélicos, trazendo a ideia de que Lula seria religioso, respeitaria as religiões e reconheceria o importante papel que evangélicos cumprem na sociedade.

Considerações finais

Segundo o instituto Datafolha, publicado dia 29 de outubro de 22, na véspera do pleito, Bolsonaro obteve 65% dos votos evangélicos, enquanto Lula teria 29% do segmento[3]. Ainda que inferior ao obtido por Bolsonaro nas eleições de 2018, em que o ex-capitão obteve, segundo o Datafolha, 69% das indicações de voto, foi um índice elevado e que indica uma consolidação da preferência desse segmento em Bolsonaro.

Caso essa preferência, que encontra eco no histórico antipetista dos evangélicos, se confirme, temos um caminho pavimentado para a

constituição de uma identidade política bolsonarista entre parte significativa dos evangélicos. Considerando o ritmo de crescimento desse segmento e a sua inclinação política conservadora, é possível e provável que tenhamos vivenciado a última campanha em que um candidato amplamente rejeitado por esse segmento pôde vencer a eleição.


Referências bibliográficas

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VALLE, V. S. M.. Entre a religião e o Lulismo: Um estudo com pentecostais em São Paulo. 1. ed. São Paulo: Recriar, 2019. p. 264.]


[1]. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/03/08/bolsonaro-reune-evangelicos-ministros-e-deputados-em-ato-politico-no-palacio-da-alvorada.ghtml

[2]. https://www.estadao.com.br/politica/pastores-com-50-milhoes-de-seguidores-dao-palanque-virtual-a-bolsonaro-nas-redes-sociais/

[3]. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/datafolha-lula-tem-52-dos-votos-validos-contra-48-de-bolsonaro-na-vespera-da-eleicao.shtml

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