07 março 2023

Da guerra ao narcotráfico ao plano estratégico de fronteiras

O atual modelo brasileiro de cooperação Defesa-Segurança Pública teve como berço a estrutura militar, notadamente a partir das operações conjuntas realizadas entre as forças singulares, pautadas pelos vetores da interoperabilidade. Para pesquisador, o modelo de cooperação interagências desenvolvido no Brasil possui particularidades que se alojam no centro das transformações vivenciadas pela gestão pública governamental a […]

O atual modelo brasileiro de cooperação Defesa-Segurança Pública teve como berço a estrutura militar, notadamente a partir das operações conjuntas realizadas entre as forças singulares, pautadas pelos vetores da interoperabilidade. Para pesquisador, o modelo de cooperação interagências desenvolvido no Brasil possui particularidades que se alojam no centro das transformações vivenciadas pela gestão pública governamental a partir do processo de redemocratização

A presidente Dilma Rousseff lança o Plano Estratégico de Fronteiras em solenidade no Palácio do Planalto (Foto: Agência Brasil)

Por André Luiz de Azevedo*

No Brasil a tradução da cooperação interagência estadunidense teve início com a securitização do narcotráfico, tendo sofrido catalisação pela securitização do terrorismo nos EUA. O processo teria levado tanto à definição de um modelo próprio de cooperação Defesa-Segurança Pública através do PEF, quanto à policiação das Forças Armadas.

A presente pesquisa buscou compreender o atual modelo brasileiro de cooperação interagências, adotado pelo binômio Defesa-Segurança Pública. Para tanto passou-se a investigar a gênese e as transformações sofridas ao longo dos 20 anos compreendidos entre 1990 e 2010.

A questão da dinâmica interagências no Brasil não se distingue no aspecto conceitual daquilo que é preconizado noutros Estados nacionais, especialmente aqueles localizados na América Latina e Caribe.

Entretanto, o modelo desenvolvido no Brasil possui particularidades que se alojam no centro das transformações vivenciadas pela gestão pública governamental, notadamente a partir do processo político brasileiro da redemocratização.

Merece destaque a definição do Plano Estratégico de Fronteiras (PEF) e a inserção formal das Forças Armadas na moldura da Segurança Pública, tanto como força subsidiária, para a garantia da lei e da ordem (GLO, art. 15, §2º LC nº. 97/999), quanto nas atividades ordinárias de patrulhamento, na região da fronteira. Tais elementos representariam a materialização no Brasil de um processo de tradução da ideia norte-americana de cooperação interagências.

A securitização da guerra às drogas

A despeito de ter sido consolidada na gestão do então presidente dos EUA Bill Clinton, foi ainda na gestão do presidente Ronald Reagan que se deu o ponto de partida do processo que ficou conhecido como a securitização da guerra às drogas nos EUA.

Um dos marcos normativos que demonstra a atmosfera naquele período, no qual os EUA insistiam na urgência em militarizar o combate ao narcotráfico na América Latina e Caribe foi a edição, em abril de 1986 de um documento chamado National Security Decision Directive (NSDD), de número 221, que integrava a estratégia conhecida como Narcotics and National Security.

A peça afirmava que alguns grupos insurgentes financiam suas atividades pela taxação de ações vinculadas ao tráfico de drogas, provendo proteção a traficantes locais ou cultivando suas próprias colheitas de drogas (EUA, NSDD-221, 1986, p. 2). O documento teria sido a sinalização formal daquilo que anos mais tarde seria classificado pelo governo dos EUA como ameaça existencial.

Já na década de 1990 são identificadas evidências da instalação no Brasil de um processo de tradução do projeto estadunidense de combate às novas ameaças, o qual teve início no ambiente castrense, mas logo passou a envolver agências civis. O processo é explicado pela forte mobilização discursiva, identificadas nas estratégias Bush e Clinton e muito bem definida pela chamada teoria da securitização[1].

Essa iniciativa por parte da potência hegemônica teve ensejo principalmente pelo deslocamento do eixo geopolítico, identificado já na 1ª Estratégia Nacional de Segurança dos EUA, no final da Guerra Fria, que passou a contemplar entre suas prioridades estratégicas de segurança nacional o combate ao tráfico internacional de drogas (EUA, NSS, 1991, p. 22).

A policiação das Forças Armadas

O atual modelo brasileiro de cooperação Defesa-Segurança Pública teve como berço a estrutura militar, notadamente a partir das operações conjuntas realizadas entre as forças singulares, pautadas pelos vetores da interoperabilidade.

Ao analisar os marcos normativos implementados pelo Estado brasileiro, que se relacionam com o processo de tradução da política de cooperação interagências norte-americana, pode-se identificar diversos marcadores legais que deram origem a um microssistema composto pela Constituição Federal de 1988, a Lei Complementar nº. 97, de 9 de junho de 1999, a Lei Complementar nº. 117, de 2 de setembro de 2004, o Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008 e a Lei Complementar nº. 136, de 25 de agosto de 2010.

O conjunto normativo reveste-se em vetor do processo de implantação do Estado Democrático de Direito, na medida em que redimensiona o papel das Forças Armadas, colocando-as sob a tutela civil, com a criação do Ministério da Defesa.

As transformações associaram plugs internos já existentes aos impactos narrativos norte-americanos, abrindo caminho ao transbordamento das operações conjuntas, tipicamente militares, para envolver as estruturas da Segurança Pública.

As operações conjuntas em território nacional, envolvendo as Forças Armadas e as Forças da Segurança Pública, a despeito de já ocorrerem de forma circunstancial, ganharam maior legitimação no enfrentamento ao narcotráfico com a Estratégia Nacional de Defesa (Decreto nº 6.703/2008), que tinha entre seus eixos estratégicos o combate às chamadas novas ameaças à soberania do Estado, como o tráfico de drogas transfronteiriços.

O processo de policiação das Forças Armadas se consolida com a sua designação para o desempenho de atribuições tipicamente policiais, na região da fronteira (art. 16-A da LC nº 97/1999, com redação dada pela LC º. 136/2010).

O conjunto é arrematado pelo Decreto nº. 7.496, de 8 de junho de 2011, que inaugura a 2ª década do Século XXI, instituindo o PEF, o qual materializou o processo de tradução do modelo de cooperação interagências idealizado pelos EUA ainda na década de 1980.

Influência do 11 de Setembro

Impende ressaltar que a demonstração da influência do episódio na modelagem da cooperação interagência desenvolvida no Brasil carece de evidências que demonstrem a relação entre o modelo de cooperação brasileiro e a securitização do terrorismo pelos EUA.

Houve tentativas de expansão do pensamento hegemônico dos EUA sobre a América Latina quando o assunto era terrorismo, no contexto da cooperação regional em segurança. Ainda na gestão Clinton (1993 – 2001) buscava-se sequestrar o debate, no sentido de tornar os vizinhos brasileiros mais sensíveis e responsivos às novas ameaças, incluindo o assunto terrorismo, sem êxito (SOARES, 2008).

O marco estratégico estadunidense para a guerra ao terrorismo, qual seja a National Defense Strategy, de 2005, não encontra no Brasil os reflexos desejados, havendo tímida menção ao terrorismo na END, permitindo afirmar que o processo de tradução da cooperação interagências no Brasil era anterior e independente do evento do 11 de Setembro.

A criação normativa que passou a definir o conceito de terrorismo no Brasil foi a Lei nº. 13.260, de 16 de março de 2016, distando 15 anos do episódio que marcou o processo de securitização do terrorismo nos EUA.


*André Luiz de Azevedo é policial rodoviário federal, bacharel em direito pela UGF com especialização em direito constitucional, logística e mobilização nacional, seguridad vial y tráfico, segurança internacional e defesa.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

https://doi.org/10.1590/1678987319276907

https://doi.org/10.15448/1980-864X.2008.1.4530

https://nssarchive.us/wp-content/uploads/2020/04/1994.pdf

https://irp.fas.org/offdocs/nsdd/nsdd-221.pdf

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp97.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6703.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7496.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13260.htm

https://www.scielo.br/j/cint/a/rwTYjJdcGrnzGjx6r3n46ww/abstract/?lang=pt

https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/4530

https://nssarchive.us/wp-content/uploads/2020/04/2005_NDS.pdf

https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/4530/3456

https://nssarchive.us/wp-content/uploads/2020/04/1991.pdf


[1] Securitização pode ser entendida como a possibilidade de um determinado tema passar a ser visto como ameaça à existência do Estado que desencadeará uma ação estatal emergencial, pontual e localizada fora da política comum e quotidiana de governo.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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