Comunidades ribeirinhas do Rio Tapajós enfrentam a pior seca de que se lembram os anciãos locais
Os ribeirinhos são povos que vivem na e da floresta, e são denominados povos tradicionais. Vivem de sua relação com a natureza, especialmente com a dinâmica das águas, que se modifica ciclicamente entre cheia, vazante, seca. Eles nunca vivenciaram nada igual a esta estiagem, que comprometeu em muito o ciclo natural da floresta
Os ribeirinhos são povos que vivem na e da floresta, e são denominados povos tradicionais. Vivem de sua relação com a natureza, especialmente com a dinâmica das águas, que se modifica ciclicamente entre cheia, vazante, seca. Eles nunca vivenciaram nada igual a esta estiagem, que comprometeu em muito o ciclo natural da floresta
Por Wilson Sabino*
“Os pássaros que estávamos acostumados a ver, como papagaio, arara, periquito, sumiram. Os peixes não se abrigam mais aqui perto; os lagos secaram e perderam a conexão com o rio. Isso fez com que os peixes que ficavam no lago morressem e os outros passaram a se abrigar mais distante da comunidade. Achamos que é a quentura do rio”.
Algumas comunidades ribeirinhas da região do Tapajós, no município de Santarém, no Pará, estão vivendo a pior seca de que se lembram seus moradores mais idosos.
Em mais uma ação de extensão do Instituto de Saúde Coletiva e o Instituto de Biodiversidade e Floresta da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) – como fazemos mensalmente docentes, alunos e representantes da Igreja Católica -, saímos da cidade de Santarém em um barco de linha, que é como chamam na região as embarcações que levam passageiros da cidade às comunidades do rio.
Nesta viagem, em conversa com ribeirinhos, ouvimos muitos relatos e testemunhamos a situação provocada pela seca atual. Os relatos que esse texto traz são de moradores dessas comunidades. Para proteger suas identidades, não usaremos seus nomes verdadeiros, mas nomes de árvores da região. O relato que abre esse texto é de Andiroba, e retrata a situação vivenciada por centenas de moradores das comunidades ribeirinhas.
Os ribeirinhos são povos que vivem na e da floresta, e são denominados povos tradicionais. Vivem de sua relação com a natureza, especialmente com a dinâmica das águas, que se modifica ciclicamente entre cheia, vazante, seca.
Mas esse ano a seca tem sido diferente: como vários moradores idosos da comunidade observaram, eles nunca vivenciaram nada igual a esta estiagem, que comprometeu em muito o ciclo natural da floresta. Uma dessas moradoras é Taperebá, que nasceu na região e que conta que, em 81 anos de vida no Tapajós, “nunca havia presenciado nada parecido. Muitos dizem que está tudo bem, mas é porque não andam para observar a realidade”.
Ciclo natural desestabilizado
A estiagem está dificultando a captação de água nos microssistemas, que são as águas subterrâneas que abastecem as casas. Há relatos de que a água já começa a faltar em algumas comunidades, e os poços artesianos estão secando (alguns com até 80m de profundidade).
Para complicar a situação, o número de queimadas vem se ampliando. Com a seca, basta uma pequena faísca para iniciar um incêndio. Com a queima das árvores, muitos animais estão morrendo, e outros acabam se deslocando para lugares distantes em busca de proteção.
A seca e, consequentemente, as queimadas desestabilizaram o ciclo natural da região. E os impactos nesse sistema de regulação, de que pouco conhecemos, já se sente na forma de fome e doenças.
Uma terra antes fértil, hoje castigada
Uma moradora me conta que essa era uma terra fértil, onde se colhia mamão, melancia, banana, milho, mandioca. Agora está cada vez mais difícil tirar dela o alimento. “Minha maior dor é que as crianças querem comer e muitos estão sem o que dar”, lamenta-se Taperebá.
A escassez de água também não permite a manutenção da cultura de verduras e legumes. Uma moradora relatou que “tinha três canteiros que estavam bem verdinhos, mas, mesmo molhando, eles morreram”. As roças de mandioca também estão perecendo e muitos têm que comprar farinha nos mercados. As batatas estão cozinhando embaixo da terra, e muitas árvores frutíferas estão secando. Os maiores impactos de tudo isso, no entanto, possivelmente só serão vistos nos próximos meses.
A fome está mudando o hábito destes povos tradicionais. Um morador me contou que as pessoas estão enchendo baldes de ostras – retiradas do rio com o risco de se machucarem – e fazendo farofa. Soube de uma família que comeu apenas isso por uma semana. Saíam para pescar e, por não conseguirem peixe, passaram a levar as ostras para comer. Em outras casas, as pessoas estão comendo somente arroz.
Tudo está muito difícil. Como pesquisador, eu nunca tinha vivenciado algo parecido. “Não há pescado e nem caça”, reclamam os moradores, que muitas vezes saem para pescar e voltam sem sua fonte básica de alimentação e renda.
“Nós somos acostumados com peixe, está faltando. Pescamos de forma artesanal como os nossos antepassados, com anzol e fruta para pegar o peixe. Mas outros vêm pescar de maneira predatória neste momento, agravando ainda mais a situação. Agora é malhadeira e arrastão, faltando com isso o peixe para aqueles que pescam artesanalmente. A caça também está morrendo ou se afastando para outras regiões”, afirma Cumaru.
Sem acesso à saúde
Por conta da seca extrema, moradores contam que as doenças infecciosas que estavam de certa maneira sob controle ressurgiram com muita rapidez nessas comunidades vulnerabilizadas. Há falta de medicamento e, em alguns momentos, deve-se escolher entre comprar o remédio ou o alimento. Em muitos casos, quando a doença chega, é preciso utilizar remédios caseiros para economizar o pouco dinheiro que têm. “Estamos tendo que relembrar os remédios que a nossa mãe e a vó ensinavam”, disse uma moradora.
A situação também torna mais complexo o acesso de profissionais de saúde à região. A embarcação que leva assistência à saúde no Tapajós, o barco hospital “Abaré”, já não consegue navegar nas condições em que se encontra o rio. Andiroba conta que, “em determinadas comunidades, o barco não consegue ficar aportado, e temos que seguir a outra mais distante. Nesse caso, precisamos pagar para alguém nos levar até a embarcação para recebermos o atendimento”.
Nessa situação, tem começado ainda a faltar material de higiene nas comunidades, e isso amplia as doenças já existentes. Há relatos de doenças como os furúnculos, vômito e diarreias. Nesses territórios, estas doenças geralmente estão associadas com o uso da água. Todavia, possivelmente neste momento as causas do adoecimento são também outras: o estresse vivenciado pelo calor excessivo e a baixa ingestão de carboidratos, proteínas e nutrientes suficientes para manter o sistema imunológico apto para manter o equilíbrio do corpo físico.
Sem energia da alimentação, não há como combater a queimada e tampouco caçar para alimentar a família, diminuindo com isso as defesas naturais. Como trazido por alguns ribeirinhos, “as pessoas estão adoecendo e não estamos tendo como ajudar. Estamos praticamente esquecidos”.
Genocídio e epistemicídio
É notório que, historicamente, a região Amazônica tem sido marcada por um processo de colonização que representa um genocídio, que elimina povos indígenas e tradicionais, e apaga todo o conhecimento que eles carregam – é o que chamamos de epistemicídio.
A seca que assola as comunidades do Norte do país atualmente evidencia esse processo, consciente ou não. “Muitos acham que nada está acontecendo nas comunidades. E não estamos fazendo nada para reverter esta situação”, reflete Cumaru.
Wilson Sabino é professor do ensino superior federal na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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