A falta que faz uma tradição liberal-democrática
Fernando L. Schüler é filósofo, articulista e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de Cultura e Ciências Políticas. Foi secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e é professor do Insper
O ano era 1984, sopravam os ventos da redemocratização, muita gente da minha geração não compreendia bem o significado de tudo aquilo, e havia um intenso debate sobre a natureza da transição. À esquerda, ensaiava-se a crítica da “transição por cima”, cujo desfecho viria logo em seguida, com o colégio eleitoral e a eleição de Tancredo. O resto do mundo político apostava na visão pragmática, de que era aquela a via possível e menos traumática de consolidar a abertura e preparar o processo Constituinte. No mundo em que eu vivia, na Porto Alegre dos debates estudantis, duas lembranças me vêm à cabeça. Uma delas foi o livro de Francisco Weffort, “Por que Democracia?”, que era, em última instância, um desafio à esquerda, que ainda gostava muito de falar em revolução, para que entendesse que “diante de nossa longa tradição autoritária, a democracia era, ela mesma, revolucionária, no Brasil”. O argumento de Weffort foi premonitório. O Brasil de fato construiu, à duras penas, naqueles anos 80, um certo consenso em torno da questão democrática. Os militares retomaram suas funções institucionais, nosso modelo eleitoral e de votação eletrônica passou a ser visto como modelo, internacionalmente, e mesmo em meio a momentos de tensão (o impeachment de Collor, os julgamentos do mensalão), o tema democrático permaneceu intocado.
Em algum momento, isto tudo mudou. Um primeiro sinal talvez tenha vindo das grandes manifestações de rua de 2013, que pareciam seguir a tendência dos flash mob democráticos, tão bem diagnosticados por Manuel Castells, como um novo ator nas democracias, na era digital. Algo que por vezes chamei de o “quinto poder”, feito da multidão que se reúne sem uma liderança claramente identificada, de modo efêmero e sem uma agenda objetiva, mas com um enorme poder de questionar o sistema de poder como um todo. No Chile, seis anos depois, manifestações deste tipo tiveram um impacto muito mais profundo. Além da violência e das dezenas de mortos, a provocação de um processo constituinte, que mesmo derrotado, ao final, mudou a geografia do poder, no País. No Brasil, seguiríamos em frente. As eleições de 2014 apresentaram, pela primeira vez, um novo tipo de polarização, dividindo o mapa brasileiro em uma clivagem esquerda/direita, centro/sul x norte/nordeste, uma clivagem social e uma lógica de radicalização nunca vista desde a abertura. E com um detalhe: o questionamento, ainda que tímido, feito pelo PSDB, dos resultados eleitorais. Foi este, quem sabe, nosso primeiro cartão amarelo ao “sistema”. A partir daí, o País assiste a um rápido processo de radicalização. Organizam-se movimentos de rua, como o “Vem pra Rua”, e menos de três meses da posse de Dilma, em 2015, realiza-se na Avenida Paulista o maior comício feito no País, desde as diretas, pedindo, entre outras coisas, a sua saída do poder. A rua havia sido um espaço da esquerda, mas os ventos agora mudavam de direção.
■ Processo de impeachment “envenenou” a política brasileira
O processo de impeachment seria o ponto de mutação. Produto da irresponsabilidade fiscal, no contexto da enorme crise econômica que levaria a uma queda do PIB de mais de 7%, em 2015/16, o processo deixaria suas marcas, na vida brasileira. Diferentemente de Collor, o PT é o mais bem estruturado partido brasileiro, com sólidas ramificações na academia, mídia e sociedade civil. Era mais do que previsível uma reação, que veio na forma da “narrativa do golpe”. Com ela, o PT seguiu a trilha perigosa, dos anos recentes da vida brasileira, de colocar em xeque as instituições. Neste caso, o Congresso, a Suprema Corte. Acertou a revista The Economist, que à época prognosticou que o processo de impeachment iria “envenenar” a política brasileira por muito tempo.
Em 2018, Bolsonaro vence, e a partir daí começa um estranho jogo. De um lado, a recusa permanente da legitimidade de quem venceu. O “coiso”, o “fascista”, o “inominável”, o “gado”; de outro, a tensão, o duplo sentido levado ao estado da arte. O “nosso exército”, as eleições na condicional, a frase infeliz, no 7 de setembro. E finalmente os temas tóxicos, a “fraude nas urnas eletrônicas”, o “Artigo 142”. Tudo isso como avant premier daquele domingo vexaminoso, no último dia 08 de janeiro, que por muito tempo irá manchar não apenas certa “direita”, mas nossa democracia, no seu dia talvez mais constrangedor.
O fato é que ao longo de mais de duas décadas, que vão do final dos anos 80 até quem sabe os movimentos de rua de 2013, o tema da democracia virtualmente desapareceu do nosso cotidiano político. Disse isso em um debate, tempos atrás, e uma pergunta surgiu na plateia: em que momento a “questão democrática” havia retornado ao centro do debate brasileiro? Algo na linha: quando nos perdemos? Em que momento, temas que já considerávamos superados, a conversa sobre “golpe”, o “cala-boca” a deputados e jornalistas, e o medo de falar, haviam voltado à tona? Respondi que era difícil precisar. É possível que tudo venha da polarização tóxica da última década e meia. O “nós contra eles”, o “nunca-antes-neste-País”. E logo a reação conservadora. A ideia da “salvação nacional”, da “nossa bandeira jamais será vermelha”. O pano de fundo está na migração do nervo da política para o universo tribal da internet e das redes sociais. Universo de baixa empatia, pouco afeito ao diálogo e à reflexão. Terreno fértil para novas formas de populismo eletrônico e radicalização vazia, fenômenos dos quais o Brasil está longe de ser um caso isolado.
A resposta a isso tudo poderia ter sido, desde o início, uma reação altiva das instituições, mas o que vimos foi o contrário. Ao invés de fincar pé nos preceitos da Constituição, criamos uma difusa lógica de exceção. Criamos o crime inexistente de fake news, atribuímos ao Estado a prerrogativa, inexistente em nosso ordenamento institucional, de legislar sobre a “verdade”, retomamos a censura prévia em larga escala, cancelamos passaportes e bloqueamos contas de jornalistas, fizemos terra arrasada da inviolabilidade parlamentar, do direito ao contraditório, do simples acesso da defesa aos autos de processos. Criamos inclusive um procedimento novo: a prerrogativa do Estado para “apagar” do mundo digital quem se interpretar como “risco à democracia”. Tudo sob o signo do autoengano, do argumento ad hoc da “democracia militante”, que inclui achar que um tuíte do PCO, uma indagação, do professor Marcos Cintra, sobre as urnas eletrônicas ou um diálogo sem pé nem cabeça, em um grupo privado de WhatsApp, representam graves riscos à democracia.
■ Vivemos ainda sob o signo das “ideias fora do lugar”
De todos, talvez a destruição da inviolabilidade parlamentar seja o mais sombrio. A Constituição, em seu Art. 53º, diz que os parlamentares são invioláveis por quaisquer “opiniões, palavras e votos”. Não obstante, ao menos sete parlamentares foram devidamente “apagados”, do mundo digital. Ainda agora, foi aceito um processo contra o deputado Eduardo Bolsonaro, entre outras coisas, pelo delito de proferir “inverdades” em um bate-boca digital com uma colega parlamentar. A tudo isto, o País sonâmbulo faz de conta que não enxerga. Uma parte vibra, outra dá de ombros, ou sente medo, e uma outra fala e escreve sobre o que vê, mas suas palavras se perdem no redemoinho dos afetos políticos. Parecemos viver ainda sob o signo das “ideias fora do lugar”. Fixamos princípios liberais, generosos, num claro contraste com a realidade atrasada, a permissividade da interpretação subjetiva da lei, ao gosto de quem detém o poder. Tudo ao gosto da multidão em transe, em um País onde o vezo autoritário não vem só do Estado, mas finca raízes na sociedade. No jornalismo, na academia, na algazarra digital, em tudo que é tocado pela polarização obsessiva.
É este, então, meu primeiro diagnóstico: soubemos construir uma democracia, ao longo de todos estes anos, mas não uma democracia liberal. E muito menos uma cultura liberal, enraizada na sociedade civil. Algo que me fez lembrar do traço que Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, identifica em nossa formação cultural, e que nos leva continuamente a pessoalizar nossa relação com o espaço público. E, a partir daí, nossa dificuldade com a “abstração da regra”, base do liberalismo democrático. “Todo afeto entre homens funda-se em preferências”, escreve Buarque. “Amar alguém é amá-lo mais que os outros. Uma unilateralidade que entra em franca oposição com o ponto de vista jurídico e neutro em que se baseia o liberalismo”.
O personalismo também diz respeito a nossos juízos e opiniões. A depender de nossos vínculos afetivos, com este ou aquele lado político, ajustamos sem muita cerimônia nossos julgamentos sobre o que é verídico ou inverídico, legal ou ilegal, democrático ou nem tanto. Liberdade de expressão? Ok, mas para quem mesmo? Censura prévia? Não pode, mas e em circunstâncias excepcionais? Meio século depois de Sérgio Buarque, foi a vez do professor Edson Nunes diagnosticar o problema em seu já clássico “A Gramática Política no Brasil”, fruto de sua tese de doutoramento em Berkeley, nos anos 80. “A igualdade perante a lei é o fundamento natural do universalismo de procedimentos e da democracia capitalista contemporânea”, diz Nunes, e conclui: “certamente não se pode dizer que o Brasil tenha conseguido institucionalizar um espaço público verdadeiro, no qual todos sejamos iguais perante as leis”. O desafio brasileiro, no plano das instituições, pode ser pensado não apenas como a consolidação do universalismo de procedimentos, ou da “abstração da regra”, mas sua afirmação no universo das normas sociais. Isto é, da cultura política no espaço da sociedade civil, da academia, da mídia, da cultura e mesmo da justiça. Os anos recentes de nosso embate político nos mostraram que ainda estamos longe disso.
■ Estado grande, burocrático e avesso à ideia de mérito
Edson Nunes situa a gramática do “universalismo de procedimentos” como um traço do “capitalismo racional”, típico das economias avançadas. E também aí estabelecemos uma relação ambígua, que vem desde o processo de redemocratização. O processo constituinte modelou um Estado grande, burocrático e avesso à ideia de mérito, no setor público; os anos 90 assistiram a um processo de reformas, em especial do Plano Real, passando pelos processos de privatização e da reforma do Estado, até a Lei de Responsabilidade Fiscal; na transição para o governo Lula, se imaginou que o País havia produzido algum consenso no tema das reformas e da responsabilidade fiscal, mas rapidamente retomamos um padrão desenvolvimentista, cujo ápice ocorre no Governo Dilma e leva à grande crise de 2015/16.
Após o impeachment, o País novamente ingressa em um ciclo de reformas de caráter modernizador. Teto de gastos, Lei das Estatais, reformas previdenciária e trabalhista, modernização dos marcos regulatórios, nas áreas de saneamento, ferrovias, cabotagem, Banco Central e agências reguladoras. Com as eleições de 2022, há claras indicações de que retomamos um padrão expansionista, pautado pela crença no “Estado indutor” e avesso a reformas liberalizantes. Foi esta a “pauta oculta” do último embate eleitoral: se o País iria andar para um lado ou para outro de nossa tradição recente. Prosseguir com as reformas liberalizantes ou retornar ao padrão do Estado indutor. Tratou-se de uma pauta oculta, em boa medida, porque criou-se a imagem, por estranho que possa hoje parecer, de que nada realmente importante, no terreno econômico e estrutural, estava em jogo, nas eleições. De um modo mais amplo, tratou-se de uma escolha da sociedade, como é próprio nas democracias.
Uma democracia ultrapolarizada. Já nos anos 50, Anthony Downs acentuava os traços definidores de uma democracia deste tipo: “a mudança de partidos causa uma alteração radical na política […] metade do eleitorado sente que a outra metade está impondo políticas fortemente repugnantes”, diz ele, parecendo falar diretamente ao contexto brasileiro. Isso “considerando que se os dois partidos se alternam no poder, emerge o caos, porque a política continua mudando de um extremo ao outro. A democracia não leva a um governo eficaz e estável quando o eleitorado está polarizado” (Downs, p. 143, 1957). Em que distantes do elemento caótico, é certo que nossa atual polarização política tem levado a um quadro de permanente instabilidade. E diria mais: de experimentalismo e crônica insegurança jurídica e institucional.
A regra do teto de gastos, votada como uma emenda à Constituição, em 2016, foi programada como uma norma de longo prazo, com validade para 20 anos e uma revisão no meio do caminho. Pouco mais de seis anos, o País decide mudar. O mesmo vale para a Lei das Estatais. Na esteira da crise, em 2016, nossas estatais tiveram um resultado negativo de mais R$ 30 bilhões. Havia um rastro de corrupção, e o País resolveu fazer uma lei dura, impondo 36 meses de quarentena para quem comandou campanhas ou partidos políticos. Apontada como modelo pela OCDE, a lei ajudou o País a melhorar não apenas no aspecto ético, como também na performance das empresas, que atingiram seu melhor resultado no ano passado. Diante disso, ainda na transição para o novo governo, aprova-se a redução da quarentena de 36 para apenas um mês. Sinaliza-se a volta a um padrão que há pouco mais de seis anos julgávamos superado.
A lógica se repete na atual tensão entre a presidência da república e o Banco Central. A autonomia do BC foi aprovada com folga no Congresso e depois chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Barroso fez um voto exemplar, à época, dizendo que instituições como o Banco Central não deveriam ser “submetidas a vontades políticas, mas a compromissos com a Constituição e o Estado brasileiro”. A aprovação foi saudada como um avanço institucional, na linha do que fazem as grandes economias globais. Pois bem, eleito, Lula diz que a autonomia do BC é uma “bobagem” e que “não haveria nenhuma explicação para a atual taxa básica de juros”. Resultado de alguma avaliação técnica? Não. Mas um indicador bastante claro: aceitamos um Banco Central independente, desde que os juros fiquem no patamar desejado pelo Governo.
O tema é o mesmo com as privatizações. Em 2021, a Câmara dos Deputados aprovou a privatização dos Correios. O processo ficou parado no Senado, e o atual governo terminou por engavetar. A privatização do Porto de Santos foi aprovada pela ANTAC, recebeu parecer positivo da área técnica do TCU, e o leilão está virtualmente pronto para acontecer. Provavelmente não irá. São anos de estudos, tramitação, a um custo difícil de estimar. E mais: de expectativas de investimentos geradas na região da baixada santista. No ziguezague brasileiro, nada disso importa muito. Ainda agora lemos que o governo mandou a AGU tentar a reversão da privatização da Eletrobrás. É provável que não dê em nada, mas não será pequeno o rastro de insegurança institucional deixado pelo caminho.
■ O País onde “até o passado é incerto”
O aspecto crucial aqui é o experimentalismo. O País onde “até o passado é incerto”, na conhecida frase de Pedro Malan. O prêmio Nobel Douglass North escreveu longamente sobre a importância das instituições para “reduzir as incertezas próprias da interação humana fornecendo os incentivos para que haja cooperação e desenvolvimento”. Isso é perfeitamente lógico. Por que alguém investiria uma enorme quantidade de tempo e dinheiro desconfiando seriamente que as regras do jogo vão mudar daqui a dois ou três anos? Há uma extensa literatura sobre este tema. O próprio North vai longe, na história moderna, mostrando como boa parte do sucesso econômico inglês, à época da revolução industrial, deve-se ao redesenho institucional e à redução da instabilidade produzida pela Revolução Gloriosa, que fixou alguns parâmetros na política inglesa: limites claros às prerrogativas reais, sob a common law; soberania do Parlamento, na tributação; judiciário independente e segurança quanto aos direitos de propriedade.
A série de reformas que o País fez, nos últimos anos, foram precisamente na direção de uma maior estabilidade institucional. Foi este o sentido da Lei Geral das agências reguladoras, aprovada em 2019; do Marco do Saneamento Básico, que abriu o setor para a competição e vem atraindo uma montanha de investimentos. Ou ainda da reforma trabalhista. Estudo feito por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) mostrou como a regra inibindo a litigância de má fé resultou em um aumento de 1,7 milhão de vagas do País, entre 2017 e 2021. Daria para ir longe nisso. São reformas que não deveriam ser vistas como deste ou daquele governo, mas como nosso patrimônio comum.
O problema é que estamos perdendo tempo. Um País pode sempre mudar de direção, mas ser jovem apenas por um tempo muito limitado. E o nosso está passando. Como alerta o economista Paulo Tafner, há quatro décadas, tínhamos 45,3 milhões de pessoas com 14 anos ou menos e 7,2 milhões de idosos, com 60 anos ou mais. Em 2060, teremos 73,6 milhões de idosos e apenas 28,3 milhões de jovens até 14 anos. Estamos diante de um maremoto. O detalhe é que há basicamente um caminho para a prosperidade: aumentar a produtividade, a abertura de mercado, a boa regulação, a segurança jurídica, uma educação de qualidade. Era sobre isto que Mário Covas falava, em nossa primeira eleição presidencial, quando dizia que precisávamos de um “choque de capitalismo”. Coisa que, 30 e tantos anos depois, parecemos ainda não compreender. ■
Fernando L. Schüler é filósofo, articulista e consultor de empresas e organizações civis nas áreas de Cultura e Ciências Políticas. Foi secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul e é professor do Insper
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