Quando a máfia ameaça a democracia: Pesquisa mostra que pessoas comuns são menos honestas em países marcados pelo crime organizado
Estudo sobre criminalidade todos os continentes apresenta resultados variados. Para professores, países com maior presença de grupos mafiosos tendem a ter cidadãos que justificam e a aceitam atos ilegais como a corrupção e a sonegação de impostos
Estudo sobre criminalidade todos os continentes apresenta resultados variados. Para professores, países com maior presença de grupos mafiosos tendem a ter cidadãos que justificam e a aceitam atos ilegais como a corrupção e a sonegação de impostos
Por Giovanni A. Travaglino, Alberto Mirisola e Pascal Burgmer*
O crime organizado projeta uma longa sombra, impulsionando a violência e a economia ilícita. Mas nossa pesquisa também revelou algumas dimensões mais sutis de sua influência. Descobrimos que o crime organizado pode minar a honestidade cívica de pessoas comuns e cumpridoras da lei.
Honestidade cívica significa aderir a normas morais compartilhadas que caracterizam ações como sonegação de impostos, suborno ou fraude previdenciária como inaceitáveis. A honestidade cívica é a pedra angular de uma democracia robusta e próspera. Ela cria uma sociedade em que as pessoas seguem as regras não por medo de sofrer alguma repressão, mas por suas convicções morais. Isso, por sua vez, diminui a necessidade de vigilância intensiva e medidas punitivas custosas.
Normalmente, a honestidade cívica é impulsionada pela confiança em órgãos públicos, como o governo e a polícia. Essa confiança representa a participação dos cidadãos em um contrato social implícito, segundo o qual eles cumprem seus deveres cívicos em troca da competência, justiça e confiabilidade de seu governo.
Entretanto, a ligação entre a confiança política e a honestidade cívica varia substancialmente de país para país. Nosso objetivo era explorar se a presença do crime organizado era um fator dessa variabilidade.
83 países
A fim de testar isso, usamos um índice de crime organizado global para classificar a influência de grupos criminosos em diferentes países e regiões numa escala de 1 a 10. Incluímos grupos de estilo mafioso com uma estrutura clara e um nome reconhecível, como a Cosa Nostra na Itália ou a Yakuza no Japão, e associações criminosas mais livres, sem uma estrutura ou nome claros.
Também analisamos os grupos integrados ao Estado – criminosos organizados que operam infiltrando-se no aparato estatal – e grupos criminosos estrangeiros que operam fora de seu país de origem, como a máfia italiana que opera nos EUA.
Combinamos esse índice com dados de pesquisa de mais de 128 mil pessoas em 83 países provenientes de dois estudos de larga escala que investigaram crenças, opiniões e valores. A partir desses estudos, obtivemos duas medidas de diferenças individuais: confiança política e honestidade cívica.
A medida de confiança política baseou-se no grau de confiança que as pessoas tinham nas principais instituições legais e políticas – a polícia, o serviço público, o governo, os partidos políticos e o sistema judiciário.
O índice de honestidade cívica baseou-se no grau de justificativa que os entrevistados consideravam para quatro ações ilegais – aceitar suborno, sonegar impostos, fugir da tarifa do transporte público e fraudar benefícios.
Os dados para essas duas medidas foram disponibilizados por oito países africanos, 13 países do continente americano, 26 nações asiáticas, 34 nações europeias e duas da Oceania.
A corrupção prejudica a honestidade cívica
Descobrimos que os cidadãos tendem a ser menos inclinados à honestidade cívica em países onde os grupos criminosos organizados são mais difundidos. Nesses locais, a corrupção é mais comumente justificada.
Também prevíamos que as pessoas que relatam maior confiança política seriam mais honestas do ponto de vista cívico. Se você acredita na integridade e confiabilidade do governo, da polícia e dos tribunais, é mais provável que cumpra as regras impostas por eles.
A confiança política é um reflexo da legitimidade das instituições porque, quando as pessoas veem as instituições como legítimas, é mais provável que internalizem as normas e os valores que elas promovem como se fossem seus.
As pessoas tendem a seguir as diretrizes de instituições legítimas por convicção de que essas normas constituem a maneira correta e moral de agir. Portanto, o grau de confiança das pessoas nas instituições deve estar ligado à sua honestidade cívica.
Esse foi, de fato, o caso em países que tinham menos problemas com o crime organizado, como Dinamarca, Finlândia e Singapura. Entretanto, o quadro era bem diferente nos países onde havia mais crime organizado, expondo uma dinâmica interessante.
Em países como Itália, México e Rússia, a associação entre honestidade cívica e confiança política era mais fraca ou até mesmo inexistente. Portanto, saber o grau de confiança que uma pessoa tem nas instituições diz pouco ou nada sobre o que ela pensa a respeito da honestidade cívica.
Interpretamos isso como uma indicação de que, em países mais fortemente influenciados pelo crime organizado, as instituições perdem seu papel de referência moral. Os julgamentos das pessoas sobre a justificabilidade de ações ilegais não são previstos pelo grau de confiança que elas têm nas organizações políticas e jurídicas.
Quando nossa compreensão da adequação da evasão fiscal se desvincula de nossa confiança nas instituições, por exemplo, isso mostra que nossas normas estão fora de sintonia com as da instituição. Ainda não sabemos o que orienta os julgamentos das pessoas nessas situações, mas é provável que a probabilidade perceptível de ser pego ou os valores pessoais se tornem mais importantes.
Aquisição total
No entanto, é notável que os países que sofrem com uma influência criminosa mais extrema apresentam uma inversão na correlação entre confiança e honestidade. As pessoas que confiam mais nas instituições públicas têm maior probabilidade de demonstrar um nível mais baixo de honestidade cívica.
Em países como Colômbia, Iraque e Venezuela, a confiança da população nas organizações está associada a uma maior justificativa para ações ilegais, como suborno e evasão de divisas.
Nesses países, não apenas as instituições perdem seu papel de referência moral, mas a confiança das pessoas em instituições que supostamente são corruptas está ligada ao fato de elas acharem mais fácil justificar a ilegalidade.
Esse resultado aparentemente paradoxal pode ser atribuído ao fato de que grupos criminosos conseguem cooptar o Estado, subvertendo assim a natureza e as responsabilidades morais das organizações.
As instituições podem ser percebidas como manipuladas para atender a interesses ilegais, o que leva a uma situação em que os cidadãos que confiam em instituições corrompidas são também aqueles com maior tendência à imoralidade e ao crime.
O crime como uma questão democrática
As implicações dessas descobertas para os sistemas democráticos são profundas. Os grupos criminosos organizados podem desempenhar um papel na alteração das normas sociais ao minar a autoridade moral dos órgãos públicos. Pode ocorrer uma erosão insidiosa do contrato social, afastando as normas dos princípios da honestidade cívica.
O crescimento descontrolado do crime organizado não apenas leva a mais atividades ilegais e diminui a segurança pública, mas também ameaça a própria estrutura de nossas democracias. Ele pode levar a uma aceitação mais ampla de comportamentos ilegais ao limitar sutilmente, ou até mesmo sabotar, a capacidade das autoridades políticas e jurídicas de promover uma cultura de legalidade e cooperação.
Giovanni A. Travaglino é professor de psicologia social e criminoogia na Royal Holloway University of London; Alberto Mirisola é professor de psicologia social na University of Palermo , e Pascal Burgmer é professor de psicologia na University of Southampton
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Tradução de Letícia Miranda
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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