23 outubro 2023

A tragédia palestina

Em meio à escalada do conflito entre Israel e o Hamas, opiniões se dividem e fica difícil encontrar argumentos para entender o que realmente acontece. Para embaixador que visitou a região, o que importa neste exato momento é o destino dos 2,2 milhões de indivíduos que habitam a Faixa de Gaza

Em meio à escalada do conflito entre Israel e o Hamas, opiniões se dividem e fica difícil encontrar argumentos para entender o que realmente acontece. Para embaixador que visitou a região, o que importa neste exato momento é o destino dos 2,2 milhões de indivíduos que habitam a Faixa de Gaza

Famílias palestinas fogem de suas casas em meio à destruição em Gaza (Foto: Eyad El Baba/Unicef)

Por Fausto Godoy*

Diante do emaranhado de notícias, argumentos, contra-argumentos e emoções que tomaram conta de todos nós a partir do momento em que centenas de militantes do Hamas lançaram um ataque ao território sul de Israel, no dia 7 de outubro, resultando na morte de pelo menos 1.200 pessoas e no sequestro de dezenas de reféns, dando início desta forma a mais um capítulo trágico da História da região bíblica da Palestina/Israel, fica difícil para os que estamos fisicamente longe do conflito separar o “joio do trigo”, ou seja, encontrar os argumentos que nos ajudem a minimamente entender o que realmente está ocorrendo naquela região.

As opiniões estão divididas para a maioria da opinião pública: para ela, há “bandidos” e “mocinhos” em ambos os lados. Mas o que importa, a meu ver, neste exato momento é o destino dos 2,2 milhões de indivíduos que habitam a Faixa de Gaza. Ou seja, a humanidade está diante do dilema vidas x disputas políticas, ou gente x ideologia.

O filósofo francês Ernest Renan disse, em pleno século XIX – apogeu do colonialismo europeu -, que “entender a história erradamente é preciso para ser parte de uma nação”, ou seja, a interpretação/manipulação dos fatos históricos serve, em última análise, para justificar as ações de indivíduos e Estados. Entretanto, fatos são fatos, e a sua percepção é outro “departamento”. Se os alemães tivessem ganhado a Segunda Guerra Mundial, leríamos a história de uma maneira completamente distinta.

Vamos, portanto, a ela:

‘O conflito entre Israel e Hamas tem origem na disputa por territórios que já foram ocupados por diversos povos, como hebreus e filisteus, dos quais descendem israelenses e palestinos’

O conflito entre Israel e Hamas tem origem na disputa por territórios que já foram ocupados por diversos povos, como hebreus e filisteus, dos quais descendem israelenses e palestinos. 

Palestina – do original “Filistina”, “Terra dos Filisteus” – é o nome dado desde a Antiguidade à região localizada ao sul do Líbano e a nordeste da Península do Sinai, entre o Mar Mediterrâneo e o vale do Rio Jordão. Trata-se da Canaã bíblica, que os judeus tradicionalistas preferem chamar de Sion. A região foi conquistada pelos hebreus por volta de 1.200 AC, quando, guiados por Moisés, se retiraram do Egito, onde viveram por alguns séculos.

Entretanto, sucessivas dominações estrangeiras, iniciadas com a tomada de Jerusalém (587 AEC) por Nabucodonosor, rei da Babilônia, deram início a um processo de diáspora da população. Os segundos ocupantes foram os romanos. As duas rebeliões dos judeus contra este domínio, em 66-70 e 133/135 AC, tiveram resultados desastrosos. Ao debelar a primeira revolta, as tropas do general Tito – posteriormente imperador – tomaram Jerusalém, em setembro de 70 DC. O templo construído por Salomão, em 970 AC, e reconstruído por Herodes em 19 AC, símbolo e centro do poder religioso e político dos judeus, foi incendiado e os habitantes deportados como escravos. Dele restou apenas o Muro das Lamentações. Por sua vez, o imperador Adriano, ao sufocar a segunda rebelião, intensificou a diáspora e proibiu os judeus de viverem em Jerusalém. A partir de então, eles se espalharam pelo Império Romano, sendo que alguns grupos emigraram para a Mesopotâmia e outras regiões do Oriente Médio, fora do poder de Roma.

Em 638 DC a região foi conquistada pelos árabes, no contexto da expansão do islamismo, e passou a fazer parte do mundo muçulmano. Após várias disputas hegemônicas, de 1517 a 1918 a Palestina passou a integrar o Império turco-otomano. No início do século XX já existiam na região pequenas comunidades israelitas, vivendo em meio à população predominantemente árabe. A partir de então, novos núcleos começaram a se instalar ali, geralmente mediante compra de terras aos árabes palestinos. A criação do Estado de Israel é uma verdadeira epopeia, que o best seller Exodus, do escritor Leon Uris retrata com maestria.

‘Após a Primeira Guerra Mundial, a Palestina passou a ser administrada pela Grã-Bretanha. Foi quando se intensificou a imigração de judeus para a região’

Após a Primeira Guerra Mundial, com a derrota dos turcos, que haviam lutado ao lado da Alemanha, a Palestina passou a ser administrada pela Grã-Bretanha mediante mandato outorgado pela Liga das Nações. Foi quando se intensificou a imigração de judeus para a região, gerando inquietação no seio da majoritária população árabe. A crescente hostilidade levou os colonos judeus a criarem uma organização paramilitar – a “Haganah” – a princípio voltada para a autodefesa, e mais tarde também para operações de ataque contra os árabes.

Entrementes, em 1896, o escritor austríaco de origem judaica Theodor Herzl fundava o “Movimento Sionista”, que pregava a criação de um Estado judeu na antiga pátria dos hebreus. Este projeto teve ampla ressonância junto à comunidade judaica internacional. 

Neste contexto, em novembro de 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, o governo britânico emitiu uma declaração, registrada pela história como “Declaração Balfour” anunciando seu apoio ao estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina, então uma região otomana com uma população judaica bastante reduzida.

Apesar do conteúdo da declaração favorável à criação de um Estado judeu, a Grã-Bretanha tentou frear o movimento imigratório para não descontentar os países muçulmanos do Oriente Médio, com o quais mantinha proveitosas relações econômicas. Entretanto, viu-se confrontada pela pressão mundial da comunidade israelita e dentro da própria Palestina, pela ação de organizações terroristas. 

‘Em 1947, a Assembleia Geral da ONU decidiu dividir a Palestina em dois Estados independentes: um judeu e outro palestino. Mas tanto os palestinos como os Estados árabes vizinhos recusaram-se a acatar a partilha proposta pela ONU’

Após a Segunda Guerra Mundial, o fluxo de imigrantes judeus tornou-se irresistível. Em 1947, a Assembleia Geral da ONU decidiu dividir a Palestina em dois Estados independentes: um judeu e outro palestino. Mas tanto os palestinos como os Estados árabes vizinhos recusaram-se a acatar a partilha proposta pela ONU.

Em 14 de maio de 1948, foi proclamado o Estado de Israel, que se viu imediatamente atacado pelo Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Iraque, Síria e Líbano. Esta foi a Primeira Guerra Árabe-Israelense. Os árabes foram derrotados, e Israel passou a controlar 75% do território palestino. Os 25% restantes, correspondentes à Faixa de Gaza e à Cisjordânia, ficaram sob ocupação respectivamente do Egito e da Jordânia. Cabe notar que a Cisjordânia incluía a parte oriental de Jerusalém, onde fica a Cidade Velha, de grande importância histórica e religiosa. Como territórios palestinos restaram a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, ocupados, respectivamente, por tropas egípcias e jordanianas. A partir daí, iniciou-se o êxodo dos palestinos para os países vizinhos. Atualmente, esses refugiados somam cerca de 3 milhões.

Para arregimentar a população palestina na defesa dos seus territórios ancestrais, em 1964 foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), cuja pretensão inicial era destruir Israel e criar um Estado Árabe Palestino. Utilizando de inicio táticas terroristas, mas sofrendo pesadas retaliações israelenses, a OLP não alcançou seu objetivo e, com o decorrer do tempo, passou a admitir implicitamente a existência de Israel.

‘Na Segunda Conferência do Cairo, de 1964, a Liga Árabe deixou claro que um dos seus objetivos principais era “a destruição do Estado de Israel”’

Paralelamente, nas décadas de 1950 e 1960, estava em ascensão o nacionalismo árabe, liderado pelo presidente do Egito, e posterior presidente da República Árabe Unida (RAU), Gamal Abdel Nasser. Ele era apoiado vários chefes de Estado árabes, sobretudo os que integravam a Liga Árabe. Na Segunda Conferência do Cairo, de 1964, esses países deixaram claro, por meio de uma declaração, que um dos seus objetivos principais era “a destruição do Estado de Israel”. A situação piorou quando Síria e Jordânia passaram a dar apoio a grupos guerrilheiros da OLP e a movimentar tropas regulares nas fronteiras com Israel.

Diante desta ameaça, em maio de 1967, os israelenses, de forma preventiva, atacaram fulminantemente e ocuparam a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, e tomaram a Península do Sinai ao Egito, bem como as Colinas de Golan à Síria. A história registrou este momento como a Guerra dos Seis Dias. Outros confrontos aconteceram posteriormente, porém os israelenses conservaram em seu poder os territórios ocupados em 1967.

Em 1977, pela primeira vez, desde a fundação de Israel, uma coalizão conservadora – o bloco Likud – obteve maioria parlamentar. O novo primeiro-ministro, Menachem Begin, iniciou o assentamento de colonos judeus nos territórios ocupados em 1967. Em 1979, pelos Acordos de Camp David, o Egito foi o primeiro país árabe a reconhecer o Estado de Israel que, em contrapartida, devolveu-lhe a Península do Sinai, cláusula que foi cumprida somente em 1982. Em revanche, em 1981 militares egípcios contrários à paz com Israel assassinaram o presidente Anwar Sadat.

‘Em 1982, Israel invadiu o Líbano, então em plena guerra civil entre cristãos e muçulmanos, e conseguiu expulsar a OLP do território libanês. Em resposta, foi criado o grupo Hezbollah’

Na busca de se livrar das ações da OLP, em 1982 Israel invadiu o Líbano, então em plena guerra civil entre cristãos e muçulmanos, e conseguiu expulsar a organização do território libanês. Em resposta, foi criado o grupo Hezbollah (“Partido de Deus”), organização xiita libanesa apoiada pelo governo islâmico fundamentalista do Irã. Em 1987, palestinos que se opunham à ocupação israelense promoveram, na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, uma Intifada (revolta popular) contra a ocupação israelense. Basicamente, a Intifada consiste em manifestações diárias da população civil que arremessa pedras contra os soldados israelenses.

Em 1993, com a mediação do presidente norte-americano Bill Clinton, Yasser Arafat, líder da OLP, e Yitzhak Rabin, Primeiro-Ministro de Israel, firmaram em Washington um acordo prevendo a criação de uma Autoridade Nacional Palestina, com autonomia administrativa e policial em alguns pontos do território palestino, que a história registrou como os Acordos de Oslo. Estava prevista, também, a progressiva retirada das forças israelenses de Gaza e da Cisjordânia. Em troca, a OLP reconhecia o direito de Israel à existência e renunciava formalmente ao terrorismo. Mas duas organizações extremistas palestinas – Hamas e Jihad Islâmica – opuseram-se aos termos do acordo, da mesma forma que os judeus ultranacionalistas. Em 1994, a Jordânia tornou-se o segundo país árabe a assinar um tratado de paz com os israelenses.

Estes esforços foram crescentemente dilapidados quando, em 1996 foi eleito primeiro ministro de Israel Binyamin Netanyahu, do partido Likud, que paralisou a retirada das tropas de ocupação dos territórios palestinos e intensificou os assentamentos de colonos judeus em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, em meio à população predominantemente árabe. 

‘As controvertidas políticas que Israel vem promovendo com o grupo de extrema-direita de Netanyahu causaram um profundo revés aos acordos previamente firmados’ 

O processo de pacificação da região entrou, então, em compasso de espera, ao tempo em que recrudesceram os atentados terroristas palestinos. As controvertidas políticas que Israel vem promovendo com o grupo de extrema-direita de Netanyahu e a ala radical de seu partido, sobretudo, incentivando a expansão das colônias judaicas na Cisjordânia, causaram um profundo revés aos acordos previamente firmados. 

A situação é ainda pior na Faixa de Gaza, uma extensão de território de apenas 41 quilômetros de comprimento e de 6 a 12 quilômetros de largura, com uma área total de 365 km2. A título de exemplo, a área urbana da cidade de São Paulo é de 949,611 km². Este espaço abriga cerca de 2,2 milhões de pessoas; ou seja, é praticamente impossível de se viver ali, porque, ademais, Israel controla grande parte da infraestrura do enclave, como a eletricidade e o fornecimento de água.

Disto sou testemunha ocular. Quando servia em Aman, em 2012, tive a “nefasta” ideia de passar as férias de Natal em Jerusalém, o que muitos considerariam de grande significado. Pois, entusiasmado, lá fui eu. E não só fiquei muito impactado com o nível da segurança agressiva imposta pelas tropas israelenses em cada recanto da cidade sagrada para as três grandes religiões monoteístas, senão também, a caminho de Belém, na véspera de Natal, cruzando o território palestino, no qual Belém se situa, pude avaliar as dificuldades que enfrenta a população, sobretudo os mais jovens, confinada num país – chamemo-lo assim – em que se pode ver num só golpe de vista o muro inacessível da fronteira leste e o mar a oeste, ambos patrulhados pelos israelenses.

A pergunta que me ficou na alma é: qual é o limite da tolerância humana de suportar tais condições antes que o desespero leve – sobretudo os jovens sem futuro – a atitudes radicais e tresloucadas? Nada justifica, é claro, o que está acontecendo, assim como nada tampouco justifica as suas causas. Trágico.


*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

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