O feminismo publicitário venceu; agora ele precisa acabar
Movimento político com foco na coletividade, feminismo passou a ser usado de forma individualista para ganhar respaldo nas mídias femininas, com grande destaque no reality show BBB. Para cientista política, a pauta feminista precisa se voltar novamente à construção de um outro modo de vida sem opressão de um gênero sobre os demais
Movimento político com foco na coletividade, feminismo passou a ser usado de forma individualista para ganhar respaldo nas mídias femininas, com grande destaque no reality show BBB. Para cientista política, a pauta feminista precisa se voltar novamente à construção de um outro modo de vida sem opressão de um gênero sobre os demais
Por Fhoutine Marie*
Há cerca de dez anos o Brasil viveu uma espécie de primavera feminista. Em sintonia com o que acontecia em outros países, uma onda feminista se popularizou nas redes em campanhas de denúncias via hashtags, como o movimento #metoo nos Estados Unidos e #meuprimeiroassedio no Brasil. Com o tempo, artistas e personalidades da mídia e da política passaram a se declarar feministas, fazendo com que as adolescentes e jovens adultas se declarassem e agissem como feministas, reivindicando tratamos igualitários e denunciando situações de machismo e assédios.
Tudo isso acabou se refletindo na publicidade e meios de comunicação: de um lado, uma cobertura mais humanizada sobre violência contra mulher e alguma mudança de tom com relação a padrões estéticos e relacionamentos amorosos, deslocando o foco para a liberdade de escolha e autoestima.
Este foi precisamente o começo do fim. Foi no momento em que empresas de comunicação, agências de publicidade, influenciadoras digitais e outras pessoas mais ou menos famosas se apropriaram do discurso feminista para propósitos de audiência que a coisa se esvaziou tanto a ponto de hoje parecer que se trata de uma modalidade de autoajuda ou uma ética das amigas e não de um movimento político.
Nesta semana, após o festival de chorume que se tornou o Big Brother Brasil, muitas pessoas na minha bolha, bem como páginas com conteúdo racial, apontaram para as atitudes de um grupo de participantes como “puro suco de feminismo branco” ou ainda como uma expressão do feminismo liberal. Afirmações fazem sentido e procedem em alguma medida. No entanto, há algo mais, que é anterior. E é sobre isso eu gostaria de falar.
Ideia radical
“Feminismo é a ideia radical de que as mulheres são gente”. A frase de Marie Shear (1986) sintetiza o movimento de forma simples, mas sem abrir mão da complexidade do movimento.
Considerar que mulheres são gente significa tirar o sexo feminino da condição de subalternidade ao masculino e questionar a naturalização de papeis sociais que estabelecem condutas que lhe são apropriadas e os espaços que pode ou não acessar.
Mais recentemente, a frase da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, usada por Beyoncé na música Flawless definiu feminista como a pessoa que acredita na igualdade política, econômica e social entre sexos. As duas definições, separadas por mais de 30 anos, fazem referência à coletividade: as mulheres, os sexos, no plural.
É esse caráter de coletividade que levou milhares de mulheres às ruas na Argentina, Colômbia e México nos movimentos pela descriminalização do aborto. Foi isso que reuniu mulheres no Chile no auge dos protestos de 2019 para denunciar os abusos sofridos pelas manifestantes por parte de autoridades entoando o coro “O Estado opressor é um macho violador”, movimento que foi repetido em diversas cidades brasileiras.
É a coletividade que leva mães a se reunirem em locais públicos pelo direito de não serem constrangidas ao amamentar em público. É a coletividade que reúne mulheres no ativismo digital expondo diariamente agressões sofridas de companheiros e situações de assédio. Foi a coletividade que levou milhares de mulheres às ruas em 2018 para levantar a voz num pleito marcado pela misoginia e gritar: “Ele, não!”. É a pressão da coletividade que muda mentalidades, condutas e por consequência, vidas.
Assim como o socialismo, o feminismo é um movimento político e uma teoria e, tendo mais de um século de existência, possui também suas subdivisões. E do mesmo modo que existem pessoas que se dizem socialistas que acreditam na possibilidade de transformação social via sufrágio, existem pessoas que se arrogam feministas pensando no que as bandeiras do movimento podem agregar em suas vidas, seja em termos de ficar em paz com a própria consciência, se autopromover ou obter ganhos econômicos.
Um tipo de autodeclaração sem ancoragem na produção acadêmica sobre o tema e muito menos nos movimentos sociais, mas que encontra respaldo na publicidade e nas mídias femininas –o que eu chamo de feminismo publicitário e que precisa, urgentemente, acabar.
A lógica dos meios de comunicação, influenciadoras e pessoas públicas em geral é um tanto parecida com a política partidária: ao depender de que sua mensagem alcance e conquiste o maior número de pessoas é necessário fazer concessões. Essas concessões passam por suprimir ao máximo toda radicalidade de um discurso –exemplo: não existe lugar para a religião na política– até torcer princípios fundamentais até que eles possam acomodar o que antes era incompatível — cortejar o apoio de lideranças religiosas para fins eleitorais, por exemplo.
No caso das publicações e pessoas públicas autodeclaradas feministas, há um certo apelo aos princípios de um movimento de reivindicação de igualdade que se expressa nas denúncias do machismo, com ênfase na violência contra a mulher, na busca por igualdade salarial, representação política e postos de trabalho e crítica sobre atender a padrões de beleza e comportamento esperados de mulheres de uma certa classe social. Todas essas demandas estão relacionadas ao que se chama de feminismo liberal.
Feminismo liberal é uma coisa, outra coisa é não ter a menor noção
No livro Feminismo para os 99% – Um Manifesto (2019), as autoras Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser declaram a falência do feminismo liberal e a necessidade de superá-lo.
”Dedicado a permitir que um pequeno número de mulheres privilegiadas escale a hierarquia corporativa e os escalões das Forças Armadas, esse feminismo propõe uma visão de igualdade baseada no mercado, que se harmoniza perfeitamente com o entusiasmo corporativo vigente pela diversidade… Seu verdadeiro objetivo não é a igualdade, mas meritocracia”.
É neste ponto que a análise das autoras toca o cerne do que eu chamo de “feminismo publicitário”: Ao permear o mundo das celebridades das mídias sociais, que confunde com feminismo a ascensão de mulheres enquanto indivíduos, o movimento corre o risco de se tornar um veículo de autopromoção, já que permite que as forças que sustentam o capital possa retratar a si mesmas como “progressistas”.
Johanna Oksala (2019) descreve muito bem esse sujeito neoliberal do feminismo. No neoliberalismo, onde a competição econômica é maximizada, tornou-se totalmente concebível que as mulheres tenham interesses além de um lar feliz, desejando dinheiro, sucesso e poder.
Nesse sentido, a feminilidade normativa não é mais direcionada a atrair interesse dos homens, mas se tornou firmemente ligada a ganhos econômicos. A aparência feminina –com o ideal de magreza e juventude– se tornou um instrumento do capital humano e poder social. A diferença das primeiras ondas femininas é que agora tudo isso é compatível com o discurso do feminismo publicitário, desde que tratado como uma escolha.
Porém, como observa Oksala, o problema óbvio com esse foco excessivo na escolha é que mulheres têm de fazer suas escolhas em uma rede de relações de poder altamente desigual. Dentro dessas desigualdades estão justamente as intersecções que eu não tinha mencionado até agora: classe e raça, dois pontos presentes nas discussões da teoria feminista e movimentos sociais há pelo menos 40 anos, incluindo a onda feminista recente do feminismo que se articula Internet.
Em outras palavras, é possível invocar um discurso feminista sem necessário ter uma prática ou conhecimento minimamente razoável do tema, já que nunca lógica de competição e ganho de capital humano, o que importa não é ser feminista, que é uma ação coletiva, mas se vender como tal. Especialmente numa era em que influenciadoras e meios de comunicação que pegaram carona nesta onda contribuem para que o entendimento de feminismo tenha sido esvaziado a tal ponto de se confundir com mais uma modalidade de autoajuda.
Desde os primórdios do movimento feminista, diversas mulheres –como a Emma Goldman e Maria Lacerda de Moura– escreveram sobre as limitações do movimento sufragista e numa proposta de emancipação que, no limite, garantiria apenas a possibilidade que mulheres de uma classe pudessem ter acesso aos mesmos espaços de poder e privilégios dos homens de sua classe. Essas reflexões se coadunam com as proposições das feministas negras, que têm enfatizado a indispensabilidade do recorte racial nas análises e movimentos feministas.
Ou seja: Há diferentes opressões sofridas por mulheres diferentes, que dizem respeito não somente ao gênero, mas à raça, orientação sexual, classe social, entre outras. Um debate que mesmo nas redes sociais é suficientemente conhecido para até a menos letrada das feministas saber que não se trata de “empoderar mulheres”, mas de entender que, quanto mais marcadores sociais de diferença uma pessoa acumula, mais discriminada ela será. Por isso é preciso buscar mecanismos para mitigar essas opressões, o que é algo que passa por condutas individuais, mas que é principalmente sobre soluções coletivas.
Um filme de Sessão da Tarde, mas com mulheres adultas encenando um papelão
O primeiro passo do BBB 23 em direção a uma narrativa feminista –e que logo se transformaria numa vitrine do feminismo universitário– foi quando o apresentador do programa decidiu intervir em uma dinâmica de casal considerada “tóxica”: O rapaz disse pra moça com quem estava se relacionando que lhe daria uma cotovelada na boca. Isso fez com que o rapaz e a moça se afastassem, mas ninguém da casa, nem mesmo a ofendida, o consideraram mau caráter. Era apenas um menino de bom coração que havia cometido um erro, segundo as palavras de outros colegas de confinamento –homens e mulheres. Ele foi eliminado numa votação apertada e o jogo seguiu.
Semanas mais tarde, o machismo voltaria a ganhar os trending topics quando dois participantes foram expulsos da competição por importunação sexual: Um deles, casado, passou a mão no corpo de uma participante sem consentimento dela; o outro, lutador profissional, imobilizou esta mesma mulher para beijá-la. A partir daí, abriu-se caminho para que a temática racial —levantada desde o começo do programa e já mencionado em uma coluna anterior— fosse suplantada por uma narrativa ao estilo feminismo publicitário.
A volta de uma participante por meio de uma repescagem criou uma espécie de Mean Girls com mulheres adultas performando um papelão: O de posar como inflexíveis lutadoras contra o machismo, mas isso se tornou útil como estratégia para avançar na disputa.
Assim, uma mulher branca, loira e que não deve vestir nem 44 passou a se intitular fora dos padrões, enquanto defendia o “bom coração” do amigo expulso do programa por assédio. Essas mesmas mulheres que criticaram uma rival por ter insultado uma delas, invalidando sua prática de décadas com ativismo social, mais de uma vez fizeram homenagens aos homens brancos eliminados do programa justamente por atitudes machistas.
Blindadas por terem uma única participante negra em seu grupo, elas se sentiram livres para perseguir, insultar e humilhar os demais participantes negros, enquanto a edição do programa as mostrava como um exemplo de sororidade e união entre mulheres. A esse respeito, cabe lembrar que a única mulher negra parte do grupo recebeu delas o apelido de “mamy”, um estereótipo racista equivalente à mãe preta. Aquela que é quase parte da família, desde que saiba o seu lugar e nunca bata de frente com a branquitude.
Os participantes negros que um dia sonharam com um pódio todo preto, hoje veem uma final majoritariamente branca, que nos manda uma mensagem clara: Errar é humano, mas no Brasil o pano não está disponível para todos. Por isso, após ter atingido o ápice de sua fórmula, o feminismo publicitário, esse voltado para a autopromoção, precisa acabar. Deste modo a pauta feminista poderá se voltar novamente para o que interessa: a construção de um outro modo de vida sem opressão de um gênero sobre os demais –que leve em conta as diferenças interseccionais em seu processo de construção.
*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional