A política externa e o novo governo
Rubens Barbosa foi embaixador em Washington e Londres, é presidente do IRICE e membro da Academia Paulista de Letras
Ao longo dos 200 de Independência, o Brasil, em grande parte pela ação diplomática, definiu seus interesses em resposta aos desafios internos e externos do momento. Em linhas gerais, uma das características da ação externa do Brasil foi a afirmação de uma espécie de destino manifesto em que o país se vê com a perspectiva de ser uma grande potência e, por via dessa ambiciosa autoimagem, atua acima de suas reais capacidades políticas, diplomáticas, econômicas e comerciais. Sem excedente de poder para alcançar objetivos difíceis de conseguir, a ação externa projeta um Brasil que busca um lugar de preeminência no cenário internacional.
As principais tendências geopolíticas e geoeconômicas do Brasil foram e são as relações especiais com a Europa, em especial com a Grã-Bretanha no período Imperial, com os EUA, a partir da República, e com seu entorno geográfico (América do Sul, Latina e África). Mais recentemente, aparecem na lista a inserção, com vigor, no multilateralismo político-diplomático e econômico-comercial, a parceria estratégica com a China e a crescente aproximação com a Asia, em função de interesses comerciais, sem perder sua vinculação com o Ocidente, pelos princípios e valores que defende.
Ao longo de todo esse período, o Itamaraty, como a instituição responsável pela formulação e pela execução da inserção externa do Brasil, soube modernizar-se para acompanhar as transformações internas e externas e renovar-se para atuar de maneira eficiente na defesa dos interesses nacionais. Nos últimos 20 anos, com exceção do governo Michel Temer (2016-2018), a política externa foi contaminada pela partidarização e ideologização em sua ação. A instituição foi afetada com divisão interna e centralização das decisões que propiciaram a perda de iniciativa de seus quadros, a modificação brusca de seu organograma sem nenhuma preparação e estudo, e mesmo pela perseguição daqueles que não seguiam a orientação do governo da vez. No governo, o Itamaraty começou a ser esvaziado, perdendo sua autoridade e capacidade original de formular, coordenar e executar suas ações externas, tendo sido reduzidas suas competências na área comercial e nos temas globais em organismo internacionais, como meio ambiente, direitos humanos e costumes. Ao mesmo tempo, como em poucos momentos ao longo de 200 anos, nos últimos anos, o Brasil perdeu espaço no cenário regional e global e chegou a ser admitida a condição de pária internacional por seu próprio ministro do exterior. Em função de políticas internas, dessintonizadas das prioridades globais, o Brasil está se isolando e a defesa de interesses concretos torna-se difícil de ser conseguida em função do desgaste e da perda de credibilidade externa.
O mundo mudou e o Brasil mudou
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o fato mais importante desde o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, tornou o cenário internacional mais complexo e inseguro, com profundas consequências em todos os países. Promovida pelos EUA, a perspectiva de divisão do mundo, entre o campo democrático e autoritário coloca novos desafios geopolíticos para a diplomacia. Está se configurando uma nova Guerra Fria, entre o Ocidente e a Eurásia, não ideológica e militar, como ocorreu com a então União Soviética, mas de competição econômica, comercial e tecnológica.
A partir de 1o de janeiro de 2023, o futuro governo, sob pena de contribuir para uma marginalização ainda maior do país, não terá alternativa senão reavaliar as prioridades da política externa, levando em conta o atual interesse nacional e as transformações do cenário internacional no século XXI. O presidente Lula terá de tomar decisões imediatas mudando o curso da política externa, com ajustes e ênfases, com visão de futuro e como parte das ações para que a voz do Brasil seja novamente ouvida como uma das dez maiores economias globais. Políticas equivocadas nos últimos anos colocaram o Brasil em uma situação de isolamento nas negociações comerciais, de atraso na inovação e tecnologia, de perda de poder, influência na América do Sul e de espaço no comércio internacional.
A fim de evitar os erros do passado recente, a política externa deveria ser tratada como uma política de Estado, a ser conduzida longe de influência partidária ou ideológica, com moderação e independência na defesa dos interesses nacionais, em conformidade com o artigo 4 da Constituição. Sem apriorismos ideológicos e sem alinhamentos automáticos, o Brasil deveria definir as prioridades, buscando aproveitar a seu favor as profundas transformações do cenário internacional. Hoje, considerações geopolíticas têm uma influência crescente sobre alianças políticas e econômicas, como está acontecendo, por exemplo, entre EUA e Europa, com a Índia, entre lealdades com a Rússia e com os EUA e conflitos e aproximações com a China, além do aumento das restrições protecionistas, em função da segurança nacional, em diferentes aspectos da globalização. Para trabalhar com mais força e vigor nesse sentido, o Itamaraty deveria recuperar o papel central na formulação e execução da política externa e atuar com autonomia na coordenação das políticas nacionais em todas as áreas de negociação internacional e regional, levando em conta as reais necessidades da economia, da Segurança, da Defesa, do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos. O prestígio e a influência da chancelaria serão decisivos para responder de forma incisiva à campanha de descrédito contra o Brasil no exterior em função da política ambiental na Amazônia e da ameaça à democracia e aos direitos humanos dos últimos anos e para os esforços nos fóruns internacionais, visando à prevalência dos objetivos de longo prazo do desenvolvimento nacional.
As sinalizações do presidente eleito Lula indicam uma mudança drástica de rumo da política externa. Pela primeira vez em sua história, o Brasil encontra-se hoje como protagonista no tema global de maior importância para todos os países. Respondendo a esse desafio e à necessidade da preservação da Amazônia, segundo pronunciamento presidencial, contrariamente ao que aconteceu durante o governo Bolsonaro, meio ambiente e mudança do clima deverão estar no centro da política externa do futuro governo e definidos como a sua principal prioridade. Como um ativo externo do Brasil, uma estratégia deverá ser definida para o efetivo cumprimento das metas assumidas no Acordo de Paris e em compromissos similares.
Resposta aos desafios globais
A gestão da Amazônia, bioma compartilhado com sete vizinhos, receberá especial atenção, proporcional à crucial responsabilidade que toca ao Brasil, inclusive com a reativação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e o recém firmado acordo Brasil, Indonésia e Congo. O potencial derivado do uso das energias renováveis e o manejo dos recursos hídricos e oceânicos deveria ser promovido pelo Itamaraty de modo assertivo, incluindo o uso de tecnologias nacionais, por meio de ações coordenadas com países e organizações interessadas. Com isso, o Brasil dará uma resposta aos desafios globais no tocante à preservação da Amazônia, especialmente às medidas restritivas no exterior que começam a afetar interesses comerciais concretos. Assim, o tema ambiental e da mudança do clima voltam a merecer um lugar de destaque como um dos principais ativos externos do Brasil e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) servirão como referência na correção dos rumos da política ambiental nos fóruns internacionais.
Uma das consequências das novas circunstâncias do cenário global é a redução da globalização, como entendida nas últimas décadas, e o fortalecimento do regionalismo. A integração regional, pelas indicações de Lula, deverá merecer uma atenção especial e voltar a ter a prioridade que teve no passado, já que é do interesse do Brasil ampliar a liberalização comercial, aprofundar os acordos vigentes e promover a integração física da região. A futura política externa deverá, assim, assumir uma atitude proativa nesse particular para, com a liderança do Brasil, restabelecer uma agenda que aproxime o país de seu entorno geográfico. Em relação ao Mercosul, deveriam ser buscadas formas para acelerar a recuperação de seus objetivos iniciais e avançar nas negociações com terceiros países e outros grupos regionais.
O relacionamento com a Venezuela deveria merecer cuidado especial pelo impacto sobre nossos interesses (tráfico de armas e drogas, refugiados, dívida e comércio exterior). Como providência inicial, deveria ser retomada a assistência para a comunidade brasileira naquele país com a reabertura dos consulados fechados injustificadamente, além de formas para encerrar o isolamento de Caracas com o restabelecimento dos princípios democráticos, visto que o afastamento político e as sanções, inclusive com a suspensão do Mercosul, mostraram-se ineficazes. O ingresso da Bolívia, em exame pelo Congresso, não deveria ser acelerado para as negociações econômicas não perderem a prioridade. Para atender à necessidade de defesa e segurança, deveriam ser ampliadas as medidas de coordenação com nossos vizinhos para proteção das fronteiras, a fim de combater o crime transnacional, e reexaminada a forma de participação do Brasil nos órgãos regionais (BID, Unasul, Conselho de Defesa, CELAC, ALADI, TCA, Fonplata) à luz dos interesses nacionais.
Ações proativas
Em termos das relações bilaterais, além de uma nova visão em relação aos vizinhos sul-americanos, deveriam ser definidos de forma clara os interesses estratégicos do Brasil com outras áreas, como a Ásia, em especial com a China, com os EUA e outras nações desenvolvidas. Ao mesmo tempo, deveria ser ampliada e diversificada a relação com os países em desenvolvimento, em especial com a África. Seria igualmente relevante para a política externa recuperar o soft power do Brasil por meio, entre outras, de ações proativas na área de cooperação e assistência técnica levadas a efeito pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
O multilateralismo (ONU e OMC) e a globalização estão sob ataque com o risco concreto de uma tendência protecionista, colocando em perigo a ordem liberal e ameaçando trazer de volta a recessão. Nas organizações internacionais, o Brasil teria de ampliar e dinamizar sua ação diplomática nos temas globais, tais como sustentabilidade, energia, tráfico de armas e de drogas. O combate à corrupção, ao terrorismo, à guerra cibernética, o controle da internet e as questões de paz e segurança teriam de receber especial atenção, assim como a ampliação do Conselho de Segurança, as operações de paz e a questão da não proliferação, que seriam as principais prioridades.
O Brasil deve voltar a respaldar, com vigor, valores defendidos internamente, como a democracia e os direitos humanos, em especial na América do Sul e no Haiti. A política externa deveria continuar a apoiar firmemente o ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e deveriam ser buscadas formas de ampliar nossa participação política e econômica nos BRICS, no G-20 (que o Brasil presidirá em 2024), na CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e no IBAS (acordo Índia, Brasil e África do Sul). Condutas de governança de alcance global, tais como as ligadas ao combate à corrupção, à transparência no trato da coisa pública e à adoção de medidas de compliance no setor público deveriam ser adotadas e estimuladas pelo Brasil nas relações com países e com organismos internacionais. Deveria ser dada forte prioridade às políticas afirmativas em relação aos setores mais vulneráveis de nossa sociedade, em especial a mulheres, idosos, crianças, afrodescendentes, LGBTI, quilombolas, ciganos, povos indígenas e pessoas com deficiência.
No comércio exterior, não se poderá adiar uma nova estratégia de negociações comerciais bilaterais (acordos na região e fora dela), regionais (Mercosul) e globais (Organização Mundial de Comércio) para pôr fim ao isolamento do Brasil, com ênfase na abertura de novos mercados e na integração do Brasil às cadeias produtivas globais e regionais, visando ao crescimento econômico, ao aumento dos fluxos do comércio exterior e do investimento externo, além da geração de empregos. Para tanto, a redução das vulnerabilidades econômicas e a diversificação dos mercados para o agronegócio no mundo, ameaçado por uma crise de alimentos, deveriam ser metas imediatas.
Deveria merecer prioridade a finalização da negociação do Mercosul com a União Europeia e a Área de Livre Comércio da Europa (EFTA) e estimulados os entendimentos com Canadá, Coreia, Indonésia, Japão e Líbano. Declarações sobre a intenção do novo governo de reabrir as negociações do acordo do Mercosul com a União Europeia são preocupantes, pois, contrariam nossos interesses e deverão encontrar a oposição de Bruxelas, que cogita fatiar o acordo para que os entendimentos comerciais possam entrar em vigor imediatamente. Duas medidas inovadoras poderiam ser examinadas, a partir da iniciativa tomada pelo Uruguai em relação ao ex-TPP: a possibilidade de negociar a adesão ao acordo comercial com a Ásia, o ex-TPP (Parceria Transpacífico, integrado pelo Japão, Aliança do Pacifico e países asiáticos), como fez a China, e a abertura de negociações do Mercosul com o Acordo de Livre Comércio com a África. O Itamaraty deveria voltar a priorizar as atividades de promoção comercial e captação de investimentos, sobretudo de tecnologia, por meio da ampliação da ação da APEX, que deveria permanecer no âmbito do MRE.
Finalmente, diante da possível divisão do mundo entre democracias e autocracias, promovida pelos EUA, no contexto da geopolítica global, a política externa deveria manter uma posição de independência, sem alinhamento automático a qualquer dos lados. Ninguém questiona ser o Brasil um país ocidental em termos de valores e princípios, mas hoje depende econômica e comercialmente da Ásia, em especial da China.
Em poucos momentos no passado, a política externa teve um papel tão relevante para definir o lugar do Brasil no mundo e para restabelecer a credibilidade do país e retificar a percepção externa negativa sobre seu futuro. O Itamaraty terá papel relevante para restaurar a voz do Brasil no cenário internacional e reinserir o país nos fluxos dinâmicos da economia, com vistas à prevalência dos objetivos de longo prazo do desenvolvimento nacional, inclusive para responder de forma incisiva à campanha de descrédito contra o Brasil no exterior.
O ministro do exterior, a partir de 1º de janeiro de 2023, terá a responsabilidade histórica de restabelecer o papel da Casa de Rio Branco como o principal formulador e executor da política externa e, seguindo o exemplo do patrono da diplomacia brasileira, de manter, acima de interesses ideológicos e partidários, as linhas permanentes da atuação externa como política de Estado e não de governo de turno. Com visão de futuro, o Itamaraty voltará a ser parte das ações para o Brasil reencontrar seu lugar no mundo como uma das dez maiores economias globais. n
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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